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As dez menos

Autor original: Luísa Gockel

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






As dez menos
Fotomontagem com imagens da ONU

Dez histórias de que o mundo deveria ouvir falar mais. Esse é o título da lista divulgada pelo terceiro ano seguido pelo Departamento de Informação Pública (DPI) das Nações Unidas. De acordo com a organização, algumas questões não vêm recebendo a atenção necessária nem espaço suficiente na mídia internacional. Por esse motivo, é necessário dar mais visibilidade a determinadas emergências humanitárias e situações de conflito para que o mundo não esqueça que importantes questões simplesmente não desaparecem só porque deixam de figurar nas manchetes.

De acordo com o DPI, as questões citadas [veja a lista completa no quadro ao lado] não representam necessariamente o foco de atuação da organização. O objetivo foi cobrir uma gama de temas e de regiões. Na lista, existem conflitos localizados, como a difícil redemocratização da República Democrática do Congo, além de problemas mais abrangentes, como a situação das pessoas que buscam asilo em outros países. Outro foco da lista está relacionado à temática do desenvolvimento, como a importância da água como um recurso gerador de cooperação.

Na primeira vez que a lista foi lançada, em 2004, o Brasil figurava ao lado de Equador, Peru e Bolívia como países onde vivem comunidades indígenas em isolamento. De acordo com a ONU, 64 etnias estavam condenadas à extinção gradual e o governo brasileiro foi o primeiro a criar reservas territoriais para estas populações.

Algumas histórias: Congo, Paquistão e Nepal

“Este é um ano como nenhum outro na República Democrática do Congo”. Com essa frase a ONU começa a descrever uma das crises humanitárias mais graves do planeta. Depois de 45 anos de ditadura e sucessivas guerras – que mataram 4 milhões de pessoas só nos últimos cinco anos -, o país está se preparando este mês para a sua primeira eleição multipartidária. Apesar do feito histórico e da proximidade de um sistema democrático, os desafios são muitos.

“A situação no Congo é gravíssima. O índice de violência no norte do país é inimaginável. Há casos freqüentes de estupros coletivos. É um país extremamente complexo”, explica a diretora executiva da ONG Médicos sem Fronteiras no Brasil, Simone Rocha. De acordo com a ONU, a paz no país ainda é frágil e a população enfrenta a total falta de infra-estrutura. A cada dia 1,2 mil pessoas morrem de causas evitáveis e 20% das crianças do país morrem antes de completar cinco anos. As Nações Unidas chamam a atenção para os riscos de se negligenciar esta situação. Segundo a organização, apenas metade dos recursos necessários para ajudar o país está disponível. E a cada ano, diminuem.

Outra história que teve lugar na lista da ONU deste ano é a reconstrução do sul asiático, depois do terremoto de outubro de 2005. O desastre, que matou 73 mil pessoas no Paquistão e 1,3 mil na Índia, deixou ainda um grande número de desabrigados a poucos meses do inverno. Os países atingidos receberam ajuda internacional à medida que ocuparam as manchetes dos noticiários.

Segundo as Nações Unidas, os esforços foram bem-sucedidos ao prevenirem uma segunda onda de mortes, migrações em massa e epidemias. “Os esforços agora estão concentrados no longo período que vai entre a fase de alívio à reconstrução e restauração da subsistência da população. Suportes periódicos têm de chegar às populações afetadas que estão começando a reconstruir suas vidas para que não dependam mais da ajuda humanitária”, explicou, em entrevista por correio eletrônico à Rets, Raabya Amjad, coordenadora do Departamento de Assuntos Humanitários da ONU em Islamabad, Paquistão.

Segundo ela, há também a necessidade de restabelecer a atenção básica a saúde, assim como garantir o acesso à água potável. “Para isso esses países precisam de apoio financeiro e técnico. À medida que as imagens chocantes vão se dissipando, é necessário que o mundo não esqueça de assistir aqueles que ainda sofrem com o desastre”, diz Amjad.

No Nepal, país que também está listado no documento da ONU, a atenção da mídia está voltada para os conflitos entre a guerrilha maoísta e o exército do governo na capital, Kathmandu. Por trás da atenção temporária, uma outra questão importante permanece no esquecimento: a situação das crianças capturadas pela guerrilha.

