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Legítimo direito

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Artigos de opinião






Legítimo direito


Wania Sant'Anna*

Há duas semanas o geógrafo Demétrio Magnoli, também articulista da Folha de São Paulo, foi entrevistado da Rets para comentar a proposta do Estatuto da Igualdade Racial que tramita no Congresso Nacional. Como era de se esperar, por suas posições já publicadas em outros meios de comunicação, o geógrafo partiu para o ataque e desqualificação tanto da proposta, como das organizações que a sustentam – deteve-se, em especial, no ataque às organizações não-governamentais que atuam contra a discriminação racial, “ONGs negras” na classificação do geógrafo, e à Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir).

Esse artigo pretende, em primeiro lugar, defender a livre organização da população negra, em todas as suas possibilidades – das associações comunitárias às organizações não-governamentais – ressaltando-se o fato de estarem submetidas às regras legais estabelecidas no país. Ou seja, qualquer tentativa de desmoralização dessas instituições deve ser encarada como cerceamento à livre organização da sociedade civil e desrespeito profundo a garantia dos direitos individuais e coletivos.

Assim, colocados os termos do “diálogo”, sigamos aos fatos e aos conceitos modernos de defesa dos direitos humanos e garantias constitucionais. O debate sobre o Estatuto da Igualdade Racial, sobre o qual toda a sociedade deve, obviamente, opinar, está em curso no Congresso Nacional, espaço representativo da sociedade brasileira. Para boa informação da sociedade – e neste espaço, em especial, às organizações que integram o terceiro setor – o Estatuto da Igualdade Racial, em seu texto, visa superar a desigualdade racial, aprimorar as políticas públicas e instituir as políticas de ação afirmativa como uma estratégia de superação da discriminação racial. O Estatuto prima por criar um ambiente institucional – nos âmbitos público e privado – de igualdade de oportunidades que reconheça a legitimidade de iniciativas reparatórias para corrigir distorções e desigualdades derivadas da escravidão durante o processo de formação social do Brasil. É disso, essencialmente, que se trata.

Seguindo o exemplo de outros estatutos, discutidos e aprovados no Congresso Nacional, as instituições negras assumem a responsabilidade de travar o debate no espaço legal exigido. Portanto, lamenta-se a opinião do geógrafo Demétrio Magnoli sobre este espaço de representação da sociedade brasileira ao afirmar que “temos um Congresso de deputados comprovadamente corruptos, portanto o Estatuto está no lugar certo”. Tal argumentação é sugerir que, caso aprovado, o Estatuto seria, igualmente, o resultado de ações de corruptos. O primado de defesa da atuação do Congresso Nacional é essencial à manutenção da ordem democrática e da livre manifestação, não cabendo julgamentos desta natureza. A bem da verdade, com o direito de renovar, pelo voto, a representação parlamentar no Congresso Nacional, esta é uma decisão – por discernimento, experiência e experimentação – da população brasileira.

Para além desta ressalva inicial, merece esclarecer que o Estatuto da Igualdade Racial está em total consonância com os melhores e mais defensáveis postulados e tratados de direitos humanos aprovados no âmbito internacional e dos quais o Brasil é signatário.

Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a comunidade internacional avançou enormemente na compreensão e conceituação dos direitos humanos e na criação de instrumentos e mecanismos que lhes dão sentido prático. Como registram todos os bons estudos sobre este assunto, um dos mais significativos avanços conceituais e políticos sobre a concepção de proteção dos direitos humanos é o fato desta concepção ter-se ampliado pra além da noção de proteção geral dos indivíduos e primazia da igualdade formal, abstrata, entre os indivíduos. A especificação do sujeito de direito introduziu as noções de particularidade e peculiaridade, o reconhecimento de que determinadas violações de direitos exigem respostas especificas e diferenciadas e que, finalmente, determinados grupos sociais, dadas as suas características de vulnerabilidade, merecem (em atenção aos seus direitos humanos) proteção especial e particularizada. Em outras palavras, as diferenças individuais e de determinados grupos sociais, deixam de ser tidas como particularidades que destituem ou diminuem direitos e passam a ser tidas como características que promovem direitos. Como sintetiza e muito bem coloca Flávia Piovesan (2004, “Ações Afirmativas da Perspectiva dos Direitos Humanos”, 13 Pp.), “ao lado do direito à igualdade, surge como direito fundamental, o direito à diferença. Importa o respeito à diferença e à diversidade, o que lhes [por exemplo, às mulheres, aos afro-descendentes, às crianças e demais grupos em situação de vulnerabilidade social e/ou histórica] assegura um tratamento especial”.

