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Apenas os mesmos direitos

Autor original: Luísa Gockel

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Apenas os mesmos direitos
Foto: Flavio Veloso

No dia 17 de maio de 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças. Na época, a OMS deu a sentença que marcaria apenas o início de uma longa jornada contra o preconceito: “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio, nem perversão”. Quatro anos depois, a nova classificação foi adotada por todos os países-membros das Nações Unidas. Hoje, sem ainda ter vencido a luta contra a homofobia, o Brasil está a um passo de um grande progresso. O Projeto de Lei (PL) da deputada Iara Bernardi (PT-SP), que está em tramitação na Câmara, repudia qualquer forma de discriminação pela orientação sexual e fixa penas para ações preconceituosas, como demitir funcionário ou funcionária em função da orientação sexual. Nesse caso, segundo o projeto, o empregador pegaria pena de reclusão de dois a cinco anos.

O PL, que já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e está pronto para ser votado em plenário, virou a prioridade do movimento de homossexuais, de acordo com a coordenadora geral do Movimento D´Ellas e coordenadora nacional da Articulação Brasileira de Lésbicas, Yone Lindgren. "Hoje, o mais importante para nós é a criminalização da homofobia. Infelizmente, se não tiver uma lei, nada adianta”, lamenta.

O secretário geral da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT), Toni Reis, defende a necessidade de aprovação do projeto e justifica que, embora a Constituição Federal proíba a