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Onde mora o perigo

Autor original: Luísa Gockel

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Onde mora o perigo


Atualmente, quase 1 bilhão de pessoas – um sexto da população mundial – vivem em favelas, de acordo com dados das Nações Unidas. No Brasil, falta de saneamento, água encanada e coleta de lixo, além de propriedades irregulares, são alguns dos problemas que enfrenta grande parte da população residente nas cidades do país. Com o objetivo de dar visibilidade à problemática das cidades e à necessidade de uma reforma urbana no Brasil, o Fórum Nacional de Reforma Urbana está organizando a partir de junho ações simultâneas em vários estados. Internacionalmente, o tema ganhou atenção especial com a realização no Canadá, entre os dias 19 e 23 de junho, do III Fórum Urbano Mundial. Os debates no encontro, promovido pelo Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-Habitat), discutiram formas de impedir o crescimento de cidades precárias.

No evento, o UN-Habitat apresentou o relatório “A situação mundial das cidades 2006/7”, que gerou intensos debates. Um das principais conclusões do levantamento é que as condições de vida dos residentes nos bairros pobres nas cidades dos países em desenvolvimento são por vezes piores daqueles que vivem nas áreas rurais. Para o oficial principal de assentamentos humanos da organização, Alberto Paranhos, apesar do tom duro da publicação, é preciso ter calma ao analisar os dados.

“Temos de ser menos catastróficos e mais realistas. A cidade é palco de desigualdades mas também de oportunidades. Havia uma percepção de que o meio rural era mais pobre que o urbano, mas isso era medido com critérios puramente urbanos”, explica Paranhos. Segundo ele, é preciso levar em consideração o fato de que no campo as necessidades e ferramentas são diferentes. “Há lugares em que não há coleta de lixo. Mas muitas vezes esse lixo pode ser transformado em composto orgânico, no meio rural”, exemplifica.

O representante do UN-Habitat explica que essa nova visão foi um dos fatores que levou a essa “melhora” da vida no campo. “O que houve foi que as condições de vida passaram a ser analisadas e não mais os equipamentos para isso. A vida no campo, apesar de precária sob alguns aspectos, não é pior que a urbana”, analisa Paranhos. O relatório diz ainda que é impossível ignorar a população residente em favelas, pois, depois dos moradores do campo, é a população mais numerosa no planeta. Jesús Barcos, da ONG Arquitetos sem Fronteiras, explica que esse fenômeno tem sérias implicações como um desequilíbrio espacial que impediria o desenvolvimento sustentável. “De um lado a aglomeração de milhões de pessoas nos espaços urbanos e o esvaziamento de muitos espaços rurais”, explica.

Segundo ele, a experiência nos mostra a dificuldade de criar infra-estruturas que respondam a novas necessidades, principalmente habitacionais. “Infelizmente, os investimentos públicos têm sido insuficientes e as perspectivas não são boas”, lamenta Barcos.

No Fórum, foi discutido o impacto negativo das políticas de globalização, que vêm piorando as condições de vida. “O que gerou processos de favelização até na Europa e nos EUA. Em Vancouver mesmo, podíamos ver pessoas morando na rua e vivendo do lixo”, afirma Raquel Rolnik, secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, sobre a cidade canadense que sediou o encontro do UN-Habitat. Segundo ela, outro tema central nos debates foi o planejamento para prevenir a formação de novos assentamentos precários.

Reforma urbana

A previsão do relatório do órgão da ONU é que, pela primeira vez, a população urbana ultrapassará muito em breve a rural. O fenômeno que já é intenso em países da Europa, Estados Unidos e América Latina se estenderá para Ásia e África. Diante desse panorama a questão que se coloca é quais serão os maiores desafios desse mundo predominantemente urbano.

“Além da necessidade do cumprimento do direito de uma vida digna, é preciso criar modelos urbanísticos com as condições básicas, como água, por exemplo. Para isso, faz falta coragem e vontade política que não parecem estar presentes na cena pública”, critica Barcos. Para ele, quando se fala em reforma urbana, é preciso lembrar que estamos tratando de uma necessidade humana.

“O aumento dos preços das moradias, a permanência de zonas e cinturões excluídos, as enormes desigualdades e os interesses em jogo podem gerar uma sensação de indiferença, de um falso fatalismo. As reformas devem assegurar uma maior qualidade de vida dos habitantes e serem feitas de acordo com a vontade e as necessidades das pessoas”, argumenta o representante da ONG Arquitetos sem Fronteiras.

Além de defender a necessidade de serem criadas alternativas para as migrações internas fora dos centros urbanos, o oficial do UN-Habitat chama a atenção para a importância das políticas de prevenção. “É preciso preparar as áreas para que possam receber a população. O regime de autoconstrução não funciona porque os governos não são capazes de atender a demanda da base da pirâmide. Já vimos que, com o mínimo de assistência técnica e orientação, as pessoas conseguem se organizar”, ressalta Paranhos.

