Autor original: Luísa Gockel
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![]() Foto: João Zinclar | ![]() |
No dia 8 de março, cerca de 2 mil mulheres integrantes da Via Campesina invadiram o horto florestal da empresa Aracruz Celulose, em Barra do Ribeiro, no Rio Grande do Sul. A ocupação e destruição do laboratório, responsável pela produção e clonagem de mudas de árvores, foi em protesto contra o avanço do chamado “deserto verde” – grandes plantações de eucalipto para a extração da celulose. A danificação das instalações da empresa ganhou a sociedade e foi repudiada pela grande imprensa.
Devido à grande repercussão do ato, a metodologia de reivindicação dos movimentos rurais foi posta em xeque, o que acabou afetando o maior deles: o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). No rastro dos debates, uma pesquisa do Ibope, encomendada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), mostrou que 76% da população considera antidemocráticas as invasões de terras promovidas pelo MST.
Para Marina dos Santos, da Direção Nacional do MST, os números divulgados na pesquisa não são verdadeiros. “Não fazem sentido, porque na prática é a sociedade que nos dá condições de tocar a luta”, contesta, em entrevista exclusiva à Rets. A dirigente explica que em todos os acampamentos as pessoas sobrevivem de doações da comunidade, pelo menos até haver algum tipo de conquista. A dirigente acredita na simpatia da população pelas causas do movimento e considera injusta a cobertura conferida ao ato da Via Campesina por parte da grande imprensa. E arremata: “O Judiciário, junto à grande mídia, é um dos setores que mais atrapalham a reforma agrária”.
A aparente intensificação das ações do MST, com ocupações simultâneas em 17 estados, segundo Marina, foi espontânea. Ela explica que apesar de a imprensa ter divulgado que estaria sendo organizada uma marcha nacional, as ações não foram combinadas e, para ela, são naturais neste último ano de governo. “Os estados têm autonomia. Existem famílias acampadas há cinco ou seis anos que estão vendo o governo chegar ao fim e não conseguiram nada”, afirma. Ela garante, porém, que em abril o MST vai se juntar aos trabalhadores urbanos, fazer vigílias e cobrar a punição dos responsáveis pelo Massacre de Eldorado dos Carajás, que está completando dez anos.
Marina não tem dúvidas de que as ocupações são o caminho mais curto para a reforma agrária. “Nesses 22 anos de MST, esse método tem se mostrado eficiente porque envolve o próprio sujeito em ações diretas de conquista”, defende. E explica que no último ano do Governo Lula, o qual considera “refém do agronegócio”, as reivindicações serão as mesmas dos anos anteriores: a atualização do índice de produtividade e o assentamento das 170 mil famílias acampadas hoje no país. Assegura, no entanto, que o movimento não está nada otimista.
Rets - Você acredita que os métodos de reivindicação e pressão que o MST usa têm se mostrado eficientes?
Marina dos Santos - A ocupação da terra improdutiva tem se revelado eficiente porque organiza e mobiliza os próprios trabalhadores que têm interesse na conquista da terra. Ninguém faz o trabalho por eles. São eles que cortam a cerca do latifúndio que não cumpre a sua função social garantida pela Constituição. Nesses 22 anos de MST, esse método tem se mostrado eficiente porque envolve o próprio sujeito em ações diretas de conquista. A Marcha Nacional também se revelou um ótimo método. Os próprios estados têm desenvolvido marchas também, chamando a atenção para a questão.
Rets – Uma pesquisa do Ibope encomendada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) mostrou que 76% da população considera antidemocráticas as invasões de terras promovidas pelo MST. Você contesta esses números?
Marina dos Santos - Achamos estranho esse resultado. Normalmente, nos acampamentos, até termos algum tipo de conquista, o que pode demorar oito meses, um ano, sobrevivemos de doações das próprias comunidades locais. Elas realizam campanhas para recolher agasalhos, coisas para compor a escola e alimentos. Não faz sentido essa pesquisa, porque na prática é a sociedade que nos dá condições de tocar a luta.
Rets - Muitas vezes o Incra obtém na Justiça Federal decisão autorizando a imissão de posse de alguma área, mas que acaba suspensa por alguma instância local. Você acredita numa tendência de criminalização do movimento por parte do Judiciário?
Marina dos Santos - Não tenho a menor dúvida. O Judiciário, junto à grande mídia, é um dos maiores inimigos da reforma agrária e criminaliza os movimentos sociais que lutam contra seus interesses. É comum o juiz do município que recebe o processo de desapropriação ser fazendeiro ou filho de algum fazendeiro. E muitas vezes eles emperram o processo.
Rets – Dificilmente o governo vai cumprir as metas de assentamento até o fim do ano. Você acha que o Governo Lula falhou nesse aspecto?
