Quem chega à biblioteca do Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho [IEPIC], em Niterói (RJ), encontra uma cena incomum: alunos estudando sobre o resgate da contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinente à história do Brasil. A atividade é fruto da persistência de Perses Maria Canellas da Cunha, fundadora do Espaço de Leitura Griot: ouvindo, contando e recontando histórias. O projeto é baseado na oralidade e na contação de histórias africanas para tratar de temas como racismo, mitologia africana, religiosidade, diáspora, África antes da colonização, personalidades negras na história, quilombos.Graduada em Geografia, pós-graduada em Raça, Etnia e Eduacação no Brasil e mestre em Educação e Questões Raciais, títulos conferidos pela Universidade Federal Fluminense [UFF], Perses conversou com a Rets sobre esse projeto, que teve início em 2004 com uma enorme faxina para reativar a biblioteca da escola, fechada há três anos. O local foi todo modificado para abrigar o Espaço Griot que, em francês, significa contador de histórias. Na África, são chamados de Dieles - sangue, força vital. E parece que o resultado das atividades realizadas ali é uma mistura desses significados: alunos que debatem sobre seu cotidiano, conhecem um pouco mais sobre nossas origens africanas, aprendem a contar sua história de vida e a resgatar sua autoestima, ou seja, estudantes que se tornam sujeitos de sua própria história. Rets - O que é o Espaço de Leitura de Leitura Griot: contando e recontando histórias? Perses Canellas - O Espaço de Leitura Griot: ouvindo, contando e recontando histórias é um projeto de leitura que têm como base a contação de histórias africanas, a fim de levar o aluno a conhecer um pouco das nossas origens africanas. A partir daí o aluno começa a contar as suas histórias de vida, a resgatar a sua auto-estima e a discutir temas que fazem parte do seu cotidiano como: racismo, cotas para negros na universidade, mitologia africana, religiosidade, diáspora, África antes da colonização, personalidades negras na história, quilombos e diversos outros temas. Rets - Quando você começou esse trabalho? Perses Canellas - Eu comecei a trabalhar na implementação da Lei 10.639/03 - que torna obrigatório o ensino das culturas afro-brasileira e indígena na rede pública de ensino - em 2004, quando passei a lecionar uma disciplina chamada Atividades Complementares [ATCOM] - que atualmente é chamada de Projetos. Nessa disciplina, o professor desenvolve um projeto com os alunos. Eu aproveitei a oportunidade para começar a trabalhar com as temáticas ligadas à África e com a história do negro em nossa sociedade. Então, escrevi um projeto de leitura baseado em contação de historias africanas dando ênfase à oralidade. Mas para a realização desse projeto, idealizei um espaço onde as crianças pudessem se sentar em círculo para ouvir e contar suas histórias, assim como acontece na África. Um lugar que tivesse fotografias delas nas paredes, revistas e livros com temas ligados ao negro. Um lugar onde eles pudessem ouvir samba, hip-hop, funk, assistir vídeos como "Kiriku", "A capoeira de mestre Bimba" e outros. Assim, esse espaço foi organizado e está funcionando na biblioteca da escola, que estava fechada há três anos. Rets - Você obteve algum tipo de ajuda para transformar essa biblioteca desativada no Espaço de Leitura Griot? Como isso aconteceu? Perses Canellas - Eu lamento muito não ter fotografado o dia em que eu abri a porta da biblioteca pela primeira vez, após três anos fechada. As paredes estavam pintadas; os livros todos muito bem catalogados e arrumados nas estantes; as mesinhas ainda tinham as cadeiras, mas todas tão tomadas por cupins que não houve possibilidade de aproveitar nenhuma delas. Os armários estavam trancados com cadeados. Pedi permissão à diretora na época, que consentiu que eu arrebentasse os cadeados. Encontrei papéis velhos, brinquedos, jogos, tinta estragada... duas televisões, cada uma mais antiga que a outra. Muita teia de aranha e poeira nos livros e por toda parte. Demorei um mês fazendo a limpeza, pois naquele ano eu só tinha um dia de folga na semana para fazer a arrumação. Chegava às 7h e saía às 17h. Somente a professora Ruth - que tem um trabalho de inclusão realizado numa sala ao lado da biblioteca - me ajudou nesta tarefa. Retirei toda a mobília, uma vez que não servia para nada. Fiquei com as estantes e os livros. Trouxe de minha casa uma aparelhagem de som, vassouras, material de limpeza. Comprei esteiras para implementar aquela noção de espaço da contação