Autor original: Maria Eduarda Mattar
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As últimas décadas vêm sendo palco de uma crescente preocupação internacional pelo tráfico de seres humanos, que se expressa na atenção concedida ao tema por parte da opinião pública, dos organismos defensores dos direitos humanos e na criação de instrumentos legais destinados a impedir essa prática [Save the Children, Alexander e O`Connell Davidson 2002; Kempadoo 2001; 2003; Kempadoo e Doezema, 1998; Garosi, 2003; Campani e Garosi, 2003; Garosi e Salimbeni, 2003; Mameli, 2002]. No marco do crescente fluxo de migrantes vinculado à globalização, particularmente no sentido Sul/Norte, freqüentemente integrado por migrantes clandestinos, registros de casos de maus tratos, cárcere privado e escravização vinculados ao tráfico de pessoas provocam séria inquietação. Neste contexto, mulheres e crianças dos países pobres aparecem como especialmente vulneráveis.
Nos estudos sobre a problemática considera-se que a migração vinculada ao tráfico internacional de pessoas e ao trabalho sexual tende a ser protagonizada por habitantes de regiões pobres do mundo, deslocando-se ou sendo transladados para os países ricos (Kempadoo, 2005; Agustín, 2005), sobretudo, por mulheres. É importante assinalar a diferença entre ambos tipos de migração uma vez que, embora certas interpretações considerem a prostituição equivalente ao tráfico, viajar através das fronteiras para oferecer serviços sexuais não significa necessariamente estar em situação de tráfico (Agustín, 2005; Kligman e Limoncelli, 2005; Ribeiro e Sacramento, 2005).
Contudo, os fluxos migratórios envolvendo prostituição e tráfico são também registrados nos trânsitos Sul-Sul, tendo como destino temporário ou definitivo um dos países do Sul (OIM, 2003; 2005). No que se refere à América Latina e ao Caribe, as circulações ainda pouco pesquisadas no Suriname e na tríplice fronteira (esta última apontada como rota de tráfico internacional também de crianças e de adolescentes, particularmente entre Foz de Iguaçu e Cidade do Leste), oferecem exemplos desses movimentos (Antonius-Smits et alii. 1999; Silva, 2005; OIM 2005). Paralelamente, organizações não governamentais sediadas na Europa chamam a atenção sobre a participação de transgêneros (termo aqui utilizado para aludir ao universo diversificado integrado por travestis e transexuais), também elas objeto de violência e ameaças, nessa circulação através das fronteiras (Agustin, 2005).
Mulheres e transgêneros brasileiras integram esses fluxos de migração. No que se refere a Europa, a presença dessas migrantes é considerada significativa em nichos particulares do mercado do sexo de alguns países, por exemplo na Espanha (Piscitelli, 2005) e Portugal (Ribeiro e Sacramento, 2005; Ribeiro et alii 2005). Todavia, as cifras sobre os movimentos de migrantes brasileiras através das fronteiras, inseridas ou não na indústria do sexo, são altamente imprecisas. Sabe-se que há uma imensa diferença entre o número de brasileiros/as registrados nos censos em diversos países do Norte, na Europa ou nos Estados Unidos, e as estimativas de cidadãos, muitos deles residindo irregularmente no exterior, atendidos pelos consulados do Brasil desses países (Costa, 2004; Piscitelli, 2004).
As cifras sobre o tráfico de brasileiros/as também são imprecisas. No entanto, pesquisas recentes analisando os processos referentes a esse tipo de crime nos Tribunais de Justiça do Rio de Janeiro, de São Paulo, Goiás e Ceará, mostram um significativo crescimento no número de casos investigados em 2003 em relação aos anos anteriores. Dos 36 casos instaurados nos quatro estados, entre 2000 e 2003, mais da metade (51 por cento) é de 2003 (Ministério da Justiça/Nações Unidas, 2004). Esse estudo, que considera a possibilidade da relação entre o aumento desses casos e o maior conhecimento da problemática por parte da população, aponta para aspectos importantes no que se refere à dinâmica dessa modalidade de tráfico de pessoas.
A pesquisa nos Tribunais de Justiça, um dos estudos mais importantes para a compreensão do tráfico de pessoas realizadas no Brasil, faz parte do projeto piloto de combate ao tráfico internacional de mulheres para fins de exploração sexual, com atuação em quatro estados (Goiás, Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo), desenvolvido no marco de uma parceria entre a Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC), iniciada em agosto de 2003.
No total, foram alocados recursos para os dois primeiros anos do Programa Global de Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos, experiência que, espera-se, possa ser ampliada e reproduzida de forma mais abrangente em todo país. As ações específicas, em grande parte já realizadas, incluem a realização de um diagnóstico, capacitação dos operadores do direito e uma campanha. A Campanha já em andamento inclui o número de um telefone, na Divisão de Direitos Humanos da Polícia Federal, que já está recebendo denúncias de vítimas ou familiares, bem como um 0800 nacional de referência mantido pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH).
O diagnóstico realizado em Goiás, Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo – entre janeiro de 2000 e dezembro de 2003 – estimulou a realização de um mapeamento do perfil das vítimas e dos aliciadores, e vem sendo utilizado como parâmetro para a programação de ações direcionadas de prevenção e combate ao tráfico de brasileiros. No estado de São Paulo essas ações já foram implantadas, tendo sido iniciadas com a realização do “I Seminário Internacional de Tráfico de Mulheres” , em outubro de 2003, pela Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, juntamente com o Consulado dos Estados Unidos da América. Após a realização do Seminário, foi iniciada uma ampla mobilização que resultou na instalação, em maio de 2004, do primeiro Escritório de Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos para Fins de Exploração Sexual do País, numa parceria com o Ministério da Justiça (por intermédio de sua Secretaria Nacional da Justiça).
