Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original:
Nos dias 02 a 06 de junho de 2006, na cidade do Recife, nós, 1.730 trabalhadores e trabalhadoras do campo de todos os estados brasileiros, estivemos juntos no II Encontro Nacional de Agroecologia representando diferentes identidades sócio-culturais: agricultores(as) familiares, camponeses(as), agroextrativistas, indígenas, quilombolas, pescadores(as) artesanais, ribeirinhos(as), faxinalenses, agricultores(as) urbanos, geraizeiros(as), sertanejos(as), vazanteiros(as), quebradeiras de côco, caatingueiros(as), criadores(as) em fundos de pasto, seringueiros(as), caiçaras, técnicos(as), professores(as), pesquisadores(as), extensionistas e estudantes. Com a participação majoritária de trabalhadores e trabalhadoras rurais, o evento alcançou também a participação de 54% de homens e 46% de mulheres.
O II ENA foi o coroamento de um longo processo preparatório que se desenvolveu em todas as regiões do país, mobilizando praticantes da agroecologia e suas mais diversas formas de organização. Esse processo, constituído por encontros locais, estaduais e regionais, foi marcado por intensas trocas de conhecimentos e sistematizações de experiências que inspiraram debates críticos e propositivos no campo das políticas públicas voltadas para o fortalecimento das diferentes formas de produção familiar agroecológica nos distintos contextos sócio-ambientais nos quais ela se desenvolve. Esses mesmos eventos da fase preparatória do II ENA analisaram e denunciaram as formas como o agronegócio se instala nas diferentes regiões, apropriando-se dos recursos da natureza e expropriando os trabalhadores e trabalhadoras de seus direitos mais básicos.
Nosso encontro foi o ponto de convergência e socialização desse conjunto de conhecimentos acumulado. Por meio da apresentação de experiências, depoimentos e de resultados de estudos nas seções plenárias, nos seminários e oficinas temáticas, participantes do evento construíram sínteses que permitiram aprofundar a crítica ao modelo atualmente hegemônico de desenvolvimento rural, fundado no latifúndio monocultor e no capital agroindustrial e financeiro. Ao mesmo tempo, avançaram na formulação de um projeto democrático e sustentável para o campo brasileiro, ancorado na produção familiar e na agroecologia.
O agronegócio é a expressão atual do modelo de desenvolvimento econômico que perpetua há cinco séculos a dominação das elites agrárias no meio rural brasileiro. Esse modelo se expressa nos desertos verdes das monoculturas de eucalipto, pinus, soja, cana-de-açúcar, algodão, nos sistemas de integração agroindustrial do fumo, de aves, suínos e, mais recentemente, de biocombustíveis. Ele se apresenta também nos perímetros irrigados do semi-árido brasileiro, nos latifúndios de criação de gado e em várias outras atividades essencialmente orientadas para a exportação. O agronegócio é baseado em um modelo técnico altamente dependente de mecanização e irrigação intensivas e do emprego massivo de insumos industriais tais como agrotóxicos, sementes de empresas (inclusive transgênicas) e rações. Sua expansão no território brasileiro tem sido favorecida pela implantação de grandes obras de infra-estrutura, tais como rodovias, hidrovias, barragens, projetos de mineração, dentre outras. Essas obras têm sido promovidas ou fortemente apoiadas pelos poderes públicos e resultam na expropriação de amplos setores das populações do campo que são penalizados com a perda de seus direitos sobre os territórios e seus recursos.
Contrariamente à imagem de modernidade e de eficiência técnica e econômica propalada pela grande mídia, o agronegócio está associado na realidade a uma criminosa cadeia de impactos negativos que se irradiam no conjunto da sociedade brasileira. O que a experiência prática de populações rurais demonstra e estudos confirmam é que o modelo do agronegócio é o principal responsável pela concentração da terra, pela violência no campo, pelo êxodo rural, pelo desemprego urbano e está ainda associado à degradação sem precedentes do patrimônio ambiental: os recursos da biodiversidade, os solos e a água. Além de ser um instrumento de desagregação das culturas dos povos tradicionais, esse modelo é também o responsável pela insegurança alimentar e nutricional de famílias no campo e nas cidades e a perda da soberania alimentar do povo brasileiro. A se manter a atual hegemonia do modelo do agronegócio exportador, esses impactos negativos para a sociedade vão se multiplicar e aprofundar.
O enfrentamento do modelo do agronegócio e o fortalecimento da produção familiar agroecológica significam antes de tudo um desafio no plano político. Isso porque a agroecologia surgiu e vem fazendo o seu caminho em um campo de disputa na sociedade, contrariando privilégios de uma elite econômica que se reproduzem com o apoio do Estado. Um número cada vez mais significativo de trabalhadores e trabalhadoras e suas organizações em todo o país tem compreendido e incorporado o entendimento de que a agroecologia só terá capacidade política de transformação se for efetivamente desenvolvida através de práticas concretas que garantam o atendimento de suas necessidades e do conjunto da sociedade. Ao mesmo tempo em que são experimentadas e disseminadas localmente, as práticas inovadoras do campo agroecológico constituem já embriões do novo modelo que está em construção e que já inspira a formulação de um projeto coletivo de âmbito nacional. A diversidade de ecossistemas em que se desenvolve a agroecologia no Brasil se expressa também em uma grande variedade de identidades culturais e formas de organização produtiva e de apropriação e uso dos recursos naturais. Em todas as localidades onde a agroecologia é vivenciada a sua superioridade econômica, ambiental e social sobre o agronegócio fica evidente.
As mulheres e suas organizações têm participado ativamente da promoção da agroecologia. Chamam a atenção para a necessidade de valorização do seu trabalho; criticam a hierarquização e fragmentação entre trabalho produtivo e reprodutivo; defendem o compartilhamento das responsabilidades pelo cuidado da casa e da família; reafirmam o direito de serem reconhecidas como agricultoras, camponesas e agroextrativistas.
Nós, participantes do II ENA, assumimos o compromisso de continuar apoiando e participando da construção de um movimento agroecológico com igualdade de gênero, opondo-nos também a todas as formas de manifestação de violência contra as mulheres.
É com base nos ensinamentos extraídos de nossas próprias vivências como praticantes da agroecologia que apresentamos as seguintes conclusões dos debates realizados em nosso Encontro sobre temas que estão no centro das estratégias para a construção do modelo que defendemos.
* A íntegra da carta está disponível na área de Downloads desta página.
A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados. |
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer