Autor original: Mariana Hansen
Seção original: Artigos de opinião
![]() Fotomontagem: Fernanda Webler | ![]() |
O país da impunidade é o cenário perfeito para o surgimento de novas tentativas contra as legislações vigentes. Os adolescentes estão cada vez mais vulneráveis ao cenário da violência exacerbada, principalmente, pela sua cooptação para o mundo do crime organizado. Para a grande maioria da sociedade esses adolescentes devem ser punidos quando cometem um ato infracional, em função do desrespeito às leis. Alguns propõem até punições “mais severas” e outros discutem firmemente a questão da redução da maioridade penal com a intenção de resolver o problema dos autores de ato infracional. Ora então vamos apurar os responsáveis.
Fundado nos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989) e com parâmetros no artigo 227 da Constituição Federal (CF) de 1988, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, como lei federal (8.069/90). É dirigido a todas as crianças e adolescentes, sem distinção, e define, em suas disposições preliminares, a garantia da proteção integral com absoluta prioridade. Ao garantir essa prioridade do exercício de direitos fundamentais, a Constituição e o ECA convocaram o Poder Público (Executivo, Legislativo e Judiciário) a destinar os recursos para sua efetiva aplicação, assim como os operadores do direito a promoverem procedimentos e medidas judiciais que garantam essa preferência. Mas será que os governadores, prefeitos, deputados e vereadores cumprem essa lei? As crianças e adolescentes estão sendo consideradas, já há quinze anos, como pessoa “em condição peculiar em desenvolvimento”, que devem ser assegurados pela família, pelo Estado e pela sociedade? Mas voltemos aos adolescentes que cometem atos infracionais.
Verificada a autoria do ato infracional, atribuída a um adolescente, o sistema implantado pelo ECA entende o adolescente como sujeito de direitos e de responsabilidades oferecendo amplos mecanismos de responsabilização (conforme art.112). Em alguns casos, os governos mantêm instituições violentas destinadas ao cumprimento da medida socioeducativa de internação e que produz efeitos absolutamente nefastos aos adolescentes e à sua participação na convivência coletiva. E a sociedade assiste a tudo calada, com um “silêncio sorridente”, como diz o poeta, além de viver o temor, nos grandes centros urbanos, de outros seres humanos. “Parece mesmo terrível essa turma que não cumpre a lei! Alguma providência precisa ser tomada”, pensam.
A história vem mostrando também que a internação não tem surtido os efeitos desejados do processo socioeducativo, uma vez que ele nunca foi implantado. Muitos acreditam em outras medidas prevista pelo ECA. A liberdade assistida é uma que é considerada a “rainha das medidas” por muitos especialistas que apostam nela como sendo a melhor estratégia para acabar com os modelos de internação e com o fim das práticas de terror, violência e tortura já amplamente divulgados pelos meios de comunicação. O Estado violenta os princípios de Direitos Humanos e as leis do país como forma de punir quem descumpre a lei. Como será que fica a cabeça de quem sofre esse tipo de resposta? E como ficam os adolescentes quando vêem que nada acontece com o outro e principal violador de direitos?
A liberdade assistida (LA), se adequadamente implementada sob as responsabilidades dos municípios, como prevê a lei, é a mais articulada e conseqüente das abordagens na grande maioria dos casos de autoria de atos infracionais por adolescentes – cujo principal alvo é o patrimônio, em resposta à forte vontade de consumir criada por esse perverso sistema capitalista. A liberdade assistida procura criar condições favoráveis ao reforço de seus vínculos com família, escola, comunidade e mundo do trabalho. Para isso é incumbido um orientador que tem a tarefa de “acompanhar, auxiliar e orientar” o adolescente. O prazo mínimo de aplicação da medida é de seis meses; esta pode a qualquer tempo ser prorrogada, substituída ou, se for o caso, revogada.
A família, a escola, a comunidade e o trabalho são fundamentais, pois são instituições definidoras da trajetória biográfica e relacional do ser humano na sua travessia entre adolescência e idade adulta. Portanto, além do aspecto da sanção, é uma oportunidade que o adolescente tem de ser auxiliado na construção, estabelecimento e manutenção dos seus vínculos com as três instituições citadas. Neste sentido, e ao contrário da resposta violadora do Estado, o papel do orientador assume grande importância e suas ações de apoio devem ser discutidas e acordadas com o adolescente, respeitando seu direito de escolher seu próprio projeto para que a liberdade, bem exercida, com valor em si mesma, atue como principal elemento socializante.
Para o Estado infrator, qual é a pena? Pois a mesma lei que “pune” os adolescentes é a mesma que preconiza os direitos fundamentais para o desenvolvimento saudável da criança e do adolescente. É nessa hora que se propõem alterações na lei? Para beneficiar quem? Em hipótese de cumprimento da lei, um sonho de implementação, o número de adolescentes vulneráveis não seria o mesmo. Mas tudo não passa de hipótese. O fato é que os governos não assumem suas responsabilidades e continuam violando as leis.
São Paulo vive um processo de muncipalização das medidas em meio aberto (mais especificamente a liberdade assistida), que tem provocado um longo processo de desgaste na sociedade civil organizada e, principalmente, nos adolescentes e seus familiares que estão sendo tratados como objetos na mão do Estado e da Prefeitura. Em ano de disputa eleitoral quem sofre são seus eleitores. Após uma experiência piloto de dez meses, que foi bem avaliada, a gestão municipal está propondo um processo por desmonte que desqualifica todo o trabalho que historicamente foi construído. Hoje existem três áreas que já estão sob a responsabilidade do município, mas sem nenhuma cobertura. As ONGs estão trabalhando sem nenhum respaldo financeiro para o trabalho e os adolescentes correm o risco de serem “devolvidos” aos postos de atendimento da Febem que não estão preparados mais para fazer o acompanhamento socioeducativo.
Finalmente, a defesa do cumprimento da lei em benefício próprio está sempre presente nos discursos eleitorais e eleitoreiros, mas quando o cumprimento é dever dessa ou daquela sigla, desse governador ou daquele prefeito o assunto parece mudar de figura. Até quando vamos responsabilizar apenas os adolescentes? É uma pena! Nesse caso, para os governantes infratores recomenda-se uma pena: a máxima.
*Fábio Silvestre da Silva (psilvestre@uol.com.br) é psicólogo e diretor do Cedeca Interlagos.
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