A iniciativa, que conta com o apoio do Conselho Estadual da Condição Feminina, do Consulado dos Estados Unidos da América, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), do Serviço da Mulher Marginalizada, da ASBRAD entre outras entidades da sociedade civil, faz parte da conjugação de esforços dos níveis de governo (Federal e Estadual) e da sociedade na defesa dos direitos humanos e da cidadania. O Escritório instalado na sede da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania tem como objetivo garantir a orientação e o atendimento adequados às vítimas do tráfico de pessoas e também a seus familiares. As ações desenvolvidas pelo novo órgão terão como meta auxiliar as autoridades competentes na desarticulação das redes internacionais de tráfico de seres humanos, principalmente na conscientização das possíveis vítimas, promovendo atividades educacionais e informativas.
Formado por uma equipe multidisciplinar, o Escritório ratifica a posição de concordância com o protocolo de prevenção e combate ao tráfico de pessoas da Organização das Nações Unidas (ONU), que estabelece as medidas que serão adotadas por todos os países para o combate à prática, em suplemento à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, mais conhecida como Convenção de Palermo. O Escritório de São Paulo desenvolve ações educacionais e informativas (seminários, cursos, campanhas, redação de cartilhas e de folhetos explicativos), orientação e o atendimento às vítimas do tráfico de pessoas e também seus familiares. Finalmente, contribui ainda com informações para o banco de dados nacional, em fase de construção, que será gerenciado pelo Ministério da Justiça quando estiver concluído.
Como estratégia de fortalecimento das suas ações e reafirmando que o enfrentamento desse problema só terá resultado com a união dos esforços entre as esferas de governo, organizações não-governamentais e a sociedade civil organizada, o Escritório de São Paulo criou um Conselho Consultivo, formado por representantes de instituições governamentais e não governamentais. Este Conselho fará o acompanhamento das ações e funcionará como articulador das retaguardas necessárias para o atendimento às pessoas traficadas.
Depois de vários meses de trabalho o Escritório no centro de São Paulo atendeu poucos casos de tráfico de pessoas, confirmando-se os dados já apontados em estudos sobre a problemática, assim como no Diagnóstico do Ministério da Justiça segundo os quais “apenas 30 por cento dos casos chegaram ao conhecimento das autoridades depois de investigação policial ou prisão em flagrante do réu. A grande maioria só foi apurada devido a denúncias anônimas ou depoimentos de parentes, amigos ou da própria vítima”. Diante dessa situação está sendo discutida a possibilidade de uma atuação permanente, além do espaço do Escritório no centro da cidade, no aeroporto internacional de Guarulhos. Esse serviço teria coordenação federal e funcionaria dentro da área restrita do aeroporto desempenhando um duplo papel de atendimento dos brasileiros deportados e não admitidos que retornam ao país por Guarulhos, bem como a triagem de casos de tráfico e um intenso trabalho de prevenção e de disseminação de informações.
De acordo com informações fornecidas pelo Departamento da Polícia Federal, em 2004, foi registrado o retorno de cerca de 22.500 brasileiros/as deportados/as (pessoas que já se encontravam no país de destino e foram mandadas de volta para o país de origem porque estavam em situação irregular) ou não admitidos em outros países (pessoas cuja entrada foi recusada no país de destino). Desses, em torno de 15.000 retornaram ao Brasil via Guarulhos. Os demais chegaram através dos aeroportos de Belém, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Dos casos de Guarulhos, aproximadamente, 33% dizem respeito a mulheres. De acordo com essas informações, no universo de pessoas deportadas há casos de pessoas que se encontravam em situação de irregularidade ou mesmo traficadas e que estavam sendo exploradas sexualmente. Como grande parte dessas pessoas está em trânsito para outras cidades, seria importante acolhêlas no próprio aeroporto e fazer uma triagem inicial, facilitando o encaminhamento das vítimas a outros serviços de atendimento disponíveis nos estados de origem, principalmente Goiás e Ceará onde o projeto do Ministério da Justiça e do UNODC também atua.
Um dos principais objetivos da pesquisa na qual se baseia esse relatório é justamente o de fornecer dados confiáveis sobre pessoas envolvidas no tráfico internacional de seres humanos que retornam ao Brasil via aeroporto de Guarulhos. O Ministério da Justiça e a Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo consideram que produzir conhecimento sobre a temática contribui para trabalhar diversas dimensões da prevenção do tráfico e, ao mesmo tempo, oferecer elementos para orientar as ações do Escritório do Combate ao Tráfico de Seres Humanos na Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo, fornecendo ao governo federal informações para aperfeiçoar o trabalho de algumas das suas instituições, como o Departamento de Polícia Federal, subsidiando, também o Ministério das Relações Exteriores com dados confiáveis sobre a deportação de brasileiros como forma de auxiliar o trabalho diplomático e as políticas do Ministério da Justiça de enfrentamento ao tráfico de pessoas. O trabalho que se segue pretende ainda servir de subsídio para os diversos projetos de cooperação internacional relacionados a essa temática.
A íntegra da pesquisa, de título "Indícios de tráfico de pessoas no universo de deportadas e não admitidas que regressam ao Brasil via o aeroporto de Guarulhos", pode ser obtida na área de Downloads desta página.
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