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Vinte anos depois, a dúvida permanece

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Vinte anos depois, a dúvida permanece
Ilustração: Pavel Zharko
Há 20 anos, uma pequena cidade da Ucrânia virava sinônimo de desastre. Em 26 de abril de 1986, Chernobyl foi palco do maior acidente nuclear da História, no qual até hoje não se sabe com exatidão quantas pessoas morreram, quantas ficaram feridas e quantas carregam seqüelas. Desde então, a polêmica que cerca o uso da energia nuclear como forma alternativa de geração de eletricidade não pára de crescer. Se por um lado seus defensores afirmam que Chernobyl foi uma fatalidade – uma das únicas em mais de 50 anos de produção atômica – e que a energia nuclear é segura e limpa, por outro seus detratores dizem que não vale a pena correr o risco. As usinas são caras, os acidentes nunca são desprezíveis e o lixo atômico até hoje não tem destino certo, afirmam.

Além do aniversário do acidente na Ucrânia – cujo número de vítimas, fatais ou não, é maior do que se pensava antes (os cinco mil iniciais se transformaram em 200 mil), de acordo com informações obtidas pela organização não-governamental Greenpeace –, outro fato que reavivou as discussões sobre o tema foi a mudança de posicionamento de figuras de grande importância no debate. Enquanto a organização ambientalista continua combatendo a energia nuclear por considerá-la arriscada demais, um de seus fundadores, hoje desligado da instituição, revela visão contrária.

Em diversos artigos publicados ao longo de 2005 e 2006 em jornais norte-americanos, ingleses e australianos, Patrick Moore, hoje responsável pela empresa de consultoria ambiental Greenspirit, afirma que a energia nuclear é a única forma de atender a demanda por mais eletricidade sem aumentar as emissões de gases causadores do efeito estufa. “No começo dos anos 1970, quando ajudei a fundar o Greenpeace, eu acreditava que a energia nuclear era sinônimo de holocausto nuclear”, relembra em artigo para o jornal norte-americano Washington Post. “Trinta anos depois, minha visão mudou e o resto do movimento ambientalista precisa atualizar a sua também, pois a energia nuclear pode ser a única fonte de energia capaz de salvar nosso planeta de outro possível desastre: uma mudança climática catastrófica”.

A energia nuclear, continua, “é a única fonte de larga escala e com eficiência de custos que pode reduzir essas emissões [de gás carbônico] enquanto continua a satisfazer a demanda por eletricidade. E hoje em dia isso pode ser feito de forma segura”.

Moore diz fazer essas afirmações com cautela, pois reconhece que as pesquisas necessárias para processar urânio e obter eletricidade também podem ser usadas para fabricar bombas. E adverte que toda usina deve ser construída com o máximo de cuidado.

Adesões

Outro ambientalista a mudar de lado foi James Lovelock, autor da Teoria de Gaia, segundo a qual a Terra é um superorganismo formado pela superfície, pelo ar e pelos oceanos, que precisam estar sempre em equilíbrio. Um dos mais respeitados ecologistas dos ano 70 e 80, Lovelock defende há tempos o uso da energia nuclear como forma de evitar emissões de gases tóxicos.

Ele concorda com Moore ao afirmar que os tempos mudaram e que a ciência avançou bastante no que diz respeito à segurança de instalações nucleares. Por isso considera a energia atômica uma boa fonte e não poupa críticas a quem se opõe a ela. “As pessoas sempre têm medo de algo. Antes, eram fantasmas e vampiros. Hoje, energia nuclear. A oposição baseia-se numa ficção hollywoodiana, na mídia e em lobbies do movimento verde”, disse à revista Superinteressante em 2004.

