Você está aqui

Biodiversidade morna

Autor original: Luísa Gockel

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets







Divulgação

Em março, o Brasil vai sediar dois dos mais importantes encontros internacionais sobre meio ambiente. Entre os dias 20 e 31, a cidade de Curitiba (PR) vai ser palco da 8ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP 8, da sigla em inglês) e do dia 13 a 17 é a vez da 3ª Reunião das Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança (MOP 3, também do inglês). Muitos ambientalistas alertam para o fato de que os encontros provavelmente serão a última oportunidade de os movimentos sociais apresentarem sua pauta de reivindicação durante o governo Lula. Segundo eles, pelo motivo de 2006 ser um ano atípico por causa das eleições e da Copa do Mundo. Apesar disso, representantes de organizações da sociedade civil mantêm suas expectativas não muito elevadas, pois esperam debates quentes mas poucas resoluções.

Em artigo para a Agência Carta Maior intitulado “De volta para casa”, Nurit Bensusan, consultora da WWF para assuntos da COP 8 e integrante do Grupo de Trabalho sobre Sociobiodiversidade do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS), prevê um futuro pouco promissor para a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). Ela explica que a CDB foi aberta na Eco 92, no Rio de Janeiro, e hoje, 14 anos depois, volta para casa, através da COP 8. “Poderá significar um novo impulso na abertura de novos caminhos, mas poderá também - e talvez mais provavelmente - significar o fim de uma era de esperanças na CDB como contraponto aos caminhos trilhados pelo império do mercado”, escreveu.

Para o gerente de Conservação de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, Bráulio Ferreira de Souza Dias, o uso sustentável da nossa biodiverdidade e os interesses econômicos não podem ser vistos de forma antagônica. “Não se trata apenas da perda de espécies, mas também da variabilidade genética, da qual depende metade do Produto Interno Bruto brasileiro, com o agronegócio, setor de florestas, de pesca, ecoturismo, entre outros, e ainda da redução dos serviços ambientais, como a oferta de água”.

Mesmo abrindo caminho para muitas controvérsias, a COP 8 é uma reunião de grande importância que conta com participantes dos 188 signatários da CDB mais representantes da sociedade civil, de organismos internacionais e de populações tradicionais.

O racha entre as posições do governo e de organizações da sociedade civil pode dar o tom do debate nas reuniões. Na página do governo na Internet sobre a conferência (www.cdb.gov.br) o destaque é para as implementações da CDB. Nada é dito, no entanto, sobre as posições que serão defendidas em Curitiba. No site da sociedade civil (www.cop8.org.br), que ainda está em construção, há informações sobre o Fórum Global da Sociedade Civil, que será realizado em Curitiba, paralelamente às reuniões da COP 8 e da MOP 3. Rubens Born, diretor do Vitae Civilis, conta que a idéia é fazer um fórum provocador e crítico. “O mote é ‘Bem-vindo ao mundo real’, para mostrar como o processo da COP 8 é morno e lento”, diz.

No site, o destaque é para os temas-chave que serão debatidos nos eventos: a criação de um regime internacional de remessa de material genético, a repartição dos benefícios do uso desse material ou conhecimento e a rotulagem de transgênicos.

Regime internacional e repartição de benefícios

No início de fevereiro, a reunião preparatória para COP 8 realizada em Granada, na Espanha, mostrou que o embate entre os países chamados de megadiversos, liderados pelo Brasil, e os países ricos, encabeçados pela União Européia, será duro. O principal motivo de discordância é a implementação de um regime internacional que regule o acesso aos recursos genéticos e, sobretudo, reparta os benefícios econômicos e sociais obtidos através desses recursos. Na reunião foi elaborado um texto, mas não há garantias de seja usado como base das discussões na COP 8.

“Canadá, União Européia e Japão colocam entraves em relação ao regime internacional. Não sei se vamos avançar muito na COP 8, mas estamos dando passos. Temos de ser realistas. É um tema complexo, pois vai interferir nas relações econômicas e nos direitos de propriedade intelectual”, analisa Eduardo Vellez, diretor do Conselho Nacional de Gestão do Patrimônio Genético do MMA. Segundo ele, apesar da improbabilidade de os países saírem da COP 8 com uma resolução concreta, já é possível considerarmos o simples debate como um avanço. “O mundo começou a falar mais seriamente sobre isso há um ano. Antes a biodiversidade era considerada patrimônio da humanidade”, diz.

Vellez explica que no regime internacional um escritório de patentes tem de pedir autorização do país de origem antes de conceder o registro. Ele explica que o uso da nossa biodiversidade sem a repartição dos benefícios é comum e constitui biopirataria. “Sabemos que existem mais de 100 patentes de produtos ou de processos produtivos com espécies brasileiras, mas não temos um mapeamento claro disso”, explica.

De acordo com informações do MMA, o Brasil é responsável por 15% a 20% do número de espécies do planeta. Lídio Coradin, gerente de Recursos Genéticos da Secretaria de Biodiversidade e Florestas do MMA, explica que esse é um dos principais motivos de o Brasil estar à frente das negociações. “No início, a convenção era pra tratar só da conservação, mas queríamos que falasse do uso sustentável e da repartição dos benefícios. É uma responsabilidade e um grande desafio aproximar a conservação com o desenvolvimento”, conta.

