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Dinheiro desperdiçado

Autor original: Marcelo Medeiros

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Dinheiro desperdiçado
Fotomontagem: Fernanda Webler
Quase metade dos recursos destinados à ajuda internacional é mal gasta. Essa é a conclusão do relatório “Real Aid 2 – Making Assistance Work” (Ajuda de Verdade 2 – Fazendo a Assistência Funcionar), elaborado pela ONG inglesa ActionAid e divulgado recentemente. São cerca de US$ 20 bilhões que acabam na mão de consultores e assistências técnicas que não dão resultados, garante Jorge Romano, coordenador-executivo da entidade no Brasil. “A assistência técnica dos países ricos, em vez de aliviar a pobreza, promove, na maioria das vezes, o interesse desses próprios países e soluções inapropriadas para as populações a que se destinam”, analisa.

O documento ainda não foi lançado no Brasil e nem está disponível em português. A ActionAid Brasil garante que está trabalhando para traduzir o relatório o mais rápido possível. As informações contidas no Real Aid 2, segunda edição de um trabalho já feito no ano passado, são de grande importância para explicar por que muitas vezes a ajuda internacional não obtém os resultados esperados, apesar da grande quantidade de recursos investidos e entidades agindo para melhorar a vida das pessoas.

Nesta entrevista, concedida por correio eletrônico, Jorge Romano explica o papel das ONGs na ajuda humanitária, dando exemplos de diferentes atividades que desempenham, principalmente na África, e critica a postura de alguns governos e instituições financeiras. Para ele, muitas vezes há mais preocupação com a maneira como o trabalho será feito do que com a ação em si, o que gera muito desperdício financeiro.

Rets – Qual a diferença entre os papéis dos governos e das organizações internacionais no combate à pobreza e na defesa dos direitos humanos em países que necessitam de ajuda internacional?

Jorge Romano - Mudar sociedades para que enfrentem problemas tão entranhados e abrangentes é um enorme desafio. O candidato óbvio para o papel é o governo. A ActionAid acredita firmemente que governos democráticos podem e devem agir no interesse de seus cidadãos, defendendo os direitos econômicos e sociais e o princípio da justiça para mulheres, crianças e homens pobres e excluídos.

Infelizmente, raras são as vezes em que vemos governos nacionais adotarem as ações necessárias para promover grandes mudanças no equilíbrio de poder em suas sociedades, através da redistribuição da riqueza e dos recursos. Pelo contrário, os que estão no poder tendem a agir em seu próprio interesse, enquanto mulheres e outros grupos excluídos ocupam pouco espaço nos processos políticos.


A missão das organizações internacionais não é substituir os governos, mas entrar em um engajamento critico com eles. Isto é: de alguma forma, cobrar dos governos as suas responsabilidades em prestar serviços e em assegurar direitos universais e os previstos em suas Constituições nacionais. É também propiciar transparência e prestação de contas das ações deles e promover ações que possam virar políticas públicas.

Não pretendemos duplicar ou substituir as ações e obrigações do Estado. Porém, em casos em que o Estado é muito fraco, como em vários paises africanos, onde são quase inexistentes, as ONGs são demandadas também em prover serviços básicos para atender as necessidades imediatas das comunidades com que trabalhamos. Por exemplo, fornecemos novos barcos e redes de pesca às comunidades de pescadores de Tamil Nadu, na Índia, afetadas pela tsunami de dezembro de 2004. Mas até nesses casos a provisão desses serviços pelas ONGs tem de ser como meio e não como fim. Como meio para organizar a comunidade para que ela mesma possa adquirir as condições de prover essas necessidades, cobrando ao mesmo tempo a responsabilidade do Estado.

Rets - Não há também um problema internacional?

Jorge Romano - Ambicionamos também causar um impacto significativo em nível internacional porque acreditamos que, sem mudanças na ordem mundial ditada pelas nações mais poderosas e pelas instituições internacionais, não é possível obter e manter avanços nos níveis local e nacional.