Em relação a Chernobyl, ambos reconhecem a gravidade dos acontecimentos, mas afirmam que um desastre já era esperado nas usinas da então União Soviética. “Era um acidente esperando para acontecer. O modelo de reator soviético não possuía ‘vaso de contenção’, era um projeto intrinsecamente ruim e seus operadores literalmente o explodiram”, afirma Moore. Lovelock vai além e minimiza o problema, apesar de lamentar as mortes e os feridos. Segundo ele, a quantidade de pessoas mortas foi grande, mas faz parte de grandes projetos energéticos lidar com adversidades lamentáveis. Em 1952, segundo o autor de “O mundo de Gaia”, 5 mil moradores de Londres morreram intoxicados com a fumaça causada pela explosão de uma termelétrica movida a carvão e milhares foram contaminados pela fumaça tóxica. As mortes de Chernobyl, garante, foram muito menores, porém mais valorizadas.

Ao lado desses ambientalistas convertidos estão milhares de cientistas. Para eles, a energia nuclear é segura se todos os cuidados necessários forem tomados. Entre as precauções, submeter-se às regras da Agência Internacional de Energia Nuclear (IEAE), organização encarregada de inspecionar países com produção atômica, para garantir que não haja fins bélicos em seus programas.

Os cientistas também garantem que as técnicas de enriquecimento de urânio se desenvolveram a tal ponto que nem um dos principais argumentos contrários à energia atômica – a produção de lixo nuclear – hoje é válido. Após enriquecido e utilizado, o minério ainda guarda 95% de seu potencial de energia. O procedimento mais comum é armazenar essa sobra de produção em “caixões” de chumbo e concreto, para que não haja perigo de vazamento, e enterrá-los. Atualmente, porém, já é possível reutilizar esse lixo, diminuindo a necessidade de aumentar a exploração de urânio empobrecido.

Para o especialista em segurança do trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT) Shengli Niu, o desastre de Chernobyl teve grande importância legal para o mundo. “Antes dele, muitos países não tinham lei e regulamentos para proteger a força de trabalho e a população e, ainda mais importante, para prevenir esse tipo de acidente”, diz em entrevista ao site da OIT. “As lições aprendidas em Chernobyl não tiveram impacto só nas indústrias nucleares, mas também em outros setores, e alavancaram um ciclo virtuoso na melhoria de todos eles”.

Perigo

Os ambientalistas não-convertidos à energia nuclear, entretanto, garantem que ela é uma ameaça à sobrevivência do planeta. O Greenpeace chegou a fazer uma lista de 365 razões para dizer não à energia atômica. São fatos registrados desde as primeiras experiências com o enriquecimento do urânio, nos anos 1940, como contaminações por plutônio, tráfico de minérios radiativos e explosões de bombas atômicas. Porém o que parece realmente preocupar a organização é a possibilidade de ver Chernobyl se repetir em algum outro lugar do mundo.

No fim do mês passado, a entidade divulgou um relatório que revela o real tamanho da tragédia ucraniana. Enquanto a Organização Mundial de Saúde estima em pouco mais de 5 mil o número de mortos em conseqüência da explosão do reator da usina soviética, o novo documento o eleva para mais de 200 mil só entre 1990 e 2004. Essa é a quantidade de pessoas mortas em decorrência da radiação emitida após o vazamento de material radiativo de Chernobyl. O número, até então inédito, foi obtido pela soma de relatórios mantidos em segredo por muito tempo pelas autoridades russas e pela atualização de dados sobre a incidência de doenças na região.

Quando explodiu, em 26 de abril de 1986, o reator da usina produziu uma nuvem de fumaça que se espalhou ao sabor do vento não só pela cidade, mas pelo território ucraniano e por países vizinhos. Até mesmo quem estava longe pôde detectar o aumento dos índices de radiação. Segundo o relatório, 14 países (Itália, Noruega e Grécia entre eles) registraram níveis de radiação acima de 1 CI (medida utilizada para definir áreas contaminadas por radiação) por metro quadrado. Em todo o continente europeu, foram registrados aumentos nesse índice.

O grande problema é que algumas conseqüências da exposição de pessoas à nuvem tóxica só agora estão sendo detectadas. O aumento de casos de câncer é a principal prova do tamanho do desastre. Na região de Zhytomir, onde fica Chernobyl, o número de adultos com câncer quase triplicou entre 1986, quando 1,34% dos adultos tinham a doença, e 1994, ano em que a porcentagem atingiu 3,91%.

