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Câmara às claras

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Câmara às claras
Foto: Carlos Terrana
O ano passado foi bastante movimentado no Congresso Nacional. Não faltaram denúncias de corrupção, escândalos e políticos perdendo cargos ou renunciando a eles. A imagem da Câmara para o povo – que já não era das melhores – teve motivos para piorar. Coincidentemente, esse ano tão agitado trouxe uma surpresa interessante sobre o trabalho dos representantes da população no Legislativo. A casa publicou há duas semanas seu primeiro anuário estatístico, uma compilação de dados quantitativos sobre as atividades dos deputados em 2005.

Com o documento, disponível para download no site da Câmara [ver link ao lado], é possível saber quantas sessões foram realizadas (333, entre as ordinárias, solenes e de comissões), em quantas houve votações (130), temas e tipos de normas jurídicas geradas, entre outras informações úteis para quem quer saber mais sobre o que fazem os deputados. Entre elas, a quantidade de proposições votadas em 2005: 218. A maioria (97) eram projetos de decreto legislativo (PDC), isto é, normas para a própria Câmara. Foram votados 40 projetos de lei (PLs), 46 medidas provisórias e 27 propostas de emenda constitucional (PECs). Pouco (12%), quando se compara com o volume de projetos que tramitaram em alguma instância no ano passado: 1.725. Desses, quase 90%, ou 1.548, foram apresentados por deputados; 106 por senadores (o equivalente a 6%) e 48 pela Presidência (2%).

Várias dessas proposições chegaram ao plenário depois de passar por uma das 20 comissões parlamentares permanentes e 59 temporárias, além de quatro comissões parlamentares de inquérito que estão em andamento (biopirataria, ação de grupos de extermínio no Nordeste, tráfico de armas e setor elétrico). Dentre as comissões, a que mais trabalhou foi a de Constituição, Justiça e Cidadania, última etapa pela qual uma proposição deve passar antes de ser encaminhada para votação. A CCJ é responsável por verificar a viabilidade, de acordo com a Constituição, de uma lei. Ela realizou 90 reuniões deliberativas e registrou maior presença média de deputados. A comissão analisou 351 PLs, quase um por dia, e 61 PECs, num total de 1.487 exames.

Analisando mais uma estatística do anuário, a presença de deputados em sessões deliberativas chegou a 75,9%. Ou seja, a média de comparecimento foi de três em cada quatro sessões em que leis eram votadas, dado que poderia desmontar a tese de que deputados não comparecem ao plenário para realizar seu trabalho. O otimismo, porém, deve ser contido, pois o dado puro e simples não dá certeza sobre a presença do parlamentar durante toda a sessão. “Nas sessões deliberativas, se o parlamentar não marcar seu ponto, ele perde o dia. Tem um desconto na folha de pagamento. Por isso todos e todas correm ao plenário para marcar presença. Mas nada garante que ficam por lá. Marcam presença e voltam para o gabinete, onde ficam despachando até que a votação comece”, explica Edélcio Vigna, assessor do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), que acompanha de perto o processo legislativo.

Ou seja, números e porcentagens não faltam. Mas faltam contextualização e cruzamentos de dados. E é justamente esse alerta que faz o próprio diretor do Centro de Informação e Documentação da Câmara, Jorge Henrique Cartaxo. “O grande risco de trabalhar com informações que se situam tão perto da mera descrição factual, risco que se acentua quando há a possibilidade de um tratamento eminentemente quantitativo de tais informações, reside na tentação de dar peso de verdade acabada a conclusões que, embora retiradas de uma massa de dados consistente com a realidade, podem, na verdade, primar pela superficialidade", adverte o diretor do órgão que produziu o anuário, no texto de apresentação do documento.

Um número que salta aos olhos e merece mais reflexão é o de medidas provisórias (MPs) aprovadas (46), principalmente se comparado ao de PLs aprovados (40). Medidas provisórias devem funcionar como normas emergenciais e, em casos isolados, elaboradas pelo Executivo para regular uma matéria que precisa de decisão rápida. Vale lembrar ainda que valem como lei durante 45 dias, quando então a Câmara deve votar o texto para garantir sua validade. No entanto o número cada vez maior ao longo das últimas gestões mostra o abuso e a descaracterização que as MPs vêm sofrendo.

“Como já é corrente no meio político, o Executivo seqüestrou o direito de legislar do Congresso Nacional”, diz Edélcio Vigna, do Inesc. “O Executivo se defende declarando que uma série de leis que são relevantes e urgentes demoram muito e que o processo legislativo é lento e as demandas não podem esperar. O processo legislativo tem mesmo que ser criterioso, não lento. Assim transforma o que poderia ser uma simples proposta de lei em uma Medida Provisória”, diz.

Ele critica ainda o número baixo de PLs aprovados, explicando que até os requisitos necessários são menos exigentes do que o de outras normas. “Causa estranhamento que em 2005 só tenham sido aprovados 42 PLs. É muito pouco. Não precisa nem ser comparado com o número de MPs (46) ou de PECs (27). Um PL precisa de quórum mínimo, e muitas vezes é votado por aclamação. Um projeto de emenda constitucional precisa de 3/5 de votos positivos em dois turnos. E uma MP precisa de maioria absoluta. Este número de PLs votados é inexpressivo e depõe contra a Câmara dos Deputados”, dispara.