Porém somos conscientes de que, à medida que o poder de decisão muda da arena local para a nacional e da nacional para a internacional, torna-se mais difícil para os pobres influenciar a formulação de políticas ou cobrar responsabilidades de tomadores de decisão que estão distantes deles. As imposições do comércio internacional e das políticas de ajuda e o poder econômico das corporações multinacionais estão erodindo a soberania nacional e minando os meios de vida de milhões de pessoas pobres. O cenário político está contaminado por promessas não cumpridas dos governos dos países ricos para com os pobres. É evidente que vivemos num mundo de duplos padrões e graves desequilíbrios de poder.

Por isso, como uma organização internacional, temos também a possibilidade e a responsabilidade de informar a comunidade internacional, a mídia e os fóruns multilaterais sobre as condições em que essas pessoas estão vivendo, propiciando uma espécie de prestação de contas internacional. Em muitos casos organizamos ou nos engajamos em campanhas internacionais de defesa dos direitos das populações excluídas. Esse foi o caso, por exemplo, do ano passado (2005), definido como um ano de ação para o combate a pobreza. A ActionAid enviou um ônibus da África do Sul até a Escócia, levando as reivindicações de pessoas e comunidades pobres de vários países africanos para os líderes dos países industrializados mais ricos do mundo – o G8 –, que estavam reunidos em Gleaneagles. As mensagens foram entregues pessoalmente a Tony Blair, presidente do G8 naquele ano, que, por pressão de ONGs, países africanos, opinião pública e mídia, se empenhou na defesa do alívio da dívida aos países africanos.

Rets - Qual é a importância do trabalho realizado por organizações como a ActionAid em países africanos? É possível realizar um trabalho não só emergencial, mas também de desenvolvimento local?

Jorge Romano - Diariamente, em nosso trabalho na África, na Ásia e na América Latina, registramos a negação, rotineira e insensível, dos direitos de milhões de pessoas pobres.

Em geral, todo ano, cerca de 300 milhões de pessoas são afetadas por conflitos ou desastres naturais. As mais vulneráveis e menos poderosas sofrem impacto maior. Estados fracos ou autoritários, competição por recursos naturais e proliferação do uso de armas fazem com que a cada dia mais e mais pessoas vivam em meio a conflitos violentos. A mudança climática e a degradação ambiental também fazem com que milhões de pessoas fiquem mais expostas ao risco de desastres naturais.

Durante as crises, o medo e a indigência predominam. Onze países em que trabalhamos estão passando ou acabam de passar por situações de conflito violento. De Ruanda e Burundi ao Afeganistão e ao Nepal, passando por Serra Leoa e Libéria, nosso trabalho tem uma perspectiva de longo alcance, apoiando o fim da violência, a reconstrução econômica e social e a construção da paz. Essa abordagem envolve tanto o trabalho para reduzir os riscos e os impactos antes que crises potenciais se tornem realidade quanto após a ocorrência das crises, para ajudar a recuperação e para explorar as oportunidades de mudança que surgem em tempos de vicissitudes. Também fazemos pesquisas e análises da dinâmica do conflito, num esforço imediato para reduzir a extensão da violência que afeta as pessoas pobres. Exemplos dessas ações são:

- apoio às pessoas pobres e excluídas para que recebam adequadamente socorro e ajuda para recuperação e redução dos impactos dos conflitos e emergências;

- coleta de informações e geração de conhecimento sobre os efeitos de conflitos, mudanças climáticas e danos ao meio ambiente sobre as mulheres e as pessoas pobres;

- campanhas de defesa dos direitos das mulheres e meninas em situações de conflito e emergências;

- trabalho com governos e organizações intergovernamentais para reduzir os riscos e proteger as pessoas, sobretudo as mais vulneráveis;

- apoio a grupos de mulheres e organizações da sociedade civil para que sejam ativos e efetivos na resolução de conflitos e na construção da paz;

Mas, além do trabalho de emergência, é possível fazer um trabalho que vise, sim, ao desenvolvimento local. Uma parte substancial de nosso trabalho prático envolve o uso de técnicas simples de participação para ajudar as pessoas pobres e excluídas a descobrirem quem e o quê gera a pobreza e a injustiça que eles sofrem. Essa articulação feita por eles mesmos é um passo primordial no caminho para o empoderamento, o desenvolvimento de soluções e a mudança efetiva. Temos mecanismos de participação inovadores e bem-sucedidos que desenvolvemos em nosso trabalho com comunidades da África, da Ásia e das Américas.