De acordo com a porta-voz da missão do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Nepal, Rupa Joschi, o partido maoísta usava as crianças para exercerem várias funções no conflito armado. “Elas eram usadas no combate, como espiões ou mensageiras. Algumas eram recrutadas individualmente e incorporadas às diferentes divisões. Outras eram levadas em grupos com o propósito de doutrinação, e depois viraram soldados”, relatou Rupa, também por correio eletrônico, à Rets.

Apesar do recente cessar-fogo entre maoístas e governo, a representante acredita que é preciso manter a pressão internacional para que termine o processo de recrutamento de crianças. De acordo com relatório do Unicef, cerca de 40 mil crianças foram deslocadas de seus lares pela guerrilha no ano passado.

A reintegração destas crianças é outro passo importante, diz Rupa. “As famílias e a comunidades têm de estar preparadas para recebê-las de volta. As necessidades das crianças devem ser gerenciadas de forma que todas recebam o suporte de que precisam, desde acompanhamento psicológico e necessidades médicas à educação”, defende.

A porta-voz do Unicef chama ainda atenção para a diminuição da ajuda internacional ao longo dos anos. “O Nepal é um país com baixos indicadores de desenvolvimento humano e por isso sempre foi destino de doações. O conflito armado da última década, no entanto, enfraqueceu a infra-estrutura nacional e piorou uma situação que já era frágil. Com a possibilidade de paz à vista, o longo caminho rumo ao desenvolvimento é uma atividade que continua necessitando de apoio dos doadores”, explica.

Segundo ela, o que pode chamar a atenção do mundo para a grave situação no país não é mostrar apenas o sofrimento de mulheres e crianças, mas a sua resistência e seu otimismo em relação a um futuro melhor e pacífico.

Água: conflito ou cooperação?

Outro tema da lista é o potencial que a água, como um recurso compartilhado, tem para gerar a cooperação entre os povos. A organização defende que, apesar da percepção geral de que a água compartilhada por países diferentes tende a gerar hostilidade e não soluções colaborativas, o recurso pode ser uma fonte de cooperação. O destaque dado à questão está em consonância com os esforços que a organização vem dispensando ao problema da água no mundo. Assembléia Geral das Nações Unidas, em 2003, proclamou os anos entre 2005 e 2015 como a Década Internacional para Ação - Água para a Vida.

Segundo comentou com a Rets o diretor executivo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente no Quênia, Achim Steiner, os governos ao longo do tempo vêm reconhecendo a importância de conservar e dividir o recurso. “Notavelmente, desde 1920, houve mais de 400 acordos relacionados à água como um recurso limitado”, explica. A ONU aponta ainda que, com mais de 260 bacias hidrográficas transcendendo as fronteiras dos países, é compreensível que isso seja percebido como alimento para hostilidade.

A organização defende a necessidade de transformar situações de conflito em possíveis soluções mutuamente vantajosas. Para isso, um dos esforços foi o lançamento do projeto “De conflito potencial à cooperação potencial” pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Steiner é otimista e defende a valorização da chamada “hidrodiplomacia”. “Temos de ser otimistas. A cooperação, e não o conflito, tem sido a norma histórica. Nos últimos 50 anos, a cooperação entre países mais que dobrou”, diz.

No fluxo da migração

Hoje o número de migrantes no mundo já é estimado em 200 milhões. A partir disso, a ONU alerta para a importância de se distinguir entre migrantes, pessoas que buscam asilo e refugiados. Devido ao intenso fluxo de pessoas no mundo globalizado, estas distinções se misturaram, de acordo com a organização. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) vem chamando a atenção para os problemas que isso pode causar, como o possível crescimento de uma “fadiga” por parte dos países para receberem asilados.

O porta-voz do escritório central do Acnur, William Spindler, enfatiza a necessidade de deixar claras essas diferenças. “Essencialmente, imigrantes são pessoas que procuram uma vida melhor. No lado oposto, os refugiados estão fugindo de suas próprias vidas, sendo perseguidos, e não podem voltar para a casa. Em muitos casos, no entanto, as duas categorias viajam juntas, como parte de um grupo. Isso deixa as coisas mais difíceis para as autoridades”, explica.

