Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
![]() Fotomontagem: Fernanda Webler | ![]() |
O Brasil está prestes a tomar uma decisão que vai influenciar a forma de entretenimento mais popular do país. O governo anunciou que escolherá o padrão do sistema brasileiro de televisão digital no dia 10 de março, praticamente um mês depois do prazo original, 17 de fevereiro.
O adiamento aconteceu por causa da pressão não só de membros do Executivo, entre eles a Casa Civil e o Ministério da Fazenda, mas também das empresas de telefonia, interessadas em um padrão diferente do preferido pelo Ministério das Comunicações, e de ativistas sociais, que pedem mais discussões sobre o tema e a garantia de que os canais serão democratizados. Afinal, além de entreter, a televisão é um importante meio de fazer política.
A forma como o sistema será implementado pode mudar o quadro da comunicação brasileira. Dependendo do modelo escolhido e da forma como ele será posto em vigor, novos atores podem entrar no mercado, diversificando as fontes de informação e até mesmo diminuindo o problema da inclusão digital.
A transição da atual TV analógica para a digital movimentará R$ 7 bilhões nos próximos anos – e ninguém quer ficar fora dela. O Brasil, atualmente, é o quarto maior mercado de televisão aberta do mundo e a quantidade de aparelhos e adaptadores a serem vendidos é muito grande. A escolha do padrão de televisão a ser adotado vai afetar não só as emissoras, mas também as indústrias de eletroeletrônicos, telefonia e internet.
Padrões
Três padrões brigaram pela preferência dos políticos e técnicos, mas apenas dois continuam no páreo. O ATSC, de acordo com declarações feitas pelos envolvidos na discussão, está descartado. Desenvolvido nos EUA, ele não atende os objetivos do governo e das empresas. Sobram, então, o DVB, elaborado por um consórcio de empresas e pesquisadores da Europa e adotado no Velho Continente e em alguns países da Ásia (Índia, por exemplo) e Oceania (Austrália e Nova Zelândia), e o ISDB, feito no Japão e, por enquanto, adotado apenas por lá.
As escolhas se deram após estudos financiados pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e coordenados pelo Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (CPqD), empresa privada voltada para pesquisas no setor de telecomunicações. Foram formados vários consórcios de pesquisadores oriundos de universidades e empresas, que receberam cerca de R$ 40 milhões para testar todos os sistemas já desenvolvidos e ainda tentar criar um padrão brasileiro – idéia abandonada em meados do ano passado. O prazo para entrega de resultados não chegou a um ano. Alguns consórcios deixaram de apresentar resultados por falta de recursos – o governo atrasou o repasse – e tempo. Alguns estudos necessitavam de um prazo maior para serem elaborados, dada a complexidade dos temas.
Finalizados os trabalhos de pesquisa, o ATSC foi rapidamente eliminado da disputa. Adotado nos EUA, no Canadá e no México, ele não alcançava os objetivos do governo brasileiro (promover inclusão digital, a diversidade cultural e tecnologias nacionais, entre outros), nem dos outros grandes grupos interessados na definição: as emissoras de televisão e as empresas de telefonia.
O ATSC foi pensado para a realidade norte-americana, em que a maioria das pessoas possui TV a cabo, enquanto no Brasil a transmissão é feita a partir de antenas. Foi dada prioridade à qualidade de imagem e som, ambos de alta definição, enquanto os outros recursos foram relegados a segundo plano. É o menos avançado dos sistemas no quesito mobilidade –exigência do governo brasileiro e das empresas envolvidas na questão.
Às teles interessa a possibilidade de transmissão de conteúdo via celular, para gerar tráfego e assim aumentar sua fonte de renda por meio da venda de programação para os aparelhos. Afinal, entrariam num mercado cuja penetração é maior do que os telefones. A posição oficial das empresas está no documento "Análise dos modelos de negócios para empresas do Serviço Móvel Pessoal em relação à TV digital", entregue à Casa Civil. Nele, as operadoras de telefonia celular defendem a separação dos sistemas de transmissão de televisão. A TV terrestre, dizem, deve ser predominantemente gratuita e aberta. Já a TV portátil misturaria o modelo gratuito dos radiodifusores com o pago das telefônicas. “O máximo benefício para a sociedade acontece quando existe a possibilidade de união de esforços entre todos os setores”, afirma o documento. “A convivência entre o modelo de radiodifusão (canais abertos e gratuitos) e telecom (conteúdo sob demanda) é o mais vantajoso, pois garante o acesso a canais abertos e gratuitos e proporciona novos e maiores fluxos de receita. Os maiores fluxos de receita implicam maior sustentabilidade do modelo”.
