Autor original: Mariana Hansen
Seção original: Novidades do Terceiro Setor
Inspirado nos relatores especiais das Nações Unidas, o projeto Relatores Nacionais em Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais, da Plataforma DhESCA Brasil, tem três anos de existência e acaba de lançar seu terceiro livro: “Relatorias Nacionais em Direitos Humanos Econômicos Sociais, Culturais e Ambientais – Informe 2005”. O projeto, uma iniciativa da sociedade civil, monitora, analisa e difunde informações sobre a situação dos direitos humanos.
O Brasil é o primeiro país a utilizar esse tipo de monitoramento, que tem como objetivo contribuir para que seja alcançado o padrão de respeito aos direitos humanos previstos na Constituição Federal de 1988, no Programa Nacional de Direitos Humanos e nos tratados internacionais ratificados pelo país. Para a coordenadora do projeto, Maria Elena Rodriguez, trata-se de uma idéia inovadora e criativa que criou um mecanismo próximo das comunidades e dos grupos afetados para denunciar violações, reivindicar e controlar o respeito aos direitos. “O projeto traz ao público o cotidiano da violação dos direitos”, comenta.
Dividido em seis relatorias – Moradia Adequada; Saúde; Trabalho; Meio Ambiente; Educação; Alimentação, Água e Terra Rural –, o projeto realiza missões in loco, dialogando com várias esferas do poder público, a fim de produzir relatórios com recomendações para superar os abusos registrados. Cada tema conta com um relator, nomeado por um período de dois anos. O trabalho dos relatores é constante. “Além de receberem as denúncias, estão sempre em interlocução com os movimentos e grupos envolvidos, assim como com os órgãos do Estado, para incidir em novas políticas e definição de estratégias que impliquem a realização dos direitos”, conta Maria Elena.
Desde sua criação, em 2002, o projeto já visitou 76 municípios, em 18 estados brasileiros. Diferente dos anteriores foi o foco dado às missões, que foram narradas em cada capítulo pormenorizadamente, apontando as violações mais emblemáticas. Ainda desta vez, o processo de definição das missões e das linhas de trabalho foi feito de maneira conjunta com redes, fóruns e movimentos sociais que atuam na área de direitos humanos. Para o Informe 2005, foram realizadas oito missões, em algumas das quais se buscou dar um caráter preventivo. Segundo Maria Elena, “queremos nos antecipar à tragédia, que sempre traz consigo uma violação de direitos humanos, e mostrar caminhos possíveis para garantir uma vida digna para todos”.
Um dos casos apresentados é a implantação de um pólo siderúrgico na Ilha de São Luís do Maranhão, que ameaça de despejo forçado, direta e indiretamente, 12 comunidades locais. A missão, que seria a primeira de caráter preventivo, deparou-se com violações em andamento: as famílias já estavam sendo intimidadas e algumas acabaram por abandonar suas casas. De acordo com o relator para Direito à Alimentação, Água e Terra Rural, Flávio Valente, neste caso “há uma falta de transparência e diálogo com a população, uma clara desinformação consciente e intencional do governo do estado, interessado na instalação das usinas”. Ele ainda aponta arbitrariedades como a transformação indiscriminada da região em área urbana pela Câmara Municipal, o que facilita legalmente a implantação das usinas que, segundo afirma, a Companhia Vale do Rio Doce insiste em instalar na ilha, não no continente. Outra discrepância é o agendamento de uma audiência pública às vésperas do Carnaval, no dia 21 de fevereiro. “O objetivo é esvaziar [a audiência]”, observa.
No Baixo Parnaíba, a situação não é diferente. Famílias são ameaçadas pela expansão do agronegócio, especialmente de lavouras de soja e cana-de-açúcar, que objetivam ocupar um milhão de hectares na região. Valente conta que muitas famílias já estão há mais de 200 anos na região, que abriga até mesmo comunidades quilombolas. “As famílias estão sendo literalmente expulsas, por grilagem, desmatamento e por intimidação. A situação é grave tanto do ponto de vista ecológico como humano”, relata. Segundo ele, há uma total incapacidade do Estado de monitorar e regulamentar a ocupação da terra. “Os cartórios locais facilitam a titulação ilegal das terras. Essas ações estão claramente associadas ao modelo de desenvolvimento agroexportador do governo, que não leva em conta a dignidade humana”, denuncia.
Longe da zona rural, os problemas continuam. No dia 16 de fevereiro, fez um ano que cerca de 3.500 famílias do Parque Oeste Industrial, em Goiânia (GO), foram despejadas de suas casas, em uma ação violenta da Polícia Militar que causou duas mortes e deixou uma pessoa paralítica. Até hoje, em torno de 1.200 famílias estão abrigadas em um acampamento, em condições sanitárias precárias, enquanto outras moram de favor em casa de parentes e amigos, sem verem cumprida a promessa das autoridades locais de construir 2.500 unidades habitacionais para abrigá-las.
A relatora para Direito à Moradia Adequada, Lúcia Moraes, conta que o local da ocupação estava abandonado há mais de 50 anos e que os proprietários já não pagavam o IPTU do imóvel. O terreno, localizado em uma área central da cidade, estava sendo “guardado” para especulação imobiliária. “A terra não estava mais cumprindo a sua função social”, pontua Lúcia. Há apenas 15 dias, foi iniciada a construção do conjunto habitacional esperado pelos sem-teto, mas de forma lenta. Para Lúcia, essa atitude “denuncia a morosidade e a omissão do Estado em resolver o problema”. E acrescenta: “Se existe problema de ocupação, é porque existem problemas com as políticas públicas habitacionais”.
Esses são apenas alguns exemplos das violações apresentadas no relatório, que ainda traz casos nas área de saúde, trabalho, meio ambiente e educação. Ao dar visibilidade a esses abusos, “as ações dos relatores se traduzem em desdobramentos, em plataformas públicas de ação, gerando e fortalecendo espaços de diálogo social permanente sobre os direitos humanos que buscam soluções para os problemas enfrentados”, explica Maria Elena.
Ela conta ainda que a intenção é superar a etapa de simples “denuncismo” para se tornar um relatório propositivo e dialógico. “Em cada local das missões”, explica, “se criam ou se fortalecem grupos locais para o seguimento das recomendações dos relatores, para que elas consigam ser incorporadas em políticas públicas”.
A expectativa de Flávio Valente é que os relatórios possam “potencializar o movimento social”, estimulando o uso das relatorias para retardar processos de violação ou até mesmo inibi-los. “A iniciativa traz os casos para visibilidade da imprensa e para as mesas de negociação do governo”, afirma.
Lúcia Moraes acredita que “o que existe realmente é a omissão do Estado”. Ela espera que com as relatorias haja uma sensibilização das autoridades públicas, colocando essas situações emergenciais como prioridade.
Maria Elena completa que o projeto favorece uma ação transformadora situada em um contexto de relações de poder entre Estado e sociedade civil. “Os relatórios são um instrumento de luta que sintetiza as tensões cotidianas de uma imensa maioria da população. É uma lição aberta, um recurso didático inesgotável para o aprendizado dos direitos humanos. Para relacionar esses direitos com a vida real, concreta e cotidiana das pessoas. Para compreender a relação que existe entre a justiça e a verdade. Sobretudo, para abrir avenidas de esperança”, conclui.
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