Autor original: Joana Moscatelli
Seção original: Novidades do Terceiro Setor
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No início do ano, o governo brasileiro anunciou a quitação antecipada da dívida de R$ 15 bilhões com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Embora seja consenso que os recursos destinados ao pagamento da dívida externa são excessivos, até hoje pouco ou quase nada foi feito de concreto em relação à questão. No Brasil, em 2000, a Campanha Jubileu Sul realizou um plebiscito sobre o tema que terminou com o apoio maciço da população ao não pagamento da dívida. Nenhuma medida, porém, foi tomada pelo governo.
Lançada no dia 25 de janeiro, no Fórum Social Mundial, em Caracas, na Venezuela, a cartilha “Auditoria da Dívida: América Latina e Caribe”, editada em espanhol e português, pretende popularizar a discussão sobre a dívida externa na América Latina e questionar a origem e a razão desse endividamento. A publicação está disponível no site da Campanha Auditoria Cidadã da Dívida e também pode ser solicitada pelos telefones (11) 5572-1518 e (61) 3218-5276, da Rede Jubileu Sul Brasil.
Maria Lúcia Fattorelli, uma das autoras da cartilha, ressalta que é preciso questionar alguns pontos em relação à dívida antes de assumirmos qualquer posição. “Precisamos saber como surgiu toda essa dívida pública, quanto já pagamos e quanto ainda devemos, se realmente devemos, quem contraiu tantos empréstimos, onde foram aplicados os recursos e se esse endividamento significou algum benefício para o povo brasileiro. E, finalmente, o que foi feito diante de tantas ilegalidades e ilegitimidades desse processo. Essas são algumas perguntas que a 'Auditoria Cidadã da Dívida' procura responder”, observa.
O primeiro capítulo da publicação aborda a origem e o contexto histórico em que as dívidas latino-americanas foram contraídas. Segundo a cartilha o “endividamento foi o resultado de uma estratégia articulada dos países do Norte para a dominação dos países do Sul”. Após esta introdução histórica, o texto apresenta a Auditoria da Dívida como uma alternativa na luta contra as políticas neoliberais – e que pode contribuir para a mudança das estratégias de desenvolvimento econômico e social dos países da América Latina. A seguir, a cartilha trata das experiências internacionais de auditorias já realizadas, começando pelo caso brasileiro.
No Plebiscito da Dívida Externa, em 2000, 95% dos participantes se declararam contrários ao pagamento da dívida externa sem a realização da auditoria prevista na Constituição de 1988. Além disso, o grupo de trabalho da ONG Auditoria Cidadã analisou a história da dívida e resgatou os documentos oficiais sobre o processo de endividamento.
Segundo Maria Lúcia Fattorelli, o objetivo da auditoria é dissecar o processo do endividamento do país, revelar a origem da dívida e, a partir daí, tentar obter judicialmente a redução das dívidas externas e internas. Para ela, reduzir os recursos destinados ao pagamento da dívida melhoraria as condições de vida na América Latina.
“No caso brasileiro, por exemplo, foram destinados R$ 139 bilhões para juros e amortizações da divida federal (interna e externa). Bem mais que os R$ 99 bilhões gastos com a soma das áreas sociais, como saúde, educação, assistência social, agricultura, segurança pública, cultura, urbanismo, habitação, saneamento, gestão ambiental, ciência e tecnologia, organização agrária, energia e transporte. Diante disso, a sociedade tem o direito de saber que dívida é essa, que está consumindo tantos recursos”.
Ela lembra também que a primeira auditoria realizada no Brasil se deu durante o governo de Getúlio Vargas, em 1931. Articulada com mais 14 países da América Latina, a iniciativa apurou que apenas 40% dos contratos estavam documentados e que não havia contabilidade regular da dívida. Recentemente, em um novo levantamento feito pela Auditoria Cidadã no Senado Federal, verificou-se que, de um total de 815 operações externas, apenas 238 tinham contratos.
Outro tema abordado pela publicação é a proposta equatoriana de criação de um Observatório da Dívida. A idéia é analisar os impactos da dívida sobre as questões sociais, étnicas, de gênero e ambientais. Em seguida, são expostos os principais argumentos jurídicos que justificam o não pagamento da dívida.
Por fim, a cartilha aponta os países da América Latina como os principais “credores de uma dívida ecológica, moral, social financeira e histórica”. Uma dívida acumulada desde os tempos de colonização, em que as riquezas da região foram exploradas, trazendo benefícios apenas para uma elite local e para os colonizadores.
A idéia da cartilha surgiu durante o seminário internacional “A Dívida Externa e seus Efeitos na Garantia dos Direitos Humanos”, realizado em Lima, Peru, em outubro de 2005. No encontro, representantes de diversos países trataram das semelhanças históricas, econômicas e sociais responsáveis pela maioria das atuais mazelas dos países latino-americanos. A intenção dos organizadores da publicação é mostrar à sociedade latino-americana que essas semelhanças não são coincidências. E que, a partir do levantamento de fatos e documentos sobre a dívida, os governos da América Latina podem agir em conjunto para melhorar as condições sociais e econômicas na região.
“Pretendemos demonstrar que o atual estado de endividamento do Terceiro Mundo é fruto de uma estratégia de espoliação e subordinação comandada pelos países ricos, pelas grandes corporações e instituições financeiras internacionais e multilaterais, que agiram em perfeita sintonia com os negociadores dos países pobres", defende Maria Lúcia Fattorelli.
A América Latina é considerada uma das regiões mais desiguais do mundo, com muitos recursos naturais, mas uma população majoritariamente pobre. Para Maria Lúcia, o que impede o desenvolvimento da região é a dependência econômica, marcada principalmente pelo endividamento financeiro e pelo comércio injusto.
“Praticamos as taxas de juros mais elevadas e ainda somos ameaçados pelas agências de risco com suas avaliações, apesar de garantirmos a segurança aos investimentos por meio da produção de superávits primários. Enquanto isso, nossos povos são submetidos a um grande sacrifício, pois as metas humanas e os direitos sociais básicos (saúde, educação, emprego, assistência à infância e ao idoso, acesso à cultura e ao lazer etc.) ou mesmo as metas voltadas para o desenvolvimento (investimento em energia elétrica, meios de transporte, reforma agrária, economia solidária. etc.) têm dado lugar para metas estéreis: de inflação, de superávit primário e de superávit na balança comercial”.
Outra semelhança dos países latino-americanos é o modelo tributário que concentra ainda mais a renda e produz desigualdade social. “Para se alcançar um outro patamar de justiça e liberdade para nosso continente, é fundamental que haja mobilização social de forma organizada e consciente. Daí a importância de materiais como a cartilha, que trata dos temas do endividamento e do comércio internacional em linguagem acessível a todos os cidadãos", completa a autora.
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