de histórias como acontece na África. Consegui umas cadeiras na própria escola e depois consegui uma TV e um DVD. As revistas que usamos eu compro ou ganho da professora Ângela, que dá aulas de Português. Os livros com as histórias africanas e os DVDs de músicas, filmes e documentários são todos meus. Os enfeites das paredes eu faço, compro e, às vezes, ganho. Para concluir, até hoje não tive nenhum tipo de apoio financeiro por parte de ninguém para construir esse espaço. Rets - Essa falta de apoio se deve a que? Perses Canellas - A falta de apoio se deve ao fato de que a maioria das pessoas não entende o verdadeiro significado de implementar essa lei na escola. Muitas pessoas acham que isso é um absurdo porque acreditam que no Brasil não existe racismo. O desenvolvimento da ideologia de democracia racial no Brasil fez com que a maioria da população não acreditasse no racismo, como se isso não pertencesse ao nosso país. Canso de ouvir que racismo só existe nos Estados Unidos ou na Europa. Então, quando a lei foi aprovada, em 2003, foi uma surpresa para a maioria dos educadores. Ouvi diversos tipos de questionamentos, tais como: "Mas para que isso?" "Para que estudar África?" "Se for para falar de negro vai ter que falar de branco." Acontece que todo esse despreparo deve-se justamente ao fato de que nunca estudamos a verdadeira história do Brasil, não conhecemos nada de África e nem das lutas dos nossos antepassados. Ser negro era sinônimo de ser escravo e isso bastava para se entender a presença e a participação do negro em nossa história. Rets - Qual é a percepção dos alunos assim que entram no espaço de leitura? Perses Canellas - Quando eu inicio o trabalho com os alunos no Espaço de Leitura Griot, eles têm um estranhamento, que eu considero bem apropriado, uma vez que não é comum no espaço escolar um lugar onde o negro tenha papel de destaque positivo. Eles ficam meio assustados e reproduzem frases preconceituosas, do tipo: "Não leva a mal não, professora, mas na África só tem coisa do mal". Rets - Como você começa a desenvolver as atividades? Como faz para mudar esse tipo de conceito? Perses Canellas - Um exemplo prático. Escolhi o tema 'cabelo' para trabalhar com os alunos. Contei uma história africana que falava sobre cabelos e questionava o seguinte: "Por que as mulheres têm cabelos longos?" Depois, partimos para a conversa e falamos sobre os tipos de cabelos e tudo o que está associado a cada tipo. Falamos também sobre conceitos de 'cabelo bom' e 'cabelo ruim', consultamos revistas que mostravam pessoas com diversos tipos de penteados e lemos um pequeno texto do Raul Lody*, que fala da cabeça como um território de identidade. Ouvimos músicas que falam sobre cabelo, lemos poesias etc. Cada um contou uma história pessoal relacionada com cabelo (e foram várias) e depois de toda discussão partimos para o trabalho criativo que resultou em poesia, redação, colagem e outros materiais. Rets - Então, depois de algum tempo participando das atividades, o estranhamento dos alunos com relação ao Espaço se modifica? Em que sentido? Perses Canellas - Com o passar dos meses, ouvindo as histórias e debatendo os conceitos, eles vão mudando as opiniões e a postura frente ao lugar. Querem tirar fotos para colocar na parede, querem ler os livros que eu utilizo e outros que fazem parte da biblioteca e começam a trazer filmes que tratam da questão racial para assistir com grupo, reportagens ou livros que leram e todo tipo de material que tenha a ver com o assunto. Rets - Quantas crianças estão envolvidas? Perses Canellas - Eu tenho uma carga horária de doze tempos, isso significa seis turmas com uma média de 35 alunos cada. Desde o primeiro ano que comecei a trabalhar no projeto, pego duas ou três turmas das séries iniciais do ensino fundamental, para ver o resultado com elas. Tenho também alunos dos anos anteriores que, sempre que podem, pedem para assistir às aulas. Além desses, há ainda aqueles que nunca foram meus alunos, mas que conhecem o trabalho pelos colegas e vão para lá pedir para assistir às aulas, ler um livro, assistir a um vídeo ou ouvir uma música. Rets - Pelo que entendi o Espaço se tornou uma referência para as crianças e os jovens dessa escola. Você percebe isso? O que você sente quando se depara com um jovem que nunca foi seu aluno e pede para participar das atividades do Espaço? Perses Canellas - Essa é a resposta mais gratificante que eu tenho e a prova da eficácia desse projeto: o fato de o Espaço Griot estar se tornando uma referência para eles, refletindo no desejo dos alunos de