Também no cenário internacional deste debate, vale ressaltar que Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), ratificada por 167 Estados, incluindo o Brasil (em 1968), reconhece que a discriminação “significa toda distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo, logo, a discriminação significa sempre desigualdade. (...) A discriminação ocorre quando somos tratados como iguais em situações diferentes, e como diferentes em situações iguais. (...) O combate à discriminação é medida fundamental para que se garanta o pleno exercício dos direitos civis e políticos, como também dos direitos sociais, econômicos e culturais”. No entanto, essas medidas, de caráter punitivo, não são suficientes para a implementação do direito a igualdade. “Isto é, para assegurar a igualdade não basta apenas proibir a discriminação, mediante legislação repressiva. São essenciais as estratégias promocionais capazes de estimular a inserção e inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais.” (Piovesan, 2004)

Assim, e não por acaso, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, da qual, sublinha-se, o Brasil é signatário, prevê a possibilidade de instituição de “medidas especiais tomadas com o objetivo precípuo de assegurar, de forma conveniente, o progresso de certos grupos sociais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem de proteção para poderem gozar e exercitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais em igualdade de condições” e que essas medidas “não serão consideradas medidas de discriminação racial, desde que não conduzam à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido atingidos os seus objetivos” (artigo 1, parágrafo 4º). Ou seja, a citada convenção prevê a instituição de medidas de “discriminação positiva” como uma estratégia para a promoção da igualdade entre indivíduos e grupos sociais sem tomá-las como ações discriminatórias.

Portanto o Estatuto da Igualdade Racial – ao advogar a instituição de políticas de ação afirmativa no emprego, na educação, nos meios de comunicação, na educação universitária – não subtrai direitos fundamentais. O geógrafo Demétrio Magnoli erra ao afirmar que “o Estatuto não se baseia na idéia de que o cidadão tem direito e sequer considera que a sociedade tem cidadãos e, sim, que a sociedade é formada por raças”. E erra mais ainda ao afirmar que, se aprovado, “a sociedade brasileira passaria a ser uma confederação de raças. A noção de direitos está ancorada à noção de cidadania, de contrato. Se nos tornarmos essa confederação de raças, não existirá mais a noção de cidadania, nem a idéia de cidadão”. Esses argumentos são de total impropriedade.

O que surpreende é que muitos contrários às políticas de ação afirmativas não negam a existência de práticas discriminatórias e racistas na sociedade brasileira. Supõe-se que, desta forma, que estejam de acordo com a idéia de punir tais práticas. No entanto, esquecem-se e/ou ignoram o fato de, na atualidade, e no tocante à proteção e promoção dos direitos humanos as práticas discriminatórias e racistas não estarem restritas apenas as ações punitivas contra tais atos, mas também à promoção de ações que dêem materialidade ao estado de igualdade. Ou seja, que na atualidade reza a conjugação das vertentes punitiva e promocional.

Dito isso, talvez fique transparente o fato de, no Brasil, as organizações negras estarem absolutamente conectadas com a melhor e mais profunda concepção internacional sobre o que vem a ser a proteção legal dos direitos humanos. Ou seja, que não lhes cabe, em absoluto, o rótulo desqualificado e desclassificado sugerido pelo geógrafo Demétrio Magnoli. As “ONGs negras” não estão interessadas em criar, com o Estatuto, “uma vasta burocracia” e não percebem em sua aprovação uma “fonte de otimismo” para interesses escusos tais como levianamente sentenciados pelo geógrafo – “eles estão defendendo as suas carreiras e o seu futuro político e pecuniário às custas dos negros”.

Admitir tal grau de leviandade seria o mesmo que considerar as ONGs, de todos os matizes de cores, que atuam em defesa dos direitos humanos, dos direitos das crianças e dos adolescentes, da reforma agrária, do meio ambiente e da democratização das tecnologias digitais como interessadas em defender "as suas carreiras e o seu futuro político e pecuniário" “às custas” do presos, das crianças e dos adolescentes, dos sem terra, dos que vivem em ambiente degradados e dos "analfabetos" digitais. É isso? Eu, sinceramente, acredito que não, e me assalta a indignação ao ter tal opinião expressa nas páginas digitais de uma revista do perfil da Rets**.