Temas

Entre os temas mais abordados nas proposições, “organização política” vem em primeiro lugar, com 418 propostas, seguido por “administração pública” (388). Propostas ligadas a “economia e finanças” também receberam muita atenção, ocupando a terceira posição nesse ranking. É curioso observar que temas importantes para muitas das organizações da sociedade civil, como comunicação e meio ambiente, são dos menos comuns na pauta dos deputados.

De todas as normas jurídicas aprovadas, a administração pública também é o principal tema. A economia vem em seguida, com dez normas aprovadas. Apenas uma lei relativa ao meio ambiente foi aprovada no ano passado, além de seis relativas a trabalho e emprego e nove sobre direitos humanos.

Para organizações ligadas a essas áreas, é preciso cuidado ao analisar os números, pois não se sabe se os projetos gerariam fortalecimento ou enfraquecimento das demandas ou dos direitos já adquiridos em cada área. O coordenador nacional do Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos (Fendh), Ivônio Barros, exemplifica citando o longo percurso do PL que cria o Conselho Nacional de Direitos Humanos, em tramitação desde 1996. O projeto foi aprovado no ano passado pelo Senado e voltou para a Câmara para aperfeiçoamento. Nessas idas e vindas, recebeu modificações que desfiguram o projeto original. Agora, segundo Barros, o que se tem é um texto que, se aprovado, não seria o ideal.

“Há quem diga que a não aprovação significa desleixo com a área de direitos humanos. Por um lado, acho bom não aprovar essa proposta, pois é muito ruim”, diz ele, lembrando que muito do trabalho das entidades de direitos humanos tem sido tentar “frear tentativas ultraconservadoras que limitam os direitos humanos por meio de proposições retrógradas”.

Caio Varela, também do Fendh, cita outra proposição que merece ser lembrada por ter sido recusada: o projeto de decreto legislativo 1002/2003, que pretendia antecipar a maioridade penal. “Conseguimos embarreirar esse projeto, por meio de um esforço grande de todo um conjunto de ONGs, entre elas o Fórum Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente”. Segundo Varela, um ponto negativo foi a não aprovação de nenhum PL que trate dos direitos das pessoas homossexuais. “Não só pela pressão das bancadas evangélica e católica, mas muito porque o tema não é visto como prioritário e por causa do preconceito nitidamente ainda existente”, explica.

No que se refere a proposições relativas a meio ambiente, também há destaques no que passou pela Câmara no ano passado. O principal talvez tenha sido o PL 4.776/2005, que foi encaminhado ao Congresso pelo Executivo, com a intenção e permitir o gerenciamento particular de florestas públicas, por meio de três formas: criação e gestão direta de Florestas Nacionais (Flonas), destinação às comunidades locais e concessão florestal. Controvertido desde o início, no prazo de um ano e dez dias o PL se transformou na lei 11.284/2006.

“Foi aprovado em tempo recorde nas duas casas [Câmara e Senado], apesar de toda a polêmica que suscitava, com a lógica de tratar a questão ambiental com viés comercial. É de interesse dos produtores, pois estimula a produção. Claro que com características sustentáveis, mas ainda assim trata o meio ambiente com a lógica comercial”, analisa Adriana Ramos, coordenadora da área de Política e Direito Sociambiental do Instituto Socioambiental (ISA).

Outro que chama atenção – mais uma vez pela não aprovação – é o projeto de lei da Mata Atlântica (3.285/1992), que está na casa há 14 anos e é considerado essencial pelas ONGs que trabalham pela preservação do bioma. “Esse projeto tem a intenção de conservar e preservar. E o que vemos é que existe uma concentração de forças para que não seja votado, pois ele impõe limitações e compromissos com recuperação para quem quiser interferir na Mata Atlântica”, explica Adriana. O setor rural e a bancada ruralista são os principais opositores da proposta.

Segundo a representante do ISA, o governo tem conflitos internos a respeito dos temas ambientais e por isso não tem como articular uma posição conjunta de sua base. Para Adriana, “os dois projetos – o de florestas públicas e o da Mata Atlântica – são exemplos exatamente opostos de como se trata a questão ambiental dentro do governo”.

No que se refere a assuntos ligados à mulher e às questões de gênero, certamente o principal fato na esfera legislativa no ano passado foi a apresentação da proposta que trata da descriminalização do aborto. Fruto do trabalho de uma comissão tripartite com 18 membros formada para analisar o tema, uma proposta de legislação foi entregue em setembro pela ministra Nilcéa Freire ao deputado Benedito Dias (PP-AP), presidente da Comissão de Seguridade Social e Família. O que diferencia essa proposta – que ainda não é um PL – de outras que já tramitaram na casa é a legitimidade conferida por ser fruto de uma comissão com representantes do Executivo, do Legislativo e da sociedade civil e pelo fato de ter a chancela da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM).

Marcelo Medeiros e Maria Eduarda Mattar

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