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Caminhos da bola

Autor original: Luísa Gockel

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Caminhos da bola

Engana-se quem pensa que o poder transformador do futebol se limita às linhas do campo. Também se engana quem acha que estamos falando de projetos sociais que usam escolinhas de futebol como forma de recreação e inclusão para crianças de baixa renda. A força do esporte, que em época de Copa do Mundo faz parar um país do tamanho do Brasil, tem sido canalizada para projetos muito mais amplos. Organizações fundadas na última década por jogadores e ex-jogadores têm mostrado que o carisma dos atletas pode ser empregado com sucesso em projetos que oferecem saúde, educação, lazer e capacitação a comunidades pobres por todo o país.

Desde a conquista do tetracampeonato mundial, em 1994, algumas organizações sociais foram fundadas por jogadores da seleção, como Bebeto, Dunga e Jorginho. De acordo com o diretor de Comunicação e Desenvolvimento Institucional da Fundação Gol de Letra, Cezar Marques, muitos foram os motivos que levaram a esse boom. “Em 1994, vivíamos um momento de otimismo e estabilidade econômica, com o lançamento do Plano Real. Além disso, vínhamos de um processo que causou enorme decepção na população alguns anos antes, que foi o impeachment do Collor" [o então presidente da República Fernando Collor de Mello], analisa o diretor da organização fundada por pelos atletas Leonardo e Raí.

Marques destaca ainda um fator fundamental: o aumento dos salários dos jogadores a partir do fim da década de 1980. Segundo ele, como geralmente os atletas profissionais são provenientes de comunidades de baixa renda e experimentam uma melhora considerável no seu padrão de vida, é comum que tenham a vontade de fazer alguma coisa para ajudar a sua região. “Percebi que os jogadores tinham o desejo de fazer alguma coisa, mas não sabiam como. Até doavam dinheiro ou alimentos, mas não sabiam como fazer, nem tinham tempo para tocar um projeto numa favela, por exemplo”, analisa Marques, que fez sua dissertação de mestrado justamente sobre o tema.

A morte de Ayrton Senna em março de 1994, segundo Marques, foi outro fator impulsionador desses projetos sociais. Isso porque Senna era um líder nacional e já havia manifestado a vontade de desenvolver um trabalho social. Apenas alguns meses depois de sua morte, sua família criou o Instituto Ayrton Senna. Outro estímulo, segundo ele, foi o próprio cenário que o terceiro setor vivia naquela época. “Era um momento de fortalecimento das ONGs no Brasil. O Betinho fazia a campanha contra a fome, acontecia a chacina da Candelária e toda aquela movimentação do Viva Rio e da ONG Sou da Paz. Fora isso, o Rio ainda sediava a Eco-92”, analisa.

Educação, cultura e capacitação

A Fundação Gol de Letra busca suprir demandas locais de educação, além de fazer trabalho de formação de agentes comunitários. Marques explica que é possível usar o futebol como elemento de inclusão social, mas o esporte sozinho não faz milagres. “Não é com escolinhas de futebol que vamos mudar a realidade. Nós procuramos oferecer música, dança, informática, biblioteca e educação através do esporte. Mas não é só isso”, diz o diretor de Comunicação.

Segundo ele, a idéia de que as escolinhas de futebol são projetos eficientes vem principalmente de uma construção do imaginário popular. “É uma imagem que até a própria mídia ajuda a construir, do futebol como forma de o menino pobre enriquecer e de tirar as crianças do tráfico. Como se todas as crianças pobres fossem possíveis traficantes”, avalia Marques. “Existe a idéia de que o futebol vai tirar o menino da miséria e transformá-lo num Ronaldinho Gaúcho. O futebol é importante como recreação, mas sozinho não é um transformador social”, defende.

A falta de experiência na área levou a organização a cometer alguns erros, conta Marques, mas todos serviram para nortear melhor os objetivos. Um desses erros foi a forma de atuação na unidade em Niterói, no Rio de Janeiro. “Buscávamos as crianças em um ônibus e levávamos para as instalações. Mas isso não gerava nenhuma autonomia. Hoje estamos reconstruindo esse modelo, queremos estar dentro das comunidades”, afirma. Para ele, a legitimidade do projeto da ONG está principalmente no fato de ter sido instituído por homens públicos que o fizeram a partir de um desejo, sem o menor interesse político-partidário.

