Autor original: Mariana Loiola
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Está em tramitação na Câmara dos Deputados uma proposta que pode dar margem a um retrocesso nos direitos sociais garantidos pela Constituição Federal de 1988. O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), que faz esse alerta, está, juntamente com outras entidades, mobilizado para tentar impedir a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 157/2003. A proposta prevê a convocação de uma Assembléia de Revisão Constitucional, composta por membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a partir de 1º de fevereiro de 2007 (após as eleições, portanto), com prazo de 12 meses para sua concretização.
O objetivo, segundo o autor da PEC, deputado Luis Carlos Santos (PFL-SP), seria "corrigir rumos, adequar instituições, eliminar artificialidades e pormenores, revitalizando o primado do Estado de Direito e a governabilidade do país". Para o deputado, um saneamento constitucional é fundamental para o bom andamento das instituições políticas e o adequado desenvolvimento social do país. “Trata-se da verdadeira reforma política de que o país necessita”, reforça.
No entanto, de acordo com o Edélcio Vigna, assessor do Inesc, qualquer tentativa de rever a Constituição Federal é inconstitucional e quebra um pacto do governo com a população. “A Constituição Federal é um pacto sócio-político entre sociedade civil e parlamentares. Assim foi estabelecida a Constituição Cidadã. Revisar esse pacto sem anuência prévia da sociedade é trair o primeiro acordo. Como alterar um acordo quando uma das partes, a maior interessada, não foi consultada? Esse comportamento tem o nome de traição”, acusa Vigna, em entrevista à Rets.
Vigna chama a atenção, ainda, para o risco de a revisão promover uma supressão de direitos e torce para que a PEC seja engavetada pelo presidente da Câmara.
Rets - Por que essa PEC pode representar um retrocesso nos direitos conquistados na Constituição de 1988? E que direitos hoje garantidos pelo texto constitucional podem estar ameaçados?
Edélcio Vigna - Primeiro é preciso acentuar que não há na Constituição Federal previsão de uma nova revisão além da que foi realizada em 1993. O artigo 3 das Disposições Transitórias diz que a Constituição será revisada cinco anos após a promulgação, que foi em 1988, e não trata de uma segunda revisão. Portanto qualquer tentativa de rever a Constituição é inconstitucional. Pode-se dizer que uma proposta de revisão está no limite de um golpe contra a lei maior do Brasil. Toda lei deve avançar e ser adequada ao seu tempo. Deve ser contemporânea, senão fica defasada e atenta contra a sociedade em geral. Há muitas leis que estão nessa condição. O constituinte de 1988, prevendo isto, abriu como forma de modernização constante a possibilidade de certos atores políticos proporem emendas ao texto constitucional. O artigo 60 da Constituição diz que podem propor emendas [Propostas de Emenda Constitucional] um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; o presidente da República ou mais da metade das Assembléias Legislativas, caso se manifeste favoravelmente a maioria de seus membros. Esses são os atores e essa é a forma única e exclusiva de alterar a Constituição. Um parlamentar, como é o caso do que apresentou a PEC, não pode propor uma alteração de revisão constitucional. Uma emenda é bem distinta de uma revisão.
Toda revisão parte do princípio do pacto entre as partes. A Constituição é um pacto sócio-político entre sociedade civil e parlamentares. Assim foi estabelecida a Constituição Cidadã [como ficou conhecida a Constituição de 1988]. Revisar esse pacto sem anuência prévia da sociedade é trair o primeiro acordo. Como alterar um acordo quando uma das partes, a maior interessada, não foi consultada? Esse comportamento tem o nome de traição. Uma revisão é como uma Comissão Parlamentar de Inquérito: sabe-se como começa, mas não como termina ou onde termina. Se o Congresso Nacional inicia uma revisão à revelia da sociedade civil, com início em 1º de janeiro de 2007, como garantir que ele não avançará sobre todos os temas que promovem e preservam direitos sociais, trabalhistas, ambientais e culturais, entre outros? No fundo, é isso que está em jogo: a revisão seria uma modernização (entenda-se: supressão de direitos) para aplainar o campo para uma maior exploração do capital sobre o trabalho.
Rets - Esta revisão seria semelhante à que ocorreu em 1994?
