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Filhos do cárcere

Autor original: Mariana Loiola

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Filhos do cárcere
Foto: Agência Carta Maior

Na última quarta-feira, dia 29 de março, o governador do estado de São Paulo deu início à desativação das 18 unidades do Complexo do Tatuapé da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), entidade responsável pela internação de crianças e adolescentes infratores naquele estado. A instituição, que completa 30 anos de existência no próximo dia 26 de abril, atualmente responde processos na Comissão e na Corte Interamericanas de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA). Para o advogado Ariel de Castro Alves, coordenador estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) e membro da Comissão da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a desativação do “Carandiru da Febem”, que

abriga atualmente mais de 1.200 internos, não resolverá de imediato todos os problemas da instituição.

Casos de mortes, torturas, rebeliões, péssimas condições de higiene, falta de atendimento médico e ausência de projeto pedagógico nas unidades da Febem são alguns dos problemas apontados por organizações da sociedade civil que lutam há anos pelo fechamento da instituição. Apesar das denúncias, os problemas permanecem. Segundo as entidades, só em 2005 foram mais de mil fugas, 40 rebeliões e sete mortes.

Nesta mesma semana, no dia 27 de março, a Febem foi condenada a pagar indenização por danos materiais e morais aos pais do jovem Ronaldo Garbeloto, morto em 14 de setembro de 2003, em uma das unidades de internação do Complexo Franco da Rocha. O Estado é condenado pelas omissões e pela não garantia da integridade e da vida de Ronaldo enquanto ele estava lá dentro (ele vinha sendo ameaçado de morte), sendo estipulada uma indenização de 30 salários mínimos por danos morais e 20 salários mínimos pelos danos materiais. A advogada do caso, Eloísa Machado de Almeida, representante da ONG Conectas Direitos Humanos - entidade que propôs a ação -, contesta o valor estipulado na sentença: “Um jovem interno custa ao Estado cerca de R$ 60 mil pelo período completo de três anos da internação; permitir que ele morra e arcar com uma indenização de R$ 9 mil é um bom negócio para o Estado, e o Judiciário permite esta situação”, afirmou a advogada, que vai recorrer da decisão. O caso de Ronaldo é apenas um dos muitos episódios que mobilizam entidades de direitos humanos no combate às violações de direitos humanos na Febem.

No entanto, além da desativação do complexo de Tatuapé, outros dois fatos recentes podem dar um novo impulso para a extinção da instituição: a possibilidade de que a Febem seja julgada na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA e o projeto de lei que extingue a Febem (PL 877/1999), de autoria do deputado estadual Renato Simões (PT), e que, depois de cinco anos em tramitação, está pronto para ser votado na Assembléia Legislativa de São Paulo.

Sem acordo

No último dia 13 de março, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA realizou, em Washington (EUA), uma audiência sobre a Febem de São Paulo. A audiência discutiu o processo sobre a Febem iniciado com a denúncia feita em 2000 - pela Comissão Teotônio Vilela (CTV) e pelo Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (Cejil) - sobre diversas violações de direitos humanos em diversas unidades, dentre elas, as dos complexos do Tatuapé, de Raposo Tavares, do Brás e de Franco da Rocha. As entidades peticionárias fizeram o histórico dos problemas da Febem, além dos problemas recentes que geraram a concessão de medidas provisionais pela Corte Interamericana, diante das graves violações no complexo do Tatuapé. Até o mês de julho, a Comissão deve decidir se encaminha ou não o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que fica sediada na Costa Rica.

As entidades procuraram demonstrar que as violações de direitos humanos permanecem sistemáticas na Febem, e que o Estado não tem tomado as providências necessárias para preveni-las ou repará-las. Foram criticadas ainda as promessas não cumpridas de regionalização, municipalização das medidas em meio aberto e da aplicação de um projeto pedagógico que vise à educação e à ressocialização dos adolescentes.

Os representantes do estado de São Paulo propuseram um acordo que consistia em quatro indenizações e a possibilidade de gestão compartilhada com as ONGs na administração de uma das unidades de internação. As entidades consideraram as propostas insuficientes diante da grave situação da Febem, por isso não houve acordo. “Foram propostas ridículas, irrisórias e absurdas”, diz o advogado Ariel de Castro Alves, que participou da audiência na condição de especialista.

Berenice Gianella, presidente da Febem, alega que as ONGs não apresentam propostas para possíveis mudanças. “Convidamos os representantes de ONGs presentes a administrar e dirigir uma unidade da Febem, mas as entidades disseram que não querem dirigir unidades”, reclama.

Para as entidades é inaceitável que o Estado, em vez de assumir as responsabilidades, funções e atribuições que lhe são inerentes, queira repassá-las para a sociedade civil. “Não cabe às ONGs a administração de unidades da Febem. O papel das ONGs é de fiscalizar e propor políticas públicas”, enfatiza a advogada Eloísa Machado de Almeida, da Conectas, que participou da audiência. O acesso das entidades nas unidades da Febem para a realização de visitas de fiscalização não é permitido pela instituição, o que suscitou uma ação pública movida por diversas entidades em novembro de 2005.