estudarem naquela sala. Mas esse gostar do espaço não é sem motivo. Isso acontece porque ali eles conseguem exercer sua negritude. Eu não os ensino a gostar de black music, pagode, funk ou hip-hop, nem a reconhecer os atores negros, ou a assistir aos seriados americanos em que os personagens são todos negros, a dançar samba ou funk. Eles já os reconhecem e praticam. No Espaço Griot, eles se sentem a vontade para afirmar os seus gostos, para assumir a sua religião de origem africana e de se sentirem bonitos. Eles se sentem à vontade para estudar, durante o ano, o conteúdo que é todo planejado de acordo com a lei 10.639/03: história da África e dos africanos; a luta dos negros no Brasil; a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional; o resgate da contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil. Estes temas devem fazer parte do currículo da escola; se não fazem, é por conta do total despreparo das instituições escolares em relação à implantação da lei. Rets - De onde vem a palavra Griot? O que significa? Perses Canellas - Griot, em francês, significa contador de histórias. Na África, porém, eles eram chamados Dieles - sangue, força vital. Na verdade, esses homens eram os detentores de conhecimentos alcançados e acumulados através dos tempos e repassados através do relato oral entre os povos da África Ocidental, na região que atualmente conhecemos como por Mali, Gâmbia, Guiné e Senegal. Os Griots eram trovadores, contadores de histórias e animadores de públicos. Verdadeiros museus vivos. Os Griots podiam ter três especializações: músicos, responsáveis por tocar instrumentos, pela cantoria e pela composição das músicas; embaixadores, voltados para a mediação aristocrática; genealogistas, historiadores (preocupavam-se com histórias de famílias) tornado-se arquivistas da sociedade africana. Rets - Eles existem até hoje? Perses Canellas - Os Griots existem até hoje e muitos historiadores na atualidade fazem as suas pesquisas consultando esses homens, que são bibliotecas vivas. Ser um Griot chega a ser uma tradição, uma linhagem familiar. E continuam sendo muito respeitados nos seus países. Rets - Os participantes do Espaço demonstram curiosidade sobre os Griots? Perses Canellas - Os meus alunos se interessam muito em saber sobre os Griots e de ouvir histórias sobre eles. E eu aproveito essa curiosidade para iniciar um debate sobre a importância dos velhos em nossa sociedade e nas famílias; sobre a importância da memória do grupo do qual fazemos parte; sobre o conhecimento de nossas origens. Rets - Qual é a importância de se incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira"? Perses Canellas - Como já disse, o que me motivou a criar esse projeto foi a necessidade da implementação da Lei 10.639/03 que altera a LDB (Lei Diretrizes e Bases) e estabelece as diretrizes curriculares para a implementação da mesma. Esta lei instituiu a obrigatoriedade do ensino de História da África e dos Africanos no currículo escolar do ensino fundamental e médio. Nesse sentido, vale lembrar que a aprovação dessa lei é fruto de muita luta do movimento negro na tentativa de incluir no currículo escolar a participação dos negros na construção do país, não como escravos, mas como sujeitos detentores de vontade e ações transformadoras na construção e formação da sociedade brasileira. Sendo o Brasil um país multiétnico e pluricultural, ter no seu currículo oficial temáticas como história e cultura afro-brasileira e indígena vem garantir o direito dos alunos de ampliar seus conhecimentos, sem serem obrigados a negar a si mesmos nem ao grupo étnico/racial ao qual pertencem. Já é tempo de mudar a forma de se contar a história do país. Não somos descendentes de escravos, mas de africanos dos quais recebemos um legado cultural. Rets - E se você tivesse que destacar o grande legado desse projeto, qual seria e por quê? Perses Canellas - A grande contribuição desse projeto é justamente a mudança de comportamento em relação ao outro e às suas origens. A diminuição das tensões e o de se sentir tão à vontade consigo a ponto de contar sua história de vida, de se reconhecer como negro ou afrodescendente. O principal legado desse projeto é fazer com que os participantes se tornem sujeitos de sua própria história. *Raul Giovanni Motta Lody é antropólogo e museólogo do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, no Rio de Janeiro, e autor de Cabelos de Axé: identidade e resistência Link relacionado: www.espacogriot.blogspot.comPor: Viviane Gomes
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