O modelo ideal para esse tipo de negócio é o DVB, que possui a tecnologia mais avançada para transmissão em definição para celular (mais baixa do que a elaborada para TV). Outra característica do padrão (e talvez uma das mais importantes para o caso brasileiro), segundo a página de seus desenvolvedores, é que ele foi pensado para a introdução de até quatro canais com definição tradicional (standard) no mesmo espaço hoje ocupado por apenas um – ou seja, para a abertura de mais canais.
Emissoras
As emissoras não vêem com bons olhos a entrada de novos atores no mercado. “É preciso que se proporcionem às emissoras recursos que as possibilitem competir com outros serviços”, disse José Inácio Pizani, presidente da Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert), em reunião da Comissão Geral sobre a TV Digital realizada em 8 de fevereiro, na Câmara. A Abert representa algumas empresas, entre elas a Globo. Outras, porém, estão fora da associação. Entre elas, o SBT e a Bandeirantes. No veto à concorrência, entretanto, todas concordam. “Estamos falando de um setor de telefonia que movimenta cerca de US$ 100 bilhões e um de radiodifusão que gera perto de US$ 5 bilhões. É muito bizarro imaginar uma concorrência leal", afirmou Antonio de Pádua Teles de Carvalho, vice-presidente executivo da Rede Bandeirantes, no 5º encontro Tele.Síntese, que discute radiodifusão e telecomunicações.
Além disso, as emissoras também defendem a mobilidade, mas com outra visão. Elas pensam na possibilidade de aumentar o número de espectadores e o tempo que gastam na frente do aparelho, expostos à publicidade – sua principal fonte de renda. Para isso, precisam da melhor imagem possível num cenário de mobilidade. O ISDB, por enquanto, é o padrão que oferece melhor qualidade nas transmissões móveis, ou seja, em ônibus, trens, carros etc.
Daí a preferência pelo ISDB, o preferido do ministro das Comunicações, Hélio Costa, que durante anos foi repórter da Rede Globo. Costa já afirmou diversas vezes que o ISDB é o melhor para o país. A conclusão teria vindo das pesquisas encomendas pelo MCT.
Relatório
O relatório do CPqD que sintetiza os estudos não foi divulgado pelo MiniCom até hoje, mas vazou no dia 16 de fevereiro, para surpresa do ministério. O site Teletime obteve uma cópia e a divulgou na internet. O documento não diz qual padrão deve ser escolhido, mas dá detalhes sobre cada um, dando maior peso para o baixo custo da inclusão social. O segundo critério mais importante é o desempenho dos modelos de exploração, seguido pela possibilidade de desenvolvimento sustentável.
O CPqD propõe, entre outros pontos, a adoção de um modelo que explore a mobilidade, a interatividade local, a facilidade de adoção e o surgimento de receitas provenientes de novos serviços. Nesses quesitos, o ISDB obteve a maior nota (3,7), seguido de perto pelo DVB (3,5) e de longe pelo ATSC (2,9). O padrão oriundo do Japão, no entanto, teria o conversor mais caro.
Enquanto para o DVB a caixa de conversão custaria entre R$ 233 (para o modelo básico) e R$ 662 (o avançado), o IDSB teria preços entre 15% e 18% maiores, chegando, portanto, a pelo menos R$ 267 e R$ 761. O ATSC teria valores intermediários. Os valores não levam em conta o pagamento de royalties e licenças, que estão sendo negociados.
Por isso, afirma o relatório, a escolha deve levar em conta as contrapartidas oferecidas pelos detentores da tecnologia. Entre elas, a facilidade de transferência de tecnologia, a possibilidade de o Brasil modificar características de serviços, o reinvestimento ou desconto de royalties, o fomento à pesquisa e o acesso a mercados – item fundamental para o ganho de escala de produção e a conseqüente diminuição de preços.