Um dos projetos da Gol de Letra para o ano que vem é sistematizar a metodologia da organização para que outras entidades possam colocá-la em prática. “A idéia é que esta metodologia se espalhe e, quem sabe, um dia se torne política pública”, diz Marques.

Esporte como ferramenta educacional

Dunga é um dos padrinhos do Esporte Clube Cidadão – juntamente com outros atletas, como Tinga (jogador do Internacional), Ortiz (jogador da seleção brasileira de futsal) e a ex-craque do basquete Magic Paula. Os atletas utilizam sua imagem para obter ajuda de parceiros nas ações sociais do projeto, criado por Dunga em parceria com a Associação Cristã de Moços do Rio Grande do Sul (ACM-RS), para atrair investimentos para ações de desenvolvimento social. A partir do Esporte Clube Cidadão foi criado o Instituto Dunga de Desenvolvimento do Cidadão (IDDC), que tem como objetivo utilizar o esporte como ferramenta educacional e forma de inserção social.

As atividades do Esporte Clube Cidadão são desenvolvidas em três unidades da ACM localizadas na periferia de Porto Alegre. Hoje, através do projeto, cerca de 700 pessoas participam de atividades de esporte (futebol, basquete e futsal), lazer, educação, cultura e capacitação profissional. Inserção no mercado de trabalho, famílias fortalecidas, aumento da auto-estima e melhor aproveitamento escolar são alguns dos principais resultados do projeto.

Segundo Ângela Aguiar, coordenadora da área de desenvolvimento social da ACM-RS, além de ter feito a proposta de inclusão de crianças e adolescentes para que a ACM executasse, Dunga é o padrinho mais presente no projeto. “A atuação dele se diferencia, demonstra um grande compromisso social. O engajamento vai além da captação de recursos. Ele dá palestras para estimular as famílias da comunidade, falando da sua experiência. A figura dele cativa, dá credibilidade ao projeto e consegue mobilizar tanto grandes empresários quanto a comunidade. Além disso, a presença dele faz diferença para a criança que está no projeto. É uma referência fundamental para o nosso trabalho”, diz.

Promovido há quatro anos, o Esporte Clube Cidadão volta-se para o desenvolvimento integral da comunidade, com o apoio de psicólogos, pedagogos e assistentes sociais. “O esporte é o carro-chefe do projeto, mas não a única atividade. Ele dá o pontapé inicial, como o Dunga costuma dizer nas palestras. Mas o trabalho é mais amplo. Utilizamos a educação física e também as artes para fomentar valores como cidadania e mostrar outras alternativas. É um trabalho de desenvolvimento comunitário”, afirma Aguiar.

O enfoque está na educação, não na formação de atletas, ressalta Aguiar. “Nosso objetivo não é que a criança saia como um excelente jogador, nem somente um ótimo profissional de informática, mas como um ser humano melhor, responsável pelas suas escolhas”, diz.

Com base na idéia de desenvolvimento integral, o Esporte Cidadão também procura trazer as famílias para dentro do projeto, com atividades de geração de renda. Uma dessas atividades é a escola de cozinha profissional montada há dois anos, com financiamento do Consulado do Japão. “Hoje as famílias que passaram pelo projeto estão inseridas no mercado. Criamos então uma possibilidade de desenvolvimento não só para as crianças, mas também para a família”, reforça Aguiar.

O trabalho do capitão

Uma das caçulas entre essas organizações é a Fundação Cafu, fundada em 2001. Como outras criadas por jogadores, nasceu da vontade de doar alimentos a comunidades de baixa renda. Segundo Maurício Evangelista de Moraes, presidente da organização, a idéia partiu da organização de um jogo beneficente com o objetivo de arrecadar alimentos. “Nós recolhemos os alimentos e entregamos a uma entidade para que fizesse a doação. O Cafu teve a idéia de criar uma fundação para que nós mesmos pudéssemos doar”, explica.