Ele defende ainda que o planejamento é necessário para a correção do problema mas deve haver atenção também à prevenção. Segundo Paranhos, a questão da reforma urbana está intimamente relacionada à governança local. “Todos os atores daquele lugar devem ter uma agenda comum. Estado, governo federal, municipal, setor privado e sociedade devem ter agendas convergentes. Não é possível antagonizar os esforços”.

Para Paranhos, não é possível pasteurizar a questão, que é multifacetada. “Temos de desenvolver soluções para o leque de problemas que são apresentados”, diz. Essa fórmula ajudaria, segundo ele, a resolver a inércia que poder público e sociedade têm diante da questão. “Tudo que foi feito serviu para muita coisa, mas pode ter sido ineficiente, deficiente ou fora de foco. É preciso, antes de tudo, medir o tamanho do problema”, avalia o oficial.

Raquel Rolnik explica que a proposta em nível internacional é para que se mude a forma de contabilizar os investimentos para melhorar os assentos precários. Ou seja, calcular em prazos de 40 e 50 anos, em vez de 10 e 15 anos. “Quem tem de fazer esses investimentos é o poder público, pois a iniciativa privada não vai fazer isso. É preciso aumentar o gasto público em infra-estrutura”, defende.

Segundo a secretária, existem dois tipos de situação no mundo. Na primeira estão os países realmente pobres, que não têm dinâmica econômica nem recursos necessários para investir em uma infra-estrutura urbana. Para eles a ajuda e a cooperação internacional são fundamentais e o perdão das dívidas é uma das propostas possíveis. No segundo caso, estão países como Brasil, Índia e África do Sul, que não são pobres, têm dinâmica econômica, recursos e poupança interna. Estes países, no entanto, não investem em infra-estrutura por causa do equilíbrio macroeconômico, decorrente da globalização e das estratégias de contenção da dívida. “Eles têm dinheiro público, mas não podem gastar com infra-estrutura para não aumentar a dívida”, explica Rolnik.

O caso brasileiro

De uma população majoritariamente rural na década de 50, o Brasil passou a ter, no final do século XX, 80% dos brasileiros vivendo em cidades. Grandes metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro têm metade da sua população morando precariamente em favelas, cortiços ou áreas ilegais. O gigantismo dos dados são compatíveis com o tamanho do país. O campeão de favelas da América Latina, no entanto, está indo pelo caminho certo, de acordo com o relatório do UN-Habitat.

O estudo diz que a taxa de crescimento das favelas no Brasil é praticamente estável: 0,34% ao ano. Na América Latina, o crescimento é de 1,28%. Raquel Rolnik explica que o Brasil tem o maior número absoluto de favelas na América Latina porque é o maior país, mas proporcionalmente países como Haiti e México estariam em situação pior.

Em 2007, pela primeira vez, mais de 50% da população mundial vai estar vivendo em cidades. No Brasil, vão ser mais de 82%. Para Rolnik, isso significa um novo modo de vida e de organização do território. A secretária afirma que o Ministério das Cidades aumentou significativamente os investimentos em saneamento básico e habitação nos últimos quatro anos – que corresponde ao tempo de existência da Pasta. Segundo ela, este ano, pela primeira vez, o orçamento para a urbanização das favelas será de R$ 1 bilhão.

Para os movimentos sociais, no entanto, ainda é pouco. No dia 28 de junho, o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) lançou a Jornada de Luta pela Reforma Urbana e pelo Direito à Cidade em vários estados brasileiros como parte da campanha “Olho no seu Voto 2006”. Entre as reivindicações estão o orçamento de R$ 3 bilhões para o Fundo Nacional de Habitação e a regularização fundiária das favelas e dos assentamentos informais.

A iniciativa pretende aumentar a visibilidade do problema urbano no Brasil, pressionando o poder público a implementar políticas de promoção do direito à cidade. “Mais de um terço das moradias brasileiras é inadequado. Metade da população não tem saneamento. Queremos que os governos coloquem a questão na pauta”, diz Regina Ferreira, assessora do Programa Direito à Cidade da ONG Fase e membro da coordenação do FNRU.

Para alcançar os objetivos de construir uma cidade mais justa, segundo Regina, é preciso fazer com que os futuros governantes e parlamentares, antes de serem eleitos, se comprometam com propostas que mudem a realidade de desigualdade nas cidades brasileiras. “É uma luta pelo acesso às condições básicas de vida e por justiça social”, resume a coordenadora do Fórum.

Luísa Gockel

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