“A escolha do sistema deve estar condicionada a uma ampla política industrial que envolva transferência de tecnologia, inserção da tecnologia brasileira no sistema internacional, instalação de fábricas no Brasil, possibilidade de ser uma plataforma exportadora, compensações comerciais, subcontratação de empresas brasileiras, (não) pagamento de royalties etc”, como afirma Gustavo Gindre.
Em relação a esses itens, os japoneses ofereceram desconto nos royalties, mas não aceitam “sócios” no desenvolvimento do sistema. Os europeus, por sua vez, têm postura contrária: querem receber os royalties e convidam pesquisadores brasileiros a participar do consórcio desenvolvedor, dando assento à mesa de decisão do sistema e permitindo a incorporação de soluções que vierem a ser desenvolvidas no Brasil.
A decisão está nas mãos do governo. Até agora, tudo indica que o padrão japonês será o escolhido, dada a pressão do ministro das Comunicações, pasta responsável pela coordenação dos trabalhos relacionados à digitalização dos meios de comunicação, e da maior emissora brasileira, a Rede Globo, que desde os anos 90 defende o padrão japonês.
Modelo de negócios
A briga, no entanto, deve durar ainda mais, pois a TV digital não passa a existir automaticamente após o decreto presidencial que definirá o padrão. Gindre lembra que ainda é preciso construir o modelo de negócios, ou seja, como os recursos da televisão digital serão aproveitados. A tendência é que todos os padrões, no futuro, ofereçam as mesmas possibilidades. No entanto cada país implementará a escolha da forma que achar melhor.
São várias as possibilidade de aplicação dos recursos da TVD. Atualmente, os sinais de televisão são transmitidos na freqüência de 6MHz. A digitalização permite que essa mesma faixa seja utilizada de qualquer forma. Nela, além de imagem e som, podem entrar dados. O que vai trafegar por esse espectro é decisão do modelo de negócios.
No mesmo “espaço” onde hoje é veiculado apenas um canal, será possível colocar até quatro com a atual qualidade de som e imagem (standart) – mas sem fantasmas e chuviscos – ou superior, como na Europa. Ou apenas um, com alta definição de som e imagem. Ou dois standarts com dois canais de dados, utilizáveis para troca de informações, por exemplo. Ou ainda um de alta definição de imagem e um canal de dados.
“Podemos ter até 392 canais em cada localidade, se utilizarmos tanto o VHF quanto o UHF”, explica o professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Luiz Fernando Soares, que participou de um dos grupos de pesquisa sobre o Sistema Brasileiro de Televisão Digital. Soares proferiu uma palestra no Ibase sobre o funcionamento da TVD no dia 16 de fevereiro. Nela, explicou que a possibilidade de utilização de quase 400 canais é possível pela falta de necessidade de utilizar “canais de guarda”, como ocorre hoje. Os canais de guarda são aqueles utilizados para evitar a interferência de sinais –problema inexistente na TVD. São canais sem transmissão, localizados entre dois em funcionamento.
Será necessário, portanto, adotar um dos três cenários possíveis. O de incrementação teria alta definição de imagem, interatividade local e um programa por canal, mesmo na possibilidade de mobilidade e portabilidade. O de diferenciação teria interatividade local e um canal de retorno, podendo ter ou não alta definição e multiprogramação. O de convergência teria interatividade local, serviços e possibilidade de alta definição e multiprogramação. A mobilidade e a portabilidade são possíveis nos dois últimos cenários.
A Abert considera que um cenário com alta definição, mobilidade e interatividade é a melhor opção, mas quer novos atores fora de seu negócio. Aí está uma definição, para além do padrão a ser adotado, que vai gerar polêmica. Afinal, se as negociações tomarem o rumo desejado pelas emissoras, não haverá diversificação do conteúdo transmitido pela TV brasileira como a era digital permite. Por isso alguns grupos e deputados já pedem adiamento da decisão.
O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), entidade que congrega organizações e ativistas, está organizando uma campanha pela análise do modelo de referência do Sistema Brasileiro de Televisão Digital, com realização de audiências públicas. Já o Intervozes, grupo de especialistas em comunicação, mantém dois abaixo-assinados na internet pedindo o adiamento da decisão e mais debates sobre o tema.
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