A lista de doenças não pára por aí. Nela constam aumentos nos registros de leucemia, aberrações genéticas, doenças hormonais e nos sistemas digestivo e respiratório, além de envelhecimento precoce e disfunções nervosas. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), cinco milhões de pessoas vivem em zonas contaminadas da Ucrânia, da Rússia e da Bielorrússia. “O acidente de Chernobyl, mesmo tendo algumas características em comum com outros eventos catastróficos globais, até agora é único. Nós só podemos esperar que continue sendo”, afirma o Greenpeace no relatório.

Outros temores

A possibilidade de novos acidentes não é o único argumento das organizações ambientalistas, apesar de ser suficiente para pensar duas vezes antes de iniciar a construção de novas usinas. “A energia nuclear é cara, tóxica e não é livre de emissões [de gases causadores de efeito estufa]”, afirmam a organização Amigos da Terra em comunicado internacional. Em estudo que toma como referência o mercado inglês, a entidade afirma que o custo por megawatt de uma usina nuclear é 40% maior do que o de uma usina eólica – uma das formas de energia mais caras e limpas existentes. Além disso, observa, a construção de instalações nucleares sempre é incerta, com adiamentos e aumento de preços durante as obras. Isso para não falar do custo de armazenamento do lixo tóxico. Segundo o estudo, o armazenamento dos restos da produção nuclear inglesa vai custar em torno de 56 bilhões de libras – um preço a ser pago pelo consumidor final.

Além disso, afirmam, o lixo radiativo permanece perigoso durante milhares de anos, período longo demais para haver qualquer garantia de que não haverá acidentes. “Vazamentos e falhas não podem ser regulamentados”, ironizam. Os Amigos da Terra criticam o governo inglês por não ter meios de assegurar que os depósitos hoje utilizados não sofrerão qualquer tipo de interferência ambiental ou humana que dê a segurança necessária para evitar acidentes. E consideram ruim a idéia de exportar o lixo em troca de dinheiro para países pobres.

Há ainda o medo de ataques terroristas, algo bastante presente nos países europeus e nos EUA, atualmente, e da construção de armas a partir da tecnologia dos geradores. Apesar de toda a segurança que as cerca, as usinas nucleares não têm como resistir ao choque de um avião, por exemplo. Uma ação desse tipo causaria grandes explosões cujas conseqüências seriam difíceis de serem controladas. “Um ataque bem-sucedido pode ter um impacto 40 vezes pior do que a explosão de Chernobyl’, garantem os ecologistas.

Eles também refutam o argumento de que a energia nuclear é limpa. Segundo esses ativistas, o processo de construção de usinas e de mineração de urânio é bastante poluente e não compensa o investimento. Ainda de acordo com os Amigos da Terra, se a geração de energia atômica no Reino Unido dobrasse, as emissões de gases poluentes diminuiriam no máximo 8% – índice insuficiente, inclusive, para alcançar as metas do Protocolo de Quioto.

A polêmica em torno da utilização da energia nuclear como forma alternativa de energia permanece, sobretudo, quando se analisa que alguns países, como a Alemanha, já têm planos para desativar suas usinas, ao passo que outros, como o Irã, anunciam a construção de novas. Em 2002, de acordo com a IEAE, havia 566 reatores funcionando em 35 países. Os reatores produzem 16% da eletricidade consumida no planeta e constituem a principal fonte de energia de países como a França, onde 68% da matriz energética é nuclear.

Na Alemanha, o governo anunciou em 1999 que desativaria aos poucos todas as usinas nucleares do país à medida que elas envelhecessem e outras fontes fossem encontradas. Berlim tem incentivado a pesquisa sobre produção de eletricidade principalmente por meio de luz solar e de energia eólica, para felicidade dos ambientalistas.

Outros países, no entanto, não abrem mão da polêmica fonte de energia e até mesmo desenvolvem planos de ampliação da rede nuclear. Entre eles, a China, que alega ser necessário utilizar todas as formas de geração existentes para abastecer sua crescente demanda por eletricidade.

Marcelo Medeiros

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