Finalmente, quem são as "ONGs chapa-branca" que não aceitam "comemorar" o 13 de maio? Quem são as “ONGs chapa-branca” que “querem ocultar a grande luta social de negros e brancos que derrubou a escravidão” e “para isso, falsificam o passado de modo a apresentar a Lei Áurea como decisão ‘magnânima’ da Princesa Isabel isoladamente”? Quem são as “ONGs negras” que “querem apagar isso da história e logo vão propor a censura de livros que falam sobre isso”?

Afinal de contas, o quê nós teríamos, exatamente, a “comemorar” a respeito de uma lei/decisão que, levou 78 anos de negociação nacional (protelatória) e internacional para a efetivação de seu objetivo principal – o fim do comércio de gente, o fim do comércio de seres humanos em território brasileiro? Teríamos, todos nós esquecido do Tratado de Aliança e Amizade Anglo-Lusitano de 19 de fevereiro de 1810, assinado no Rio de Janeiro pelo Príncipe João, Regente de Portugal, instalado aqui após a fuga da Corte Portuguesa da cidade de Lisboa (27 de novembro de 1807), então ocupada pelas tropas de Napoleão? Estaríamos falsificando o passado ao relembrar o seu décimo artigo transcrito ao final deste artigo-protesto?

De qual luta contra a escravidão o geógrafo Demétrio Magnoli se refere ao mencionar a tentativa de “ocultar a grande luta social de negros e brancos que derrubaram a escravidão”? Qual a foi, exatamente, a “grande luta social” de “brancos” contra a escravidão? Sinceramente, é verdade, alguém está “tentando” falsificar o passado. Até que se prove o contrário não houve, neste país, uma “grande luta social” de “brancos” contra a escravidão. Se tivéssemos, no Brasil, uma “grande luta social” de “brancos” contra a escravidão nós não teríamos, hoje, a população afro-descendente em situação tão miserável.

A Lei Áurea (Lei 3.353, de 13 de maio de 1888) possui apenas dois artigos: “Art 1º: É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Art 2º: Revogam-se as disposições em contrário”. Ou seja, 17 secas palavras! O artigo décimo do Tratado de Aliança e Amizade Anglo-Lusitano, já citado, preservando os direitos escravocratas brasileiros e portugueses, protelando o fim do tráfico transatlântico de escravos, tem 271 palavras. Isso não é falsificação da História. Infelizmente, trata-se da nossa história, de brancos e negros brasileiros.



"Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal, estando plenamente convencido da injustiça e da má política do comércio de escravos e das grandes desvantagens que nascem da necessidade de introduzir e de renovar constantemente uma população insociável e artificial para assegurar o trabalho e a indústria em suas possessões da América do Sul, resolveu cooperar com a Sua Majestade Britânica na casa de Humanidade e de Justiça, adotando meios dos mais eficazes para obter em toda a extensão de suas possessões uma abolição gradual do comércio de escravos. E tocado por este princípio, Sua Alteza Real o Príncipe de Portugal se compromete a que seus vassalos não sejam mais autorizados a continuar o comércio dos escravos em nenhuma outra parte da costa da África que não sejam atualmente possessões de Sua Alteza Real, nas quais este comércio tenha sido já abandonado pelos Poderes e Estados da Europa que lá fizessem o comércio antigamente. Ele reserva, entretanto, para seus próprios vassalos o direito de comprar e de negociar escravos nas possessões africanas da Coroa de Portugal nos territórios de Cabinda e Molembo, direitos tais, em outros tempos, disputados pelo governo da França, não limitando nem restringindo o comércio de Ajudá e outros portos da África situados na costa habitualmente chamada na língua portuguesa a Costa da Mina, e que pertencem à Coroa de Portugal, ou sobre as quais ela tenha pretensões. Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal está resolvido em não deixar perder suas justas e legítimas pretensões aos mesmos, nem o direito de seus vassalos de negociar lugares, exatamente da mesma maneira como o tem feito até então."


* Wania Sant'Anna é historiadora, ex-Secretária de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro e pesquisadora de relações raciais. A autora escreveu este artigo impulsionada por uma entrevista que a Rets publicou na edição de 24 de março, de título “Em busca da igualdade”, da qual extrai alguns trechos para ilustrar e comentar em seu artigo. A entrevista está acessível na área Veja também desta página, no alto à direita.

** A Rets informa que a opção por entrevistar o geógrafo Demétrio Magnoli se deveu exatamente ao fato de ele ter opiniões contrárias ao estatuto, na intenção de mostrar a leitores e leitoras o que os dois lados pensam da questão.






A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados.

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