Autor original: Luísa Gockel
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![]() Mulher Ava-Canoeiro (GO) Foto: Liliane Luchin | ![]() |
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) lançou no dia 30 de maio o “Relatório de Violência contra os Povos Indígenas no Brasil”. A publicação aborda os vários tipos de violência cometidos contra a população indígena entre 2003 e 2005, como os conflitos decorrentes da luta pela terra. De acordo com o documento, foram contabilizados 26 desses conflitos em 2003, 41 em 2004 e 32 até a metade de 2005. Segundo a antropóloga Maria Lucia Rangel, organizadora do relatório, de maneira geral os dados apresentam uma piora em todos os temas. “Parece que não há por parte do Estado uma defesa dos direitos dos indígenas. Parece que o governo não assumiu a defesa do que está garantido na Constituição”, critica.
Nesta entrevista, a pesquisadora também chama atenção para o problema da homologação de reservas indígenas. Dados do relatório mostram que, nos últimos três anos, houve homologações que levaram mais de um ano para serem assinadas. Outros 27 processos acabaram 2005 sem sair do Ministério da Justiça. Segundo Maria Lucia, fazendeiros pedem a reintegração da posse mesmo de terras já homologadas. E os juízes muitas vezes aceitam o pedido. “O juiz não pode ver a questão da homologação como uma coisa técnica. É lamentável que hoje, no Brasil, tenhamos números como esses do relatório”, lamenta.
Entre os episódios de violência contra indígenas estão assassinatos, ameaças de morte, racismo e discriminações culturais. Outro tema abordado pelo relatório é a violência provocada pela omissão do poder público. Há registros de casos de suicídio, mortes por falta de assistência à saúde, mortalidade infantil, desnutrição, disseminação de bebidas alcoólicas e precariedade na área de educação. Muitos desses problemas, segundo a antropóloga, são decorrentes do fato de alguns povos estarem confinados em territórios muito pequenos.
O capítulo final do relatório apresenta dados sobre ameaças a povos indígenas isolados. Dos 60 de que se tem notícia no Brasil, pelo menos 17 correm sério risco de extinção. O documento denuncia que há práticas de extermínio de indígenas e que esse "crime de genocídio tem sido praticado por grupos a serviço de grileiros de terras públicas, madeireiros e fazendeiros. A estratégia é acabar com todo e qualquer vestígio de presença indígena para inviabilizar a demarcação de suas terras”.
Rets – Como começou o trabalho de coleta de dados para o relatório?
Lucia Rangel - O trabalho começou nos regionais do Cimi. Equipes de área enviaram informações para o Secretariado Nacional do Cimi. São registros de descaso e de violência em cada localidade que foram acompanhados pela equipes de cada localidade. Normalmente essas equipes ajudam a tomar as providências e a resolver o problema, dependendo do caso.
A coleta do outro tipo de informação que trabalhamos é feita pela Secretaria Nacional na mídia impressa e eletrônica. Além disso, o Cimi recebe informações diárias de agências especializadas na questão indígena. Outra fonte são as reuniões e as denúncias dos próprios povos indígenas.
Rets – De que forma os dados estão organizados na publicação?
Lucia Rangel - Fizemos tabelas sobre quem são as pessoas envolvidas e quais providências foram tomadas em cada caso. Isso é dividido por ano e por estados. Alguns dados temos até o final de 2005, como os casos de assassinatos, que o Cimi sempre acompanha de perto. Outros só vão até a metade do ano passado.
Trabalhei a análise desses dados, checando sua consistência e fazendo um resumo, apontando o que há de mais importante em cada temática.
Rets – E a que conclusões você chegou?
Lucia Rangel - Verificamos que houve um aumento da violência e do descaso em todas as áreas. Os lugares onde a violência é maior são os estados do Mato Grosso do Sul, Roraima – que já foi pior, antes da demarcação da reserva Raposa Serra do Sol –, Bahia, Pará e Santa Catarina.
