Autor original: Maria Eduarda Mattar
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Até 50 dias antes de sua realização, a X Conferência Nacional de Direitos Humanos – evento bienal de referência para a discussão de políticas públicas de direitos humanos, que normalmente leva meses para ser preparado – sequer tinha sua data confirmada. Isso só ocorreu na semana passada – será em 31 de maio, 1º e 2 de junho –, após dezenas de reuniões que, pela falta de consenso, terminaram por adiar decisões fundamentais, como a própria data, além de temas e dinâmica. Há quem veja nos atrasos a intenção de setores do governo de esvaziar a Conferência. Há também quem acredite que o fato de ser ano eleitoral tem seu peso nos adiamentos e pode comprometer o debate crítico.
Como explica Ivônio Barros, coordenador do Fórum Nacional de Entidades de Direitos Humanos (Fendh), que participa da organização, a preparação da Conferência está experimentando um pouco disso tudo. Nesta entrevista, ele comenta como tem sido o processo de preparação do evento e esclarece os possíveis motivos do governo para querer uma conferência menos sólida e crítica. Diante da ineficácia governamental em algumas políticas e da ausência de ação em outras, não há nada mais perturbador em ano eleitoral do que vozes que apontam falhas. “Da parte do governo, creio que há, sim, interesse de esvaziar a Conferência, caso não tenha como domesticá-la. Domesticar a Conferência significa, neste caso, que as críticas sejam abafadas ou saiam 'educadas'. Hoje há uma preocupação grande do governo com essa questão”, diz Barros.
Segundo ele, um dos principais desafios de uma Conferência desse porte é conseguir, em poucos dias, abordar questões que mereceriam debate muito mais amplo e profundo. Como ele defende, a Conferência deveria ser um processo, e não um evento. “Quando a gente vai discutir o temário, sempre tem mais assunto do que dias para discutir, do que espaço para se reunir. É por isso que, se tivéssemos um processo de discussão que fosse permanente, entre uma e outra Conferência (realizada a cada dois anos), com conferências municipais, estaduais e regionais, encontros e seminários, é que poderíamos dar igualdade de tratamento a todos os temas”.
Rets - A X Conferência Nacional de DH está inicialmente prevista para 31 de maio, 1º e 2 de junho. Mas, pouco mais de um mês antes, nem a data estava totalmente confirmada. Em que pé está isso agora e o que tem levado aos atrasos em decisões tão vitais?
Ivônio Barros - Agora a data está confirmada. A X Conferência será realizada nos dias 31 de maio, 1º e 2 de junho, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. As plenárias serão no auditório Nereu Ramos, da Câmara. Essa questão de data e tempo de preparação sempre foi um problema. O Fórum de Entidades [Nacionais de Direitos Humanos] começou a discutir a preparação da Conferência no início do segundo semestre do ano passado. Desde fins de setembro a gente tem se reunido com a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, tentando adiantar o processo. Mas foi quase uma dezena de reuniões que não serviram para muita coisa. Vários são os motivos. Há quem tenha nos trazido a tese de que existem interessados no esvaziamento da Conferência: governo e entidades que perdem liderança se houver muita gente participante. Não sei se é uma tese que se comprove facilmente. Da parte do governo, creio que há, sim, interesse de esvaziar a Conferência, caso não tenha como domesticá-la. Domesticar a Conferência significa, neste caso, que as críticas sejam abafadas ou saiam "educadas". Hoje há uma preocupação grande do governo com essa questão. O governo fracassou na questão indígena, foi insignificante na questão agrária, os movimentos sociais têm sido extremamente perseguidos pelo aparato estatal e o governo federal tem uma atuação ziguezagueante na questão da segurança pública. Mas não foi o governo que gerou os sucessivos adiamentos das decisões principais da Conferência.
Rets - Recentemente, houve mudança na presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, que vinha sendo parceira do Fendh e de entidades de direitos humanos em diversos processos, correto? A mudança teve alguma conseqüência na organização da Conferência?
Ivônio Barros - A Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara é a principal parceira desse processo. Não dá para fazer a Conferência sem ela, nem queremos isso. Ela é nossa principal referência, apesar de agora contarmos com a parceria também da recentemente constituída Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal, da Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados e da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal.