Marina dos Santos - O Lula ficou refém da política econômica, que é uma continuidade do governo anterior. Ele privilegiou as grandes empresas e as transnacionais, e por isso não vai cumprir a meta. Nem o índice de produtividade, que determina se uma terra é produtiva ou não, ele atualizou. Usam um índice de 1975! O governo é refém do agronegócio e das monoculturas, principalmente de cana e de eucalipto. Há o privilégio destes setores e dos bancos também.
Rets - Em março, o MST fez ocupações simultâneas em muitos estados. Existe a formação de uma jornada nacional, a exemplo da realizada em abril do ano retrasado, no chamado Abril Vermelho?
Marina dos Santos - A grande imprensa tratou assim, mas não houve uma combinação. O que houve foi que os estados têm autonomia para se organizar. Existem famílias acampadas há cinco ou seis anos que estão vendo o governo chegar ao fim e não conseguiram nada.
Em abril, sim, estamos planejando manifestações para lembrar os dez anos do massacre de Eldorado dos Carajás, em que 19 trabalhadores foram assassinados e até hoje ninguém foi preso. É o Poder Judiciário defendendo seus interesses. As famílias das vítimas estão abandonadas. Não há políticas públicas que dêem assistência de saúde ou indenizações. Vão acontecer mobilizações nos estados, exigindo a punição dos responsáveis.
Rets - O ato em que integrantes da Via Campesina invadiram um laboratório da empresa Aracruz Celulose foi repudiado por grande parte da mídia e parte da sociedade. Você acha que a imprensa fez uma cobertura justa do episódio?
Marina dos Santos - Por parte da mídia, houve repúdio; pela sociedade, não. Por onde passamos, em universidades, escolas, igrejas, sindicatos, recebemos apoio. Recebemos apoio da sociedade civil organizada internacional também. Em vários lugares do país, pessoas estão recolhendo dinheiro para pagar os advogados das mulheres envolvidas na ação. Mesmo da Noruega, onde a Aracruz está muito presente, temos recebido apoio. Muita gente de lá tem prestado solidariedade e tem partilhado a sua experiência de combate à monocultura que a empresa promove. Estamos certos de que o agronegócio no Brasil aproveitou essa ação necessária para criminalizar o movimento. Ninguém fala que a empresa foi multada esta semana pelo Ibama em R$ 6 milhões por degradar o meio ambiente.
Rets - A visibilidade conferida à questão a partir de episódios como esse compensa uma possível rejeição ao movimento por parte da sociedade?
Marina dos Santos - Essa ação trouxe para o centro do debate a disputa dos dois projetos de agricultura: o agronegócio, com trabalho escravo e monocultura, e a agricultura familiar, que produz alimentos que matam a fome do povo brasileiro. A ação trouxe isso para a pauta. Isso é importante porque é uma disputa e, quando a trazemos para a cena, o modelo da agricultura familiar ganha a sociedade. Temos de alcançar a nossa soberania alimentar. Não podemos mais ficar importando água mineral.
Rets – Onde o MST erra?
Marina dos Santos - Autocrítica é difícil... mas temos cometido vários erros. O público do MST é excluído, ninguém tem interesse em trabalhar com ele. Nos acampamentos, vemos analfabetismo e uma falta muito grande de cultura. Isso nos torna frágeis para realizar as ações.
Rets - Mas então a questão da educação é um desafio e não propriamente um erro do movimento.
Marina dos Santos - Mas ela é nosso ponto fraco. É a partir do nosso ponto fraco que devemos nos fortalecer. Quando ocupamos, esse é o público que vamos ter. Precisamos fazer com que tenham acesso aos mecanismos de conquista da sociedade. Por isso a educação é a prioridade do movimento. O primeiro barraco que é erguido no acampamento é o da escola. Além disso, emos feito vários convênios com universidades e estamos criando cursos como o de Direito.
Rets – E onde o movimento acerta?
Marina dos Santos - Temos acertado quando trabalhamos o fortalecimento dos outros movimentos sociais do campo e nas articulações com outros setores da sociedade. Quando tentamos fazer com que a luta não seja só do MST, mas de todos os trabalhadores. A reforma vai criar mais empregos, mais fartura de alimentos e mais produção, o que contribui para sanar a fome do país. Temos 32 milhões de brasileiros que passam fome todos os dias. Temos contribuído para trazer esse problema até a sociedade.
Rets - Quais são as reivindicações para o último ano de governo?
Marina dos Santos - Nesse último ano, vamos nos concentrar na pauta de sempre e, principalmente, nas reivindicações da marcha do ano passado, que são a atualização do índice de produtividade e o assentamento das 170 mil famílias acampadas hoje no país. Vamos continuar batendo nas mesmas teclas. Não sabemos quantas famílias serão assentadas, porque esse número é o governo que tem de nos dizer. Mas não estamos otimistas, porque já é abril e nem orçamento aprovado temos. Depois vem a Copa do Mundo e depois eleições, aí fica difícil. E não é só isso. O problema maior está em todo o modelo econômico que o governo vem privilegiando.
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