Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Artigos de opinião
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O Fórum Social Mundial (FSM), em sua sexta edição, demonstrou vitalidade e capacidade de enfrentar novos desafios. Pensado como um fórum policêntrico, já foram realizados os eventos de Bamako, no Mali, e de Caracas, na Venezuela. Adiado por causa do terremoto na Caxemira, o fórum de Karachi, no Paquistão, deverá acontecer em março, acrescentando colorido e mais contrastes ao processo FSM.
Ousado no formato, o FSM policêntrico foi capaz de se implantar em novas regiões do mundo, mas revelou também riscos e tensões no seu seio. As contradições, em si mesmas, são sinal de vida e não de problemas. O enfrentamento dessas contradições na preparação do FSM em Nairóbi, no Quênia, em janeiro de 2007, será uma grande oportunidade para enormes avanços no que representa a nova cultura política gerada pela mobilização contra a globalização neoliberal.
Pouco notado pela imprensa brasileira, foi realizada de 27 a 29 de janeiro, em Bouznika, no Marrocos, a Assembléia Preparatória do Fórum Social Maghrebino. Está em curso na região um dos processos mais inovadores e estimulantes do FSM. Poucas vezes a minha intuição me ajudou tanto como neste ano, deixando o FSM em Caracas pelo meio, no dia 26, e indo direto para a fria praia – estava um frio de arrepiar – não longe de Rabat, no Marrocos, em um centro de férias da juventude, onde a Assembléia foi realizada.
Eram em torno de 450 delegados(as) representando os países da região: Marrocos, Argélia, Tunísia, Mauritânia, e, por incrível que pareça, Saara Ocidental. Faltou a Líbia, mas não por falta de esforços e sim pela dificuldade de identificar e mobilizar movimentos e entidades do país. Também participaram delegados(as) de associações de migrantes maghrebinos na Europa, especialmente França, Bélgica, Itália e Espanha, além de representantes de organizações de cidadania ativa nestes países.
Senti na fria Bouzinika o calor da vibração do FSM. Criou-se o espaço de diálogo, troca e mesmo divergência no respeito à diversidade e na busca comum de alternativas aos povos da região. Como bem lembrou um líder saaraui, a solução para os problemas da região cabe aos próprios povos da região, sem interferência externa e sem aceitar as clivagens impostas pela lógica dos Estados e dos mercados.
A Assembléia Preparatória permitiu criar convergências e sinergias entre movimentos sociais, associações, sindicatos e movimentos pacifistas da região, bem como dos grupos de emigrantes maghrebinos. Ao mesmo tempo, estimulou um processo de articulação e construção de redes cidadãs para um "Maghreb dos povos", buscando alternativas. Por fim, ficou evidente vontade dos(as) delegados(as) presentes em articular dinâmicas locais, regionais e mundiais, no espírito da Carta de Princípios do FSM. Foi decidida, ainda, a realização de um grande Fórum Social Maghrebino em maio de 2007.
A importância da dinâmica em curso na região deve ser vista da perspectiva do próprio FSM e do que se passa na região. Estamos falando de uma região que é parte da fronteira mais nítida – o Mar Mediterrâneo – que a excludente globalização neoliberal está produzindo. Berço de grandes civilizações, o Mediterrâneo hoje condensa as maiores contradições. O mais visível e longo é o conflito Israel–Palestina, um drama síntese da humanidade, de todos(as) nós: como conviver e compartir uma mesma terra, no limite, um mesmo planeta com seus bens comuns, sem nos matar mutuamente. Mas aí está o drama do povo do Iraque ocupado sob a lógica do terror e da guerra.
Prevalece sobre os povos do Sul do Mediterrâneo o estigma de serem diferentes, em particular a variada e complexa cultura muçulmana-árabe. A este fato se acrescenta o drama de milhões de migrantes maghrebinos, árabes e subsaarianos, de pessoas livres em busca de melhores condições de vida na Europa e no Norte usurpador de riquezas e sonhos.
É fundamental que o FSM se implante e expanda na região. As dificuldades são muitas, a começar pelos próprios governos, no geral autoritários, repressivos e pouco abertos à participação de seus povos. O movimento antiglobalização não pode aceitar a lógica dominante. Por isto, a porta aberta pelo Fórum Social Magrhrebino é de uma importância estratégica vital para a emergente cidadania planetária.
Para o próprio Maghreb, o FSM é algo fundamental. Os povos da região parecem carregar a sina das muitas hegemonias que já existiram no mundo. Sua cultura de referência mais antiga é o "Amazigh" (Sociedade dos Homens Livres). Na expansão romana, viraram "Berber" (Bárbaros). Depois, com a expansão do islamismo árabe, se tornaram o "Maghreb" ("Lá onde o sol se põe" – Ocidente). Por sua vez, é do Grande Maghreb, com seu epicêntro no atual Marrocos, que se fez a ocupação da Península Ibérica. No século XIX e início do século XX, o Maghreb sofreu a invasão imperialista francesa, em particular. A independência se deu de forma traumática no pós II Guerra Mundial. Hoje o Maghreb é terra de emigração de sua própria população (em torno de 4,5 a 5 milhões de maghrebinos vivem no exterior, sendo 85% na Europa) e terra de passagem de migrantes subsaarianos.
Os enclaves de Ceuta e Melilla, da Espanha, o estreito de Gibraltar, as Ilhas Canárias, desde Marrocos, e as ilhas de Secília, Pantelleria e Lampedusa, da Itália, buscadas desde a Tunísia, são pontos de dramas e violações de direitos humanos indescritíveis pela "civilizada" Europa. O Fórum Social Maghrebino é um espaço onde a migração – como o calcanhar de Aquiles da globalização a serviço do capital e contra as pessoas – pode ser posta a nua e alternativas podem ser elaboradas de uma perspectiva cidadã. O dramático tema da migração juntamente com a abertura de uma porta de diálogo com as culturas muçulmana e árabe são o aporte desafiante e estratégico da nascente sociedade civil do Maghreb ao processo FSM.
* Cândido Grzybowski é sociólogo, diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e membro do Secretariado Internacional do Fórum Social Mundial. Artigo publicado originalmente pelo Ibase (www.ibase.br).
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