Parte desse atraso se deve a fatores institucionais. A Câmara renova as Comissões Permanentes todo início de ano. Sempre as novas presidências querem ter prevalência nas deliberações sobre as Conferências, questões de ordem política, partidária ou eleitoral. A participação das novas presidências dificulta decidir uma coisa de um ano para o outro, ainda mais porque a direção da Comissão pode sair de um partido e ir para outro.
Mas assim que a nova composição foi acertada, com mais de um mês de atraso, a nova presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, que é formada pelo deputado Luis Eduardo Greenhalgh, como presidente, e o deputado Luiz Alberto, como vice, ambos do PT, as deliberações começaram a ser desafogadas. Por isso é que só agora, no dia 6 de abril, pudemos decidir sobre a Conferência.
Rets - Em alguns informes do Fendh, ficou claro que há forças do governo querendo fazer com que este seja uma das entidades convocadoras e que o texto do documento final seja previamente discutido com o próprio governo. Isso é verdade? Que riscos você vê nessas possibilidades?
Ivônio Barros - Houve muita pressão nesse sentido. O ministro dos Direitos Humanos, em reunião que tivemos no início de março, porém, nos afirmou que o governo não forçaria nenhuma situação caso as entidades entendessem que não era o caso de ele não ser convocador. As entidades e vários e várias parlamentares mantiveram a decisão de não colocar o governo na condição de co-responsável pela Conferência. Não é uma punição pela atuação desastrosa que o governo teve na organização da IX Conferência, mas uma forma de garantir que os debates possam se dar com foco nos direitos humanos e não nas eleições presidenciais. Mas uma coisa é a palavra do ministro, outra tem sido a atuação dos governistas, dentro e fora do Congresso. É óbvio que temem uma Conferência participativa, independente, comprometida essencialmente com os direitos humanos e resistente a apelos partidários.
Rets - Em ano de eleição, o "aquecimento" para as campanhas eleitorais pode ter ou está tendo reflexo na Conferência?
Ivônio Barros - Essa é uma preocupação grande da maioria das entidades e dos movimentos. O processo eleitoral é muito importante na democracia. Os partidos são elementos fundamentais nas eleições. Os movimentos sociais e as formas de representação da cidadania ativa também o são. Gostaríamos que fossem mais influentes nos debates eleitorais, mas hoje ainda prevalecem a mídia eleitoral, o marketing e os arranjos que temos visto com esses rios de dinheiro que fluem nas eleições. Se as eleições fossem um momento de debates programáticos e pudéssemos discutir bem todos os problemas nacionais, elas iriam ajudar muito no debate da Conferência. Mas como as eleições acabam escondendo mais que mostrando a realidade nacional, é muito provável que a eleição sirva como meio de encobrir as graves ameaças e os constantes atentados que o Estado (União, estados e municípios; incluindo Judiciário e Ministério Público) comete contra os direitos humanos.
Nosso receio é ver os partidos fazendo um acordão na preparação da Conferência, assim como fizeram para livrar a cara dos corruptos do mensalão, como no caso vergonhoso do ex-presidente da Câmara dos Deputados, o deputado João Paulo Cunha, que usou dinheiro do mensalão e mentiu. Aí entra tanto o PSDB, do [ex-governador de São Paulo e candidato a presidente da República] Geraldo Alckmin, que agiu com truculência e de forma extremamente reacionária no caso da Febem de São Paulo; como o PT, que tem sido um desastre na gestão da política indigenista, na reforma agrária, sem falar na decepção de vê-los como corruptos e corruptores; como o PMDB dos Garotinhos, que instauraram o Caveirão no Rio de Janeiro, uma polícia que mata mais cidadãos que a polícia paulista [tradicionalmente tida como a mais violenta]; ou o PFL da Bahia, que coloca negros e negras em destaque em seus palanques de festas, mas onde jovens negros são assassinados sistematicamente. Viu o drama?
Rets - Pensou-se em adiar a Conferência para depois da Copa e das eleições, a fim de que pudesse ser preparada com calma?