Rets - Poderia citar exemplos?

Jorge Romano - Na Tanzânia, na Nigéria e em Bangladesh, por exemplo, a metodologia Reflect, de educação popular baseada em métodos desenvolvidos por Paulo Freire, está levando as comunidades a participar da gestão e da tomada de decisões nas escolas locais.

Continuamos a fornecer apoio e serviços essenciais, sob a forma de treinamento, informação, recursos financeiros e materiais ou ajuda de emergência, para atendimento de necessidades imediatas das pessoas pobres e excluídas. Como já apontamos, o fornecimento de serviços não é um fim em si mesmo – nós o fazemos para empoderar comunidades, de modo a que possam defender seus direitos e alavancar apoio do Estado. Dessa forma, o alívio dos sintomas da pobreza também permite às comunidades lidar com suas causas.

Rets – É mais fácil conseguir recursos internacionais para socorrer vítimas de desastres naturais do que para ajudar países que sofrem com fome e guerras?

Jorge Romano - O reconhecimento da responsabilidade internacional no apoio ao desenvolvimento dos países pobres seria a marca de um mundo responsável. A comunidade internacional reconheceu isso ao adotar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. No entanto esse compromisso tem sido posto em xeque, na medida em que os níveis de ajuda internacional estão caindo e têm sido impostas condições desfavoráveis para essa ajuda.

Políticas cínicas e egoístas têm também servido para minar a ajuda que chega às nações em desenvolvimento, já que os Estados Unidos e a União Européia mantêm barreiras protecionistas que sustentam seus produtores, enquanto forçam os países pobres a fazerem o oposto.

Neste contexto, é muito difícil conseguir um engajamento permanente da comunidade internacional em termos de recursos para superar as causas estruturais que levam os paises a serem permanentemente assolados por fome e guerras. Esses recursos aparecem quando se trata de grandes desastres naturais, já que se transformam em espetáculos midiáticos e não raro em um grande “negócio” para governos e corporações, misturada a ajuda e solidariedade genuína dos cidadãos de diferentes partes do mundo. O caso da tsunami ilustra que enquanto milhares de pessoas se mobilizaram para ajudar, os governos dificultavam a chegada dos recursos aos mais pobres e discutiam com a rede hoteleira internacional vantagens para se reerguerem na região.


Rets - Qual o papel das instituições financeiras internacionais neste quadro?

Jorge Romano - Em geral, a ajuda oficial dos governos dos países ricos e das instituições financeiras internacionais como Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional vem coberta de condicionalidades. Ou os países pobres aceitam as condições impostas, ou não recebem ajuda. E quando as aceitam, não vêem essa ajuda direcionada de fato a combater a pobreza.

Por exemplo, uma pesquisa recém-lançada pela ActionAid sobre como se dá o gasto da ajuda oficial aos países pobres no mundo mostra que um quarto dela – 20 bilhões de dólares – é desperdiçado com consultores externos caros e muitas vezes pouco efetivos, além de altos custos operacionais. A assistência técnica dos países ricos, em vez de aliviar a pobreza, promove, na maioria das vezes, o interesse desses próprios países e soluções inapropriadas para as populações a que se destinam. A pesquisa também mostra que, junto com a assistência técnica, boa parte da ajuda oficial é tragada por custos administrativos. No total, estima-se que quase metade de toda a ajuda deixa de atingir diretamente as populações pobres.

Rets - Como chamar a atenção da comunidade internacional para esses casos que precisam de ajuda a longo prazo?

Jorge Romano - Chamar a atenção é o primeiro passo. Sem um engajamento crítico de diferentes atores nacionais e internacionais, vamos continuar vivenciando no século 21 não só essas situações de fome e guerra, mas também o aumento da desigualdade e da pobreza em outros contextos.