Mesmo com o protagonismo brasileiro nos debates, Coradin diz que a idéia de ter uma corte para reclamar abusos de empresas que pegam material genético sem autorização vai gerar um debate quente na COP 8. “Alguns países tentam impor a idéia impeialista de que, se sempre se teve acesso à nossa biodiversidade sem nenhum problema, por que não podem continuar pegando nossos recursos genéticos?”. Segundo ele, o regime internacional é necessário porque é preciso criar atrativos para a floresta continuar em pé. “Temos de mostrar para a pessoas que naquela floresta estão os genes que o mundo precisa. O repositório de material genético para diferentes finalidades”, defende Coradin.

Nurit Bensusan, da WWF, explicou à Rets que no âmbito da CDB as medidas de conservação são mais implementadas e as que promovem o uso sustentável da biodiversidade, um pouco menos. “Não há nada implementado sobre repartição de benefícios, o que mostra como é difícil entrar em conflito com o mercado. A convenção está dando peso maior a essa questão justamente para compensar esse desequilíbrio”, explica.

O coordenador de políticas públicas do Greenpeace e do GT de sociobiodiversidade do FBOMS dá outro motivo para essa dificuldade. “Existem dois sistemas de conhecimento, o ocidental e o não-ocidental. No primeiro, nós assinamos um papel para firmar um acordo. O segundo é mais oral. Como fazer o equilíbrio entre esses dois sistemas e reconhecer como devem ser remunerados os conhecimentos é muito complicado”, explica. Ele explica que, no caso de utilização de recursos genéticos, não é a informação obtida o mais importante, mas sim como ela será utilizada mais à frente.

Protocolo de Cartagena

O Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança foi o primeiro acordo no âmbito da CDB e tem o objetivo de garantir segurança na manipulação, no transporte transfronteiriço e no uso de organismos vivos modificados (OVMs). E é aí onde o debate fica mais acirrado.

Dois dos pontos mais polêmicos estão na identificação da carga transgênica e na utilização das técnicas genéticas de restrição de uso. Enquanto alguns, geralmente empresas e governos comprometidos com o agronegócio, defendem que a carga seja identificada com a expressão “pode conter” material genético, representantes da sociedade civil querem um rótulo mais específico. Marijane Lisboa, professora de Relações Internacionais da PUC de São Paulo e consultora da Associação de Agricultura Orgânica, explica que até hoje a situação está indefinida em relação à postura que será adotada pelo governo.

“De um lado, alinham-se ao Ministério do Meio Ambiente os ministérios da Saúde, do Desenvolvimento Agrário e da Justiça querendo que haja uma clara identificação dos tipos de transgênicos que por ventura sejam exportados a um determinado país. Isso para que as medidas cabíveis para proteger sua biodiversidade, saúde, economia sejam tomadas. De outro lado estão os ministérios da Agricultura, da Ciência e Tecnologia e o do Desenvolvimento, Indústria e Comércio insistindo para que a identificação de transgênicos na carga implicaria em aumento dos custos”, explica a professora.

Para Nurit Bensusan, se o governo tiver uma posição equivalente à que teve na MOP 2 vai haver um grande embate. “O governo deve empurrar essa decisão para o futuro. Dizer que como não conseguiu um acordo, vai abrir uma nova negociação no futuro”, acredita. A consultora critica fortemente essa postura das grandes corporações: “Eles querem a identificação do ‘pode conter’ porque querem difundir transgênicos pelo mundo todo. Depois que tiver espalhado, vão mudar de posição e querer saber tudo que contém para cobrar royalties”, critica.

A identificação, segundo Sérgio Leitão, é fundamental para o Brasil, para evitar a contaminação da biodiversidade brasileira e possíveis problemas de segurança alimentar decorrentes disso. O representante do Greenpeace explica que o principal motivo da resistência das grandes corporações em relação a uma identificação mais precisa é para que a responsabilidade jurídica em relação à carga seja eliminada. Lídio Coradin, do MMA, arremata: “Não queremos impedir os transgênicos, mas avançar com segurança. Precaução é a palavra-chave. Queremos que os rótulos sejam identificados”, diz.

A polêmica que envolve a utilização das técnicas genéticas de restrição de uso, ou Gurts, está relacionada à natureza das sementes, que impedem que os agricultores reproduzam sementes férteis a partir de uma planta. Em outras palavras, para que o agricultor possa plantar novamente ele terá de adquirir novas sementes. Devido ao impacto nas comunidades tradicionais e nos pequenos agricultores que esse tipo de semente pode causar, uma moratória foi aprovada durante a COP 6, em 2002, sobre produtos contendo esse tipo de semente. Marijane Lisboa olha com preocupação para a questão e acredita que pode haver um retrocesso na MOP 3.

“A proposta aprovada no apagar das luzes da recente reunião de Granada admite que se possa experimentar em campo os Gurts, visando ao seu estudo ‘caso a caso’. Isso significa acabar com a moratória global para experimentos em campo, pois é óbvio que estudos caso a caso serão conduzidos isoladamente por diversos países. Com isso, está dado o risco de que tais experimentos escapem das áreas de teste, contaminando variedades convencionais, trazendo sérios impactos negativos ao meio ambiente, à saúde humana, à soberania alimentar e à agricultura em geral”, analisa.

Em relação aos dois pontos complicados do debate em relação aos transgênicos, há consenso entre os representantes da sociedade civil sobre a falta de clareza por parte do governo. “O governo tem de escolher de qual lado está. É uma decisão totalmente simbólica e vai indicar o rumo que a questão da biodiversidade vai tomar no país”, diz Leitão. E conclui: “Esse vai ser o grande teste do governo. Esperamos que passe”.

Luísa Gockel

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer