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Aids: combate sustentável no Brasil?

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Artigos de opinião






Sustentabilidade do Programa Nacional de Aids: um grande desafio

Roberto Pereira*

No dia 5 de junho de 1981, uma equipe de médicos americanos, intrigados com casos de uma rara pneumonia que atingia cinco homossexuais com idades entre 29 e 36 anos, na cidade de Los Angeles, publicava um relatório que viria a ser o marco decisivo na história recente da medicina.

Esse era o primeiro registro do que viria a ser conhecido mais tarde como Aids, uma síndrome que ao longo dos últimos 25 anos vem impactando de forma decisiva a história da humanidade, suas relações, seus conceitos e preconceitos. Ao contrário de outras epidemias, a aids extrapolou as fronteiras da medicina, passando a ser vista sob as mais diferentes óticas como a dos direitos humanos, a religiosa e a econômica, mobilizando milhares de pessoas em todo o mundo e passando a fazer parte de nossas vidas de forma decisiva.

No Brasil, por uma feliz conjunção de fatores que até hoje merece elogios e estudos; sociedade civil e governos foram surpreendentemente rápidos em esboçar uma resposta coletiva, que veio resultar no atual modelo de enfrentamento a epidemia que prevê ações de prevenção, assistência, tratamento, advocacy e um ousado programa de distribuição de anti-retrovirais para portadores do vírus HIV.

Um relatório da Unaids divulgado há poucos dias faz avaliação positiva do modelo brasileiro destacando: "A resposta do Brasil à aids continua a ser louvável. A prevalência nacional do HIV era 0,5% em 2005, infecções de HIV relacionadas ao uso injetável de droga estão em queda em diversas cidades e o acesso ao tratamento é amplamente difundido. Cerca de 170 mil dos 209 mil brasileiros precisando de terapia retroviral estavam recebendo-a em 2005, incluindo 30 mil usuários de drogas injetáveis."

Em que pese todo esse reconhecimento, interno e externo, as pessoas que vivem com o HIV/aids não têm como relaxar. Mesmo sabendo que temos um programa de combate ao HIV/aids tido como modelo, não há como desconsiderar que as mazelas que atingem a saúde pública no Brasil se refletem também na atenção aos portadores do HIV/aids. Aliado a isso, um outro fantasma paira sobre as cabeças diariamente: é o custo desse tratamento.

Em recente entrevista à BBC Brasil, Alexandre Grangeiro, diretor do Instituto de Saúde de São Paulo e ex-coordenador do Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde, afirmou que o programa brasileiro de distribuição de anti-retrovirais para portadores do vírus HIV será insustentável em longo prazo, se continuar da maneira que é feito hoje. Segundo ele, o Brasil gastou cerca de R$ 6 mil por paciente beneficiado pelo programa em 2005, valor que, para Grangeiro, só poderá ser mantido às custas de mudanças profundas no atual modelo.

"Manter a atual política de anti-retrovirais significa comprometer os tratamentos de outros programas (do Ministério da Saúde), o que já aconteceu em 2005", disse Grangeiro à BBC. Segundo ele, o Brasil vai ter que escolher entre diminuir a qualidade do tratamento atualmente dispensado ou atacar as causas do aumento dos preços dos remédios.

Chegamos então a uma das questões mais difíceis de serem tratadas por técnicos e militantes do movimento social de luta contra a aids e que vem se apresentando cada vez mais complexa em nossas pautas de discussão: o licenciamento compulsório – a quebra de patentes – e a fabricação nacional de insumos. Esses assuntos têm tirado o sono de muita gente e, em que pese tudo que se discutiu até agora, permanecem ainda como uma grande incógnita para todos.

Desde 2001, o Movimento Social de Luta Contra a Aids, liderado pelos Fóruns Estaduais de ONG/aids e demais representações da sociedade civil em importantes espaços de articulação e controle social, vem defendendo a adoção de medidas efetivas do governo brasileiro no sentido de garantir a autonomia e sustentabilidade da resposta brasileira ao HIV/aids, principalmente no que diz respeito à produção nacional de medicamentos e insumos.

As informações disponíveis dão conta de que, para algumas formulações, a indústria brasileira, basicamente os laboratórios públicos, a exemplo de Farmanguinhos, têm absoluta competência para a sua produção, desde que garantido o acesso às respectivas matérias primas.

Não faltam entretanto vozes a questionar essas informações e a prever nossa total e irreversível dependência aos laboratórios internacionais, entendendo-se aí uma dependência insustentável aos seus preços. Junte-se ainda a essa discussão as pressões oriundas dos mais diferentes setores e para os quais essa questão diz respeito apenas à esfera da economia e que qualquer enfrentamento às Leis do Mercado Internacional podem resultar em prejuízos financeiros e retaliações dos donos do capital.

Seja como for, entendemos que a vida não é um bem negociável e que a saúde, como diz nossa Constituição, é um direito de todos e um dever do Estado. Por conta disso não podemos permitir que vidas se transformem em simples indicadores e que nossos gestores e governantes se omitam no enfrentamento dessa questão.

Recentemente, o Conselho Nacional de Saúde, instância máxima do controle social da saúde, emitiu deliberação em defesa do licenciamento compulsório, sendo frontalmente desrespeitado pelo Ministério da Saúde que se contrapôs a essa deliberação com um questionável acordo com laboratórios multinacionais, esvaziando sistematicamente as propostas de fortalecimento da indústria nacional e aporte de recursos para as áreas de pesquisa, sempre com a alegação de incapacidade nacional para garantir a produção de medicamentos de boa qualidade.

Por ocasião da VI Reunião da Articulação Nacional de Luta Contra a Aids, realizada no final de abril na cidade do Rio de Janeiro, ficou decidido que a defesa dessa autonomia será prioridade do movimento ao longo de 2006 por entendermos que só dessa forma poderemos garantir a atual política de enfrentamento ao HIV/aids.

Enquanto isso, paralelo a todo o desmanche que a saúde pública vem sofrendo governo após governo, a disponibilização e o acesso aos recursos para as mais diferentes ações de enfrentamento à epidemia vêm piorando ano a ano, trazendo sombrias perspectivas em curtíssimo prazo para os milhares de brasileiros que dependem das decisões do governo para viver, e que não sabem se no dia seguinte esses medicamentos estarão disponíveis.

* Roberto Pereira é psicólogo, coordenador-geral do Centro de Educação Sexual (Cedus) e secretário do Fórum ONGs/AIDS/RJ.






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