Em Mato Grosso do Sul, o problema maior é com os terena, que vivem em terras muito apertadas e têm uma população grande. Outro povo confinado são os guarani kaiowá. Os fazendeiros entram com pedido de reintegração de posse até para terras homologadas. E o juiz dá! Esse problema das terras no estado chamou até a atenção da Anistia Internacional. É um problema de fundo, que revela muitos outros, como alcoolismo e desnutrição.
Rets – A Funai alega que dá o parecer para a homologação, mas os processos ficam parados na Justiça Federal...
Lucia Rangel - Não é exatamente um problema da Justiça Federal. O que acontece é que o fazendeiro entra com o processo de reintegração de posse e susta o registro no cartório. Quando consegue a reintegração, as pessoas são despejadas daquela área. Isso não aconteceu uma ou duas vezes. Acontece o tempo todo. Os juízes e advogados alegam que o laudo não foi bem feito e conseguem a reintegração.
Parece que não há por parte do Estado uma defesa dos direitos dos indígenas. Parece que o governo não assumiu a defesa do que está garantido na Constituição. Eles transformam a demarcação em algo muito técnico. E não pode ser assim, tem um fundo humanitário, político e social.
Rets – Estamos na Década Internacional dos Povos Indígenas, promovida pelas Nações Unidas. Isso fez alguma diferença?
Lucia Rangel - Nessa década deveria ter havido uma grande campanha de conscientização da população, dos órgãos do governo, do Judiciário. O juiz não pode ver a questão da homologação como uma coisa técnica. É lamentável que hoje no Brasil tenhamos números como esses do relatório.
Para mim é muito doído. Trabalho há anos com a questão indígena e tento ensinar em palestras e na universidade o quanto temos de aprender com os povos indígenas. E o quanto a nossa história é cruel com eles. Os índios foram apagados da nossa história. Temos uma dívida histórica com essa população, que vem sendo violentada e explorada há cinco séculos. Achávamos que no século 21, com tanta tecnologia e informação, isso ia mudar.
Rets – E o que o relatório mostra em relação à saúde indígena?
Lucia Rangel - A saúde no Brasil é ruim para todo mundo. Apesar de os povos indígenas terem leis e procedimentos garantidos por uma lei especial, eles continuam reclamando. Existem algumas experiências que funcionam, então não posso dizer que o trabalho da Funasa [Fundação Nacional de Saúde] é todo ruim. Mas, de uma maneira geral, essa é uma questão muito difícil ainda.
O problema é que toda vez que se faz uma política para o Brasil, não se pensa no tamanho do país nem nas suas especificidades. Pensar sobre isso seria certamente um bom caminho a seguir.
Rets – O levantamento também tem registro de casos de discriminação. Como esses dados chegaram até o Cimi?
Lucia Rangel - Temos registro de declarações na imprensa, discursos, caso de pessoas barradas em lugares ou até de comunidades que assumem sua identidade indígena e são discriminadas pela própria Funai [Fundação Nacional do Índio], que não as reconhece. A Funai pede perícia ou outras coisas discriminatórias. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho [Convenção Relativa aos Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, ratificada pelo Brasil em 1993] diz que indígena é aquele que se reconhece como tal.
Isso reflete como o órgão não dá conta do tamanho da população indígena brasileira. E tenta diminuí-la. O censo do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], que é baseado na autodeclaração, contou mais de 700 mil indígenas no país. A Funai diz que o IBGE está errado. E afirma que há muito oportunista dizendo que é índio. Isso é uma grande discriminação por parte de quem deveria defendê-los.
Rets – Você acha que o relatório pode ajudar a reverter essa situação?
Lucia Rangel - Quando fazemos esse tipo de denúncia é porque temos esperança de que alguém nos ouça, principalmente os responsáveis por essa situação. A denúncia pode até parecer negativa, mas para nós do Cimi é uma ação afirmativa.
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