”A Febem é um dos órgãos mais fiscalizados do país. Têm acesso irrestrito à Febem, a qualquer hora, membros do Poder Judiciário, do Ministério Público, parlamentares estaduais e federais, membros do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), membros do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condeca) e membros dos Conselhos Tutelares e dos Conselhos Municipais de Defesa do Direito da Criança e do Adolescente. As demais ONGs estão convidadas a participar do trabalho de ressocialização dos jovens em todas as unidades da Febem”, defende a presidente da Febem.

Por ser alvo de medidas provisórias da Corte, o complexo do Tatuapé recebeu visitas de algumas entidades recentemente. O cenário era de barbárie, relata Conceição Paganele, presidente da Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco (Amar). “Vimos adolescentes espancados, baleados, com mordidas de cachorro, braço quebrado, sem dente etc. Estão todos oprimidos, ameaçados, não têm roupa, calçado, produto de higiene ou limpeza”, conta.

Sobre as denúncias de torturas e maus tratos, a presidente da Febem rebate: “Há mais de oito meses não temos ou recebemos denúncias de qualquer tipo de maus tratos ou agressão contra adolescentes sob a guarda do Estado. Por outro lado, a Corregedoria da Febem tem investigado todas as denúncias que nos chegam e punido os responsáveis, com suspensão, afastamento e até demissão”, afirma Berenice.

A própria Corregedoria da Febem, que é subordinada à presidência da instituição, é alvo de crítica. De acordo com uma reportagem do jornal O Estado de São Paulo de maio de 2004, 94% das sindicâncias instauradas pela Corregedoria da Febem foram arquivadas sem qualquer punição, a maioria por falta de provas.

As entidades denunciam que as unidades, que deveriam ter um projeto pedagógico que resultasse na ressocialização dos adolescentes, cada vez mais se aproximam do modelo prisional, com a aplicação de castigos semelhantes aos adotados para os presos adultos. “A Febem está caminhando para seguir os moldes do sistema penitenciário do Estado, onde ocorrem de duas a três rebeliões por dia. O fato de a atual presidente da Febem ter sido secretária-adjunta da administração penitenciária agrava a situação”, diz Ariel.

Segundo Cida Gomes, representante do Grupo de Trabalho Pelo Fechamento da Febem/SP, o modelo da Febem não dá certo porque é incompatível com todas as convenções internacionais de garantia constitucional de respeito e defesa dos direitos humanos. “É um exemplo de eficiência nazista de encarceramento e extermínio das populações marginalizadas, hipócrita, mantida pelo poder judiciário”, caracteriza. Criado em 1999, o Grupo de Trabalho pelo Fechamento da Febem atua em todo o estado de São Paulo, recebendo informações sobre a atuação de cada uma das unidades da Febem.

Propostas

Para as organizações da sociedade civil, é necessária a completa extinção do modelo representado pela Febem, com a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), baseado na implantação de pequenas unidades socioeducativas; abertura de vagas de semi-liberdade; priorização das medidas socioeducativas em meio aberto; trabalho preventivo; controle externo, com Ouvidoria e Corregedoria independentes; projeto pedagógico aplicado por educadores e não por agentes penitenciários e policiais; capacitação, formação e qualificação dos funcionários; entre outras medidas. “Tudo o que deve ser executado está escrito no artigo 227 da Constituição (ECA). Apenas deve ser cumprido. A responsabilidade é de todos nós. Temos que criar, junto com cada município, uma rede preventiva para um dia acabar com todas as formas de internação”, diz Cida Gomes.

As entidades de direitos humanos apóiam o Projeto de Lei (877/1999) do deputado Renato Simões, do  PT, que propõe a extinção da Febem, transfere as responsabilidades para a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social, sob a fiscalização do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Condeca) e determina o prazo de 90 dias para que seja feito o reordenamento institucional. O projeto se baseia no fato de que o marco institucional da Febem é uma legislação que não está mais em vigor, o extinto Código de Menores. A proposta é municipalizar as unidades de internação, descentralizar o atendimento, exigindo-se que atendam grupos pequenos.

Responsabilidade e interesses

A falta de vontade política é uma das explicações para a resistência à aplicação de lei. “O governo só prioriza a Febem quando os jovens estão em cima dos telhados”, critica Ariel. Além disso, segundo o advogado, há muitos interesses envolvidos na manutenção da Febem. “Existe um pedido de CPI na Febem sendo aguardado há três anos, mas o governo do estado não o autoriza. É preciso investigar como está sendo usado o orçamento da Febem”.

A responsabilidade de toda a sociedade também é apontada pelas entidades. “A sociedade é quem paga pelas violações na Febem, porque esses jovens saem muito mais violentos e com vontade de se vingar pelo que sofreram”, alerta Conceição. Muitas pessoas apóiam o fortalecimento das punições e o aumento da repressão e ignoram que, pelo ECA, os adolescentes infratores são devidamente responsabilizados, por meio de medidas socioeducativas, que não vislumbram só a punição, mas principalmente a ressocialização.

Para Ariel de Castro Alves, a sociedade não acredita no sistema de recuperação em razão dos maus exemplos, como o da Febem, mas destaca exemplos bem-sucedidos de aplicação de medidas socioeducativas em meio aberto, como o da cidade de São Carlos e o do Rio Grande do Sul, que há três extinguiu a Febem gaúcha, que tinha os moldes da de São Paulo. “São duas experiências que têm tido bons resultados com a adoção de medidas socioeducativas e atendimento a pequenos grupos, com a diminuição dos índices de reincidência”, cita.

Mariana Loiola

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