Hoje a Fundação Cafu realiza 3.500 atendimentos por mês. Entre os serviços prestados à comunidade estão atendimento médico, avaliação psicológica, reforço escolar, biblioteca, brinquedoteca, capacitação, curso de inglês e, claro, esporte e lazer. “Cerca de 400 crianças fixas da zona sul de São Paulo freqüentam a fundação todos os dias em horários complementares ao escolar”, explica Moraes. Segundo ele, antes da construção da sede da entidade, foi realizado um levantamento das carências da região. Hoje, o aproveitamento das crianças na escola chega a 70%, bem acima da média dos anos anteriores.

A organização é mantida com recursos do próprio Cafu e de algumas empresas parceiras. O projeto Bola Solidária também ajuda a manter a sustentabilidade da fundação. Uma bola do projeto é vendida e parte da renda é revertida para a entidade. No tocante à captação de recursos, a imagem dos jogadores ajuda muito. “Eles talvez nem se dêem conta do poder transformador que têm. Isso pode ser potencializado. Entidades como a Gol de Letra e a Fundação Cafu são provas disso. Sempre contamos com a figura dos instituidores para garantir a parte financeira”, avalia o diretor da Gol de Letra, Cezar Marques.

Bola pra Frente

Para Flávia Soares, da área de planejamento do Instituto Bola pra Frente, a imagem de atletas consagrados e a força catalisadora do esporte como ferramenta de desenvolvimento social são utilizados para atrair a imprensa, não especificamente empresas. “A parceria com as empresas é realizada através dos objetivos e dos resultados do projeto e não pela imagem dos jogadores”, diz.

Utilizar o futebol como meio de atrair a criança e o adolescente também faz parte da metodologia do Instituto Bola pra Frente. Iniciativa dos tetracampeões de futebol Jorginho e Bebeto, o Bola pra Frente foi inaugurado em 2000, com o intuito de atender meninos e meninas de 6 a 16 anos em situação de risco social. O instituto atende em sua sede, em Guadalupe, Rio de Janeiro, cerca de 700 crianças e adolescentes. Até o final deste ano, a idéia é chegar a mil. Lá são oferecidas, gratuitamente, diversas modalidades esportivas (futebol, futsal, caratê e vôlei), apoio pedagógico, preparação para o mercado de trabalho, aulas de informática, palestras e atividades culturais, além de atendimento especializado nas áreas de psicologia, psicopedagogia, serviço social, odontologia, enfermagem e outras.

“O futebol funciona como meio de atrair crianças e adolescentes, mas vamos além do esporte”, garante Flávia Soares. Pensando em produzir resultados que gerem impacto e transformem a realidade desses alunos, o Bola pra Frente tem como objetivos específicos: promover atividades sócio-educativas que privilegiam a realidade dos alunos; ampliar a visão de mundo dos alunos, proporcionando a compreensão dos seus direitos e deveres como cidadãos, e facilitar a inserção de jovens no mercado de trabalho. Pesquisa realizada com crianças e adolescentes participantes do Instituto Bola pra Frente e seus responsáveis revelou mudanças positivas no relacionamento com a família, os colegas e professores e no rendimento escolar.

O objetivo do Instituto Bola pra Frente é “formar craques na vida, não descobrir craques de futebol”. Ainda assim, um dos projetos da entidade busca aprimorar talentos: o Show de Bola e Cidadania. Nesse projeto, o relacionamento com as outras pessoas não é menos importante do que lidar com a bola. O ex-aluno Walter Barbosa, de 16 anos, que hoje joga no Flamengo, aprendeu essa lição. “Tudo que aplico no futebol e no relacionamento com colegas e o técnico aprendi no Instituto”, diz. Fabrício da Silva, de 11 anos, há três no projeto, segue o mesmo caminho: “O que eu mais gosto no Bola pra Frente é de jogar futebol e também dançar. Aprendi a respeitar as pessoas, não bater, não xingar, não brigar com meus colegas e sempre brincar com eles. Meu pai fica tranqüilo quando eu estou aqui”, conta.

Luísa Gockel e Mariana Loiola

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