Consideramos necessário que se façam campanhas para influenciar políticas e práticas locais, nacionais e internacionais, em favor das pessoas pobres e excluídas. Temos, por exemplo, obtido sucesso em nosso esforço para enfatizar o impacto negativo dos subsídios agrícolas defendidos por países ricos na Organização Mundial do Comércio sobre as vidas das pessoas pobres, ao pôr em contato ações comunitárias relacionadas à segurança alimentar com coalizões que promovem campanhas nacionais e internacionais, através de redes regionais na África, na América Latina e na Ásia.

Devemos nos assegurar de que nossa militância e nossas campanhas se baseiem em pesquisas rigorosas, evidências fortes, posições políticas claras e em ações populares. Além de expor as injustiças e os abusos contra os direitos das pessoas, devemos propor soluções e alternativas.

As campanhas e o trabalho de defesa de direitos têm muitos efeitos cumulativos. Ajudam a unir as pessoas pobres e excluídas e as pessoas que os apóiam nas nações ricas, habitantes de mundos completamente diferentes, em torno de uma agenda comum, para enfrentar as causas da pobreza e da injustiça. Seus resultados também ajudam a aumentar o impacto desse trabalho.

Rets - Como está a mobilização mundial em torno desse tema?

Jorge Romano - Felizmente muitas pessoas de diferentes origens, em nações ricas e pobres, têm expressado seu inconformismo com as chocantes disparidades entre as vidas e os estilos de vida dos ricos e pobres de hoje. É crescente o consenso, mesmo entre governos, de que são necessárias mudanças radicais para enfrentar a pobreza e dar um fim à negação de direitos a tantas pessoas. Os emergentes blocos de países pobres e de médio desenvolvimento, como o G-20, o G-33, o G-90 e o Grupo dos Países Menos Desenvolvidos, têm possibilidade de mudar o equilíbrio de poder na governança global. Negociadores dos países mais pobres já começam a mostrar força em quedas de braço com nações poderosas - recusando-se, por exemplo, a aceitar cláusulas comerciais injustas.

Essa tendência pode se tornar uma forte frente de resistência contra a globalização antidemocrática e o controle e uso injustos de recursos pelas corporações transnacionais. Vimos, por exemplo, como os protestos conduzidos por mulheres e fazendeiros em Kerala, na Índia, resultaram numa vitoriosa ação legal contra a Coca-Cola, para limitar a extração de água do subsolo por uma de suas fábricas - uma decisão que repercutiu no mundo corporativo.

Organizações de pessoas pobres, movimentos sociais e grupos pró-justiça espalhados pelo mundo estão se unindo, física e virtualmente, para organizar as mudanças. Avanços importantes incluem a campanha sul-africana por acesso a tratamento médico, liderada por pessoas que vivem com HIV/aids, e a campanha global por livre acesso a uma educação de qualidade para meninas e meninos.

A reivindicação aguerrida dos movimentos de mulheres resultou em significativos compromissos, nos níveis local, nacional e internacional, de promoção e defesa dos direitos da mulher. No Nepal, por exemplo, as leis relativas ao direito de propriedade foram reformadas e as mulheres agora podem herdar bens.

Finalmente os jovens, uma parcela da população mundial que cresce rapidamente, estão se tornando politicamente engajados. No Delta do Níger, por exemplo, estão se organizando para combater a poluição causada pelas companhias de petróleo e para ter acesso à terra e a oportunidades de trabalho. Em todo o mundo, jovens criativos estão montando suas próprias redes de militância. Suas atividades tornam-se cada vez mais globais, como mostra o animador exemplo da Campanha Internacional de Estudantes contra a Aids.

Acreditamos que essa onda global de ação cidadã tem amplo potencial. Outro mundo é possível. É na construção no dia a dia dessas possibilidades, desse movimento crescente por justiça e dignidade, por igualdade e inclusão, que ONGs internacionais como a ActionAid depositam suas energias.

Luísa Gockel. Colaborou Marcelo Medeiros.

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