Edélcio Vigna - A revisão de 1994 foi constitucional. Estava prevista na Constituição. A sociedade, desde 1988, havia firmado esse pacto revisionista. Agora, não. Não há previsão na Constituição. Muito menos os eleitores que irão às urnas em outubro estão sabendo que poderão eleger parlamentares-constituintes. Seria necessária uma ampla campanha de divulgação da importância de uma revisão constitucional em todos os meios de comunicação. O Estado teria de bancar essa campanha. Teríamos uma outra cruzada cívica, em que os setores produtivos da sociedade civil teriam que mobilizar seus militantes para defender seus direitos junto aos parlamentares. É irresponsabilidade jogar a nação em uma aventura revisionista.
Neste sentido, outro ponto sensível é a questão do quórum. A proposta define para aprovação um quórum de maioria absoluta (metade mais um, que são 256 deputados), enquanto para alterar um dispositivo por meio de PEC é necessário ter três quintos dos votos (que são 308 deputados). Esse rebaixamento no quórum compromete a legitimidade da modificação efetuada. Conforme o processo legislativo, esta proposta ainda segue para ser apreciada pelo Plenário da Câmara dos Deputados e terá de ser votada em dois turnos. Esperamos que o presidente da Câmara, Aldo Rebelo (PC do B-SP), tenha o bom senso de esquecer essa PEC no fundo da gaveta da história.
Rets - Quais são os setores mais interessados na aprovação dessa proposta? E por quê?
Edélcio Vigna - Os partidos que votaram pela aprovação da PEC na Comissão Especial foram o PMDB, o bloco PFL-Prona, o PSDB, o PL e o PPS. Não estavam presentes PSB e PP. Votaram contra ela o PT, o PTB, o PDT, o PC do B e o PSOL. Se absteve o PV. Como podemos observar, votaram a favor os partidos que defendem os interesses do patronato urbano e rural. São esses setores que defendem uma flexibilização dos direitos dos trabalhadores para poderem aumentar seus lucros. São os setores financeiros, industriais e o de serviços, em especial, os grandes supermercados e os de telecomunicação, dominados pelo capital internacional. Diminuir os direitos trabalhistas significa abrir o acesso do capital, com maior voracidade, ao mercado nacional. Significa o início do fim dos setores produtivos nacionais.
Rets - Nós não precisamos, afinal, de uma reforma constitucional? E esta não pode ser feita sem retrocesso?
Edélcio Vigna - Não podemos nos deixar levar pelo falso debate. A pergunta não é se o Brasil precisa de uma revisão constitucional, mas como essa revisão pode ser realizada com participação popular e dos setores produtivos interessados. Como envolver os setores médios e pequenos da agricultura, da indústria e dos serviços? Os grandes capitalistas já possuem representação política demais no Estado brasileiro. Como vamos envolver a nação como um todo? Como realizar uma revisão inclusiva dos setores excluídos? Como refazer um pacto sócio-político para avançar no sentido de ampliar a democracia e a justiça social?
Rets - O mecanismo das emendas supre as demandas de alteração do texto constitucional?
Edélcio Vigna - O mecanismo das emendas não é para fazer uma revisão constitucional, mas para alterar ou suprimir pontos de estrangulamento ou pontos que estão sendo superados pela modernidade do nosso tempo. Uma PEC, ao modificar um artigo, por exemplo, que altere um direito específico, tem o poder de mobilizar os trabalhadores do setor afetado para que entrem no debate com suas representações de classe. É uma proposta pontual ou setorial, não é uma proposta global, como é o caso de uma revisão.
Rets - E como está o andamento da proposta?
Edélcio Vigna - A proposta foi aprovada na Comissão Especial. Será encaminhada para a Mesa Diretora, que vai, por meio de reuniões do Colégio de Lideres, inserir ou não na pauta do Plenário da Câmara dos Deputados. Caso entre na pauta, será votada em dois turnos. Se não entrar, fica esperando na lista de proposições de 1991 para a pauta do Plenário, até ter consenso no Colégio de Líderes. São propostas que estão perdidas no tempo e não há nenhum expediente para arquivá-las.
Rets - Na sua opinião, há um receio mais amplo de um movimento de retrocesso na conquistas de direitos humanos e de ameaça às bases democráticas no país?
Edélcio Vigna - Os movimentos e as organizações sociais do campo democrático tiveram experiências difíceis com os setores políticos neoliberais. Grande parte dos acordos firmados pela direita durante a Assembléia Nacional Constituinte de 1988 não foi cumprida. O ambiente, quando setores populares e setores de elite se reúnem, sempre está carregado de desconfiança por parte dos trabalhadores. A história está repleta de golpes contra as classes trabalhadoras e excluídas. Portanto não é estranho que haja uma expectativa negativa quando um grupo de parlamentares resolve aprovar uma revisão constitucional sem consultar a sociedade civil.
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