Ivônio Barros - Houve essa sugestão, usada por uns e umas para tumultuar as deliberações que já haviam sido tomadas no ano passado e encampada por outrose outras com a idéia de ter mais tempo para discussões nos estados. Para o Fórum de Entidades, não é essencial que a Conferência seja em uma data ou em outra. Mas fomos convencidos pelos argumentos da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. No segundo semestre o Congresso vai estar em recesso branco, como chamam. Nada vai acontecer por lá, pelo menos é o que planejam. Fazer uma Conferência nesse clima é ruim, principalmente porque um dos objetivos que sempre buscamos é tentar interessar os deputados e as deputadas mais e mais com os temas dos direitos humanos. Além disso, fazer a Conferência no momento mais quente do processo eleitoral provavelmente não seria produtivo, pelos motivos que já abordei. Uma conferência desse porte deveria ser preparada com pelo menos um ano e meio de antecedência, dando margem à realização de conferência municipais onde fosse possível, de conferências estaduais em todos os estados, de conferências regionais, se tivéssemos tempo.
Rets - Quais são os temas considerados prioritários para o evento?
Ivônio Barros - A questão da temática sempre é um problema, pois na medida em que a humanidade avança na compreensão dos direitos humanos, vamos percebendo que o campo dos direitos é muito amplo. Ainda mais porque no Brasil, um país violador em todos os campos, nossas carências são enormes. Nossa sociedade ainda é escravista, preconceituosa ao extremo, sexista, homofóbica e racista. Índios e negros são vistos como protocidadãos, cidadãos de terceira categoria ou subumanos. Nossa polícia é uma continuação exata dos capitães-do-mato do tempo da escravidão oficial. Nosso Judiciário é elitista, preconceituoso e racista. Nossas elites não dão bola para o povo, e o povo é ainda pouco organizado. Assim, quando a gente vai discutir o temário, sempre tem mais assunto do que dias para discutir, do que espaço para se reunir. É por isso que, se tivéssemos um processo de discussão que fosse permanente, entre uma e outra Conferência (realizada a cada dois anos), com conferências municipais, estaduais e regionais, encontros e seminários, é que poderíamos dar igualdade de tratamento a todos os temas.
Para a X Conferência elegemos alguns temas que não são os únicos fundamentais, mas podem ser bem representativos do debate que temos acumulado. A Conferência Magna será sobre Modelo Econômico e Direitos Humanos. Dela se derivará um painel onde se discutirá o mesmo tema, com algum recorte de gênero e raça. Nesse painel teremos a organização de dois grupos de trabalho: um sobre a Lei de Responsabilidade Social e Fiscal, que está sendo bem discutida sob a coordenação do Fórum Brasil do Orçamento (FBO), com a participação dos movimentos feministas e das ONGs; o outro será sobre o conjunto de temas tratados no painel e na conferência magna. Haverá também um painel e grupos de trabalho sobre a questão racial no Brasil, coordenado pela Articulação de Mulheres Negras e pelo movimento Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta.
Está previsto também um painel sobre a violência, as instituições totais, a política de segurança pública e a ação letal do Estado, coordenado pelo Conselho Federal de Psicologia, pelo Centro Dandara de Promotoras Legais Populares, pela Justiça Global e por várias outras entidades que atuam na linha de frente. Teremos um painel e um grupo de trabalho discutindo e avaliando a política indigenista brasileira, que será coordenado por Fórum de Defesa dos Direitos dos Índios, Conselho Indigenista Missionário, Coordenação Indígena Brasileira e outras entidades de luta em defesa dos povos indígenas. Outro painel será sobre o Conselho de Direitos Humanos, onde deveremos organizar um grupo de trabalho para discutir a metodologia e as datas das próximas Conferências Nacionais. Teremos um painel sobre o Programa Nacional de Proteção de Defensores e Defensoras de Direitos Humanos, onde também discutiremos a criminalização dos movimentos sociais e a ação do aparelho de Estado contra os atores sociais. E, finalmente, teremos um sobre educação em e para direitos humanos.
No próximo dia 27 de abril, das 9h às 11h da manhã, vamos fazer uma reunião nacional de organização da X Conferência usando o sistema de videoconferência do Interlegis, que liga o Congresso Nacional a todas as Assembléias Legislativas. A entidade que desejar participar do debate poderá fazê-lo indo à sala de videoconferência da Assembléia Legislativa de seu estado. Lá a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia estará encarregada de organizar e orientar quem desejar participar.
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