Segundo ele, ainda assim os governos precisam adotar políticas diferenciadas para migrantes e refugiados. Ele explica que no mundo atual a imigração é necessária, traz benefícios e desafios. Por outro lado, refugiados e pessoas em busca de asilo são apenas uma pequena parte dos 200 milhões. No ano passado, por exemplo, havia 8,4 milhões de refugiados no mundo, o menor número dos últimos 26 anos. E as pessoas à procura de asilo, em 2005, foram apenas 668 mil. “Logo é errado dizer que pessoas em busca de asilo e refugiados são os principais elementos do problema”, observa Spindler.

De acordo com a ONU, os governos não estão sabendo lidar com estas duas categorias, que estão sendo tratadas como ilegais, potenciais terroristas ou criminosas. A organização diz que o importante é desvinculá-las do problema da migração ilegal e resguardar o direito de asilo, que é concedido a pessoas que foram obrigadas a deixar o seu país e precisam da proteção internacional. Geralmente essas pessoas são perseguidas por causa de etnia, religião, nacionalidade ou ideologia.

Ajuda internacional

A diretora executiva dos Médicos sem Fronteiras no Brasil, Simone Rocha, ressalta que muitas crises só acontecem para a opinião pública quando são noticiadas pela mídia. Em situações de conflitos ou crises humanitárias em longo prazo, segundo ela, é comum o dinheiro da ajuda internacional ir se escasseando enquanto a necessidade de recursos aumenta. Por isso, a organização também realiza intenso trabalho de divulgação e relatórios sobre crises humanitárias e também divulga uma lista anual de conflitos que merecem maior atenção no mundo.

Segundo ela, é comum que um país seja abordado pela mídia mas algumas questões centrais não são consideradas. “Isso acontece muito no caso de países afetados pela aids, em que nem se menciona a epidemia no país”, diz. De acordo com Andrew Tyndall, editor do jornal online The Tyndall Report, que rastreia o trabalho da imprensa e é base para a lista dos MSF, “as dez histórias destacadas por MSF representaram apenas 8 minutos dos 14.529 minutos dos noticiários noturnos das três maiores redes de TV dos Estados Unidos em 2005”.

Além da falta de visibilidade de algumas crises graves pelo mundo, as ONGs enfrentam muitas vezes resistências por parte dos governos. É comum que o trabalho realizado por organizações internacionais ultrapasse a barreira de competências dos governos, porque estes não agem necessariamente de acordo com os interesses de seus cidadãos. Mas não é o que deveria acontecer. “No caso de crises humanitárias, a ação coordenada entre governos e ONGs é muito importante para assegurar que a ajuda chegue a quem precisa”, explica a porta-voz da Oxfam Internacional, Amy Barry.

Além disso, é comum as organizações terem de escolher entre fazer esforços de advocacy [pressão por políticas públicas, normalmente exercida junto ao Executivo e ao Legislativo] ou se concentrar na ajuda humanitária, diz a porta-voz. “Se no seu trabalho as ONGs são críticas em relação ao governo, isso pode comprometer sua habilidade de operar naquele país. Por isso, é importante que as organizações trabalhem juntas”, avalia. No caso da Oxfam, o trabalho é centrado na questão da água e do saneamento básico. “Mas também trabalhamos com prevenção de desastres. Grande parte dos recursos também são empregados em trabalhos de desenvolvimento em longo prazo. Segundo Amy, o ideal é juntar várias frentes de luta para ajudar na melhoria das condições de vida da população.

Tanto a MSF quanto a Oxfam realizam trabalho de divulgação e reconhecem a importância da cobertura da imprensa para evitar que algumas crises e conflitos sejam negligenciadas pelo mundo. “Realizamos um trabalho constante nesse sentido. Produzimos relatórios, documentos, dados médicos, encontros com a imprensa e facilitamos o acesso dos jornalistas aos locais afetados”, conta a diretora da MSF.

Luísa Gockel

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