Autor original: Mariana Loiola
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“Imagine um carro oficial blindado, tendo como distintivos uma caveira e uma espada, com policiais que entram atirando nos postes de iluminação primeiro e depois nos moradores do seu bairro... isto é o Caveirão. Um garoto de 11 anos teve a cabeça arrancada do corpo com os tiros que partiram do caveirão”, moradora do Caju, Rio de Janeiro.
O relato acima, incluído no relatório “‘Vim buscar sua alma’: o Caveirão e o policiamento no Rio de Janeiro”, da Anistia Internacional, ilustra o terror vivido por comunidades pobres do estado desde 2004, quando o uso do Caveirão começou a se intensificar. Para dar fim a essa prática, na última quarta-feira (7 de junho), moradores de algumas comunidades, o Centro de Direitos Humanos de Petrópolis, a Justiça Global e a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência comandaram uma marcha contra o uso do Caveirão e a violência policial no Rio de Janeiro e entregaram um abaixo-assinado com mais de cinco mil assinaturas à governadora Rosinha Matheus, pedindo o fim do uso do blindado. A manifestação fez parte das mobilizações da Campanha contra o Caveirão, lançada simultaneamente no Rio de Janeiro e em Londres, Inglaterra, em 13 de março.
O Caveirão é um carro blindado adaptado para ser um veículo militar. Seu nome refere-se ao emblema do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), uma caveira com uma espada enterrada, que aparece com destaque na lateral do veículo.
Em entrevista à Rets, o advogado Carlos Eduardo Gaio, diretor de Relações Internacionais da Justiça Global, fala sobre o pânico relatado pelas comunidades. “Vim buscar sua alma” é uma das ameaças mais comuns que os policiais fazem pelo alto-falante de dentro do Caveirão, para intimidar os moradores. O veículo torna difícil responsabilizar a polícia em casos de violência, pois não é possível identificar quem está no seu interior.
Além de não colaborar para a segurança dos policiais – argumento utilizado pela Polícia Militar –, o Caveirão, segundo os coordenadores da campanha, estimula o crime organizado a buscar armamentos mais pesados para combatê-lo. Outro resultado preocupante dessas operações, segundo Gaio, é o efeito psicológico sobre as crianças. “O Caveirão é uma espécie de bicho-papão, é o grande temor delas. Isso influencia na maneira como elas vêem a polícia e a própria sociedade”, diz.
Rets – O Caveirão é utilizado só no Rio de Janeiro? Desde quando?
Carlos Eduardo Gaio – A informação que nós temos é que, sim, é utilizado só no Rio de Janeiro, mas outros estados estão considerando a possibilidade de usá-lo também. O Caveirão é uma invenção do atual Governo do Estado do Rio de Janeiro. Antes disso não existia esse veículo blindado, que tem sido usado cada vez com mais intensidade, desde 2004, principalmente.
Rets – Em que comunidades ele atua?
Carlos Eduardo Gaio – Em quase todas as comunidades carentes do Rio de Janeiro, principalmente na favela da Maré e em Acari, por exemplo, onde já matou algumas pessoas. A estimativa oficial, com números da Secretaria de Direitos Humanos, é de que no ano passado foram mortas pelo menos dez pessoas com o Caveirão.
Rets – Em que situações o Caveirão é utilizado e para que ele serve?
Carlos Eduardo Gaio – Segundo a justificativa da Polícia Militar, ele é usado em situações em que o soldados precisam de proteção para entrar nas favelas para operações em que eles correm risco de vida. Mas a gente percebe – e a população confirma isso – que o Caveirão é usado indiscriminadamente, tanto de dia como à noite, para provocar pânico e terror e intimidar as pessoas dessas comunidades.
Rets – Como isso é feito?
Carlos Eduardo Gaio – O Caveirão entra com o auto-falante ligado, com músicas e mensagens atemorizando a população. Algumas músicas, por exemplo, dizem que eles chegaram para buscar as almas daquelas pessoas, para que elas saiam da rua, com ofensas às mulheres e às crianças que passam. Dirigem, muitas vezes, em alta velocidade, atirando a esmo e sem direção, com o intuito de causar pânico naquelas pessoas. Há também casos, relatados por testemunhas e familiares de vítimas, em que os jovens foram mortos por policiais que estavam atirando de dentro do Caveirão. Depois disso, os policiais colocaram o corpo do jovem na frente do carro blindado e fizeram um tour pela favela para mostrar a força e o poder do Caveirão.
Rets – As autoridades têm conhecimento de todas essas práticas?
Carlos Eduardo Gaio – Têm conhecimento, sim. Essas denúncias foram passadas para a Secretaria de Direitos Humanos, mas o governo não fez absolutamente nada a respeito. A atitude da Secretaria de Segurança Pública e da Polícia Militar é de simplesmente negar que isso ocorreu.
Muitos casos não foram denunciados, porque as famílias têm medo de represálias por parte da polícia e, muitas vezes, até por parte do tráfico de drogas, porque isso atrairia a atenção para a sua comunidade.
Rets – Quais são os impactos dessas intervenções nas comunidades?
Carlos Eduardo Gaio – As comunidades são colocadas numa situação de ainda mais perigo e violência, tanto para os moradores adultos quanto para as crianças e os idosos. Os casos relatados são de crianças que estavam brincando ou jovens que estavam na favela no lugar errado, na hora errada, e foram atingidos por tiros do Caveirão.
Um outro resultado do uso desse tipo de blindado é que o tráfico de drogas acaba buscando armamentos ainda mais pesados e perigosos como reação ao Caveirão. Então o que acaba ocorrendo é uma escalada no uso de armas e violência por parte desses grupos.
Tem também o efeito psicológico nas crianças. O Caveirão é uma espécie de bicho-papão para as crianças dessas áreas, é o grande temor delas. Isso influencia na maneira como elas vêem a polícia e a própria sociedade, o que é muito preocupante.
Rets – Então o Caveirão estimula o crime?
Carlos Eduardo Gaio – Sim. O efeito não tem sido de proteger os policiais como a Polícia argumenta, muito menos de combater o crime. O Caveirão não tem um espaço de custódia, um camburão, como tem no carro da polícia, por exemplo. Então ele não pode prender ninguém, não tem essa função. Ele simplesmente faz incursões em que os policiais atiram com metralhadoras, sem qualquer tipo de identificação e sem que as pessoas saibam quem está atirando.
Rets – A polícia carioca é a mais violenta do país?
Carlos Eduardo Gaio – Possivelmente é, mas as estatísticas no Brasil são muito falhas. Não existe uma coleta de dados nacional com critérios científicos em relação a todos os crimes e violações cometidas pela polícia. O que existe são dados da polícia do Rio de Janeiro e de São Paulo. Nesses estados, é possível comparar os números. E o Rio de Janeiro é, mesmo em termos absolutos (é claro que o Rio tem uma população muito menor do que a de São Paulo), a polícia que mais mata. No ano passado, foram mortas por volta de 1.100 pessoas; no ano de 2004, cerca de 900; em 2003, foram 1.195. São mais ou menos quatro pessoas mortas por dia pela polícia do Rio de Janeiro.
Rets – A Justiça Global tem um relatório de 2004 sobre a violência policial e a insegurança pública no Rio de Janeiro...
Carlos Eduardo Gaio – Sim, esse relatório foi apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos durante uma audiência. Nele nós documentamos como a polícia matava, como tentava escapar de investigação e de punição e também a postura do Judiciário, que autorizava “mandados de busca e apreensão itinerantes” [documento juridicamente contestável que permite a revista de qualquer morador ou residência de um local], invenções ilegais aqui do Rio de Janeiro e que agora, infelizmente, foram usadas em São Paulo, na seqüência dos ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC).
Rets - Protesta-se contra a forma truculenta como o Caveirão entra nas favelas. Como entrar, então, já que muitas vezes as favelas são refúgio de quadrilhas que atacariam policiais que não apresentassem defesa?
Carlos Eduardo Gaio – O Estado deve estar presente sempre nessas comunidades, e não só com a polícia. A polícia do Rio de Janeiro é o único órgão do Estado que entra nas favelas. E entra dessa maneira, como você disse: truculenta e, muitas vezes, matando. Essa não é a maneira de enfrentar o crime. Isso se enfrenta com políticas de longo prazo, com investimento em investigação, inteligência policial para desbaratar esses grupos criminosos. E também com uma presença firme do Estado provendo serviços públicos à população, educação, saúde, moradia e saneamento. A situação que nós vemos hoje é que essas comunidades carentes são duplamente vitimizadas, tanto pela violência do tráfico de drogas e do crime organizado, quanto pela truculência da polícia nessas incursões, por exemplo, com o Caveirão.
Rets - Por que a campanha contra o Caveirão, que é um problema exclusivo do Rio de Janeiro, foi lançada simultaneamente em Londres?
Carlos Eduardo Gaio – A Anistia Internacional - que é uma das quatro organizações que participam da campanha – é uma organização de direitos humanos que tem um trabalho de muitos anos no Brasil e, que, nos últimos anos, tem feito um trabalho específico em relação à segurança pública, tanto em nível internacional quanto especificamente no Rio de Janeiro. A Anistia é uma parceira das organizações locais e dos movimentos populares das comunidades do Rio do Janeiro, conhece a situação do Caveirão e achou importante denunciar essa situação internacionalmente, como está fazendo agora com essa campanha. E a campanha não foi feita só em Londres. Vinte seções da Anistia Internacional no mundo inteiro trabalham com seus membros para participarem da campanha, preencherem e enviarem o cartão postal para a governadora do Rio de Janeiro pedindo o fim do uso do Caveirão. Esses países incluem Canadá, Filipinas, Israel, Inglaterra, Nova Zelândia, Chile e México, entre outros.
Rets – Existe uma visão de que "ONGs de direitos humanos só defendem direito de bandido". Como vocês vêem essa manifestação de uma parte significativa da população? E como reagem a isso?
Carlos Eduardo Gaio – Essa é uma concepção ingênua, explicada em parte pela situação de medo e insegurança que essas pessoas vivem por conta do crime e por uso apelativo dessa situação por parte da imprensa e por muitos políticos. Mas dizer que ONGs de direitos humanos só defendem direito de bandido é uma inverdade. Elas defendem os direitos humanos para todas as pessoas. Existe também muito preconceito em relação às pessoas que moram nas favelas e nas comunidades pobres, tanto por parte da imprensa quanto de governantes e da classe média mais conservadora, que vêem essas pessoas todas como bandidos. Assim, defendendo as pessoas dessas comunidades, estaríamos, por conseqüência, defendendo bandidos.
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