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Saúde e desenvolvimento

Autor original: Luísa Gockel

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Saúde e desenvolvimento


Aproximadamente 1 bilhão de pessoas no planeta sofrem com as chamadas doenças negligenciadas, ou seja, aquelas que, por acometerem principalmente pessoas de países em desenvolvimento, despertam pouco ou nenhum interesse nos grande laboratórios farmacêuticos. Questões relacionadas ao comércio de medicamentos para essas enfermidades, patentes de drogas e pesquisa e desenvolvimento serão os principais temas da 59ª Assembléia Mundial de Saúde, que será realizada de 22 a 27 de maio, em Genebra, Suíça. O encontro anual é a instância maior de decisão da Organização Mundial da Saúde (OMS) e recebe delegações de todos os 192 Estados-membros.

Os principais temas a serem debatidos no evento são decididos pelo Conselho Executivo, formado por profissionais qualificados de 32 países que integram a organização. O combate a essas doenças certamente ocupará lugar central na Assembléia. Segundo a OMS, contra um grande número dessas enfermidades existem drogas eficientes e baratas disponíveis. O que é preciso, de acordo com a organização, é fazer um lobby eficaz pela conscientização dos governos sobre a necessidade de reduzir o impacto dessas doenças.

Além das doenças negligenciadas, o combate à gripe aviária deverá dividir a atenção dos participantes. A doença já causou mais de cem mortes desde 2003 e começa a se espalhar pelo globo. O Brasil tem grande interesse no debate, já que é o maior exportador de carne de frango do mundo – o que gera ao país uma receita de aproximadamente US$ 1,9 bilhão por ano. Além de debater os problemas centrais relativos à saúde mundial, este ano a Assembléia vai eleger o novo diretor-geral da OMS, cargo ocupado atualmente pelo sul-coreano Lee Jong-Wook.

Patentes, pesquisa e desenvolvimento

Em fevereiro deste ano, o ministro de Relações Exteriores da França, Philippe Douste-Blazy, defendeu a necessidade de minimizar o que chamou de “fratura sanitária”. Segundo ele, não se pode pensar em desenvolvimento sem levar em consideração a democratização do acesso aos tratamentos. A proposta elaborada conjuntamente por Brasil, França e Chile prevê a aplicação de uma taxa sobre as passagens aéreas a ser destinada ao combate das três maiores pandemias: aids, tuberculose e malária. Douste-Blazy aconselhou a comunidade internacional a dobrar, em 2007, os recursos destinados à luta contra as doenças dos países em desenvolvimento.

Para aquecer o debate sobre pesquisa e desenvolvimento, a ONG Médicos sem Fronteiras enviará uma delegação a Genebra para participar da Assembléia. A idéia é reforçar e difundir as reivindicações da Iniciativa de Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi), da qual a ONG é co-fundadora. Segundo o coordenador da DNDi para a América Latina, Michel Lotrowska, esse encontro agrega várias iniciativas que vêm sendo desenhadas nos últimos anos. “Este ano, deve ser votada uma resolução pedindo a revisão e a avaliação das patentes relacionadas a pesquisa e desenvolvimento”, explica.

Estabelecida em 2003 pela OMS, a Comissão de Direitos de Propriedade Intelectual, Inovação e Saúde Pública (CIPIH, da sigla em inglês) terminou, no mês passado, um relatório em que procurou colher propostas e dados sobre propriedade intelectual e mecanismos de incentivo para a criação de remédios contra doenças dos países em desenvolvimento. Segundo Lotrowska, a conclusão do relatório a tempo para a Assembléia é muito positiva, mas o texto não prevê soluções para as necessidades dos países mais pobres.

“Quem define as prioridades nesses países são as empresas que visam ao mercado e não à saúde pública. Isso foi reconhecido no relatório, que mostra a necessidade de outros incentivos para o desenvolvimento deste setor”, afirma Lotrowska. Segundo ele, uma questão importante abordada no relatório é a necessidade de melhorar as regras internacionais para pesquisa e testagem de medicamentos. “As regras para as empresas multinacionais são adequadas para os países ricos e não condizem com a realidade de um país em desenvolvimento. Se os Estados Unidos desenvolvem uma vacina com alguns efeitos colaterais, ela não chega ao mercado. Mas a mesma vacina na África teria poupado muitas vidas”, defende.

O representante da área médica no Conselho Técnico-Científico da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Jair Mari, também defende essa idéia. Ele explica que toda a adoção medicamentosa deve ser baseada na relação custo benefício. “Às vezes, o fato de não darmos uma determinada medicação pode matar mais do que os efeitos colaterais daquela droga. Deve-se levar em conta que o custo benefício pode ser muito maior num país em desenvolvimento”, afirma o psiquiatra, que também é professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Para Mari, esse tipo de barreira, somado ao atraso da discussão na área de patentes, acentua a distância entre países ricos e pobres. Ele afirma que países asiáticos com o mesmo índice de desenvolvimento humano que o Brasil, como China, Índia e Coréia do Sul, já avançaram bem mais nessa discussão. Além disso, segundo o psiquiatra, assumir uma posição de protagonismo nesse cenário certamente passa pela necessidade de participar mais da pesquisa e produção de drogas para dar respostas aos problemas locais de saúde. “Hoje o investimento em pesquisa não chega a 1% do Produto Interno Bruto nacional. O país precisa comprar essa idéia”, defende o membro da Capes.

Proposta Brasil-Quênia

Os governos do Brasil e do Quênia levarão à Assembléia uma proposta de resolução que prevê a criação de um fundo internacional para o estímulo à pesquisa de medicamentos voltados para o combate às doenças negligenciadas. O documento vai cobrar um maior comprometimento dos países-membros da OMS com o desenvolvimento de pesquisas na área. De acordo com dados da organização, apenas 10% dos gastos em pesquisa são destinados a doenças que acometem 90% da população mundial.

“Este é o papel das organizações internacionais: articular esforços entre nações para alcançar um objetivo comum. O que ocorre é que a OMS cada vez menos tem atuado dessa forma, e nós queremos vê-la muito mais ativa neste terreno da pesquisa, do acesso a medicamentos, principalmente para os mais pobres do mundo, já que o lobby dos países poderosos e da indústria é muito forte globalmente”, defende o presidente da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), Paulo Buss, que apresentará a proposta em Genebra.

Além da criação de um fundo internacional para financiar pesquisa e desenvolvimento, a proposta prevê um estímulo para que os laboratórios dêem mais atenção às doenças negligenciadas. “Os laboratórios estão localizados em países ricos. Esses governos poderiam ter uma ação mais intensa de estimulá-los através de múltiplos mecanismos. Por outro lado, esses fundos globais podem ser usados para agir na longa e complexa cadeia que inclui pesquisa, desenvolvimento, produção e acesso”, acredita Buss.

A flexibilização das patentes, segundo o presidente da Fiocruz, certamente estará em pauta em Genebra. A proposta de resolução menciona a necessidade de os países usarem a flexibilidade na determinação de regras para patentes de drogas essenciais para os países mais pobres. “As patentes não são o principal fator de estímulo para pesquisa e desenvolvimento em doenças negligenciadas, portanto não há porque exigi-las para esses produtos. Ocorre que a indústria e os países desenvolvidos que as sediam querem proteger o princípio geral, ou seja, a existência das patentes e o endurecimento de suas regras”, analisa.

O presidente da Fiocruz admite que poderá haver muita resistência à proposta na Assembléia por parte dos países ricos. Mas está otimista e acredita na possibilidade de alguns governos de países em desenvolvimento se unirem à proposta do Brasil e do Quênia.

HIV/aids

Onde há o maior nível de morbidade causado pela aids há também o menor consumo de medicações eficazes contra a doença. Esse é o panorama que será debatido na Assembléia. De acordo com o Jair Mari, da Capes, isso ocorre porque os custos laboratoriais para a produção dessas drogas são muito altos, o que aumenta também o valor das patentes. “Isso é muito injusto, mas a OMS poderia exercer uma pressão maior para buscar soluções éticas que não inibam o investimento privado, nem acentuem a desigualdade”, defende.

Para o infectologista da Unifesp Esper Kallas, a questão das patentes dos remédios contra aids é um campo conflituoso e a cada dia há novas tentativas de acordo. Segundo ele, o programa brasileiro vem sendo bem-sucedido nesse sentido. Mas, considerando-se o panorama mundial, os prognósticos são assustadores: “Em dez ou 15 anos, pode ultrapassar os 100 milhões de pessoas com a doença. A médio prazo, a situação pode virar uma catástrofe mundial”, alerta o especialista.

A questão que se coloca à OMS, além da pesquisa da cura ou de uma vacina, é que o tratamento, que custa cerca de US$ 200 por ano, é inviável para os países que mais sofrem com a doença. “O PIB per capita desses países é menor do que esse valor”, diz Kallas. Isso fundamenta fortemente, segundo ele, a necessidade de países ricos bancarem o tratamento para países pobres. O infectologista acredita também que a OMS deveria ter um papel mais ativo, já que se trata de uma emergência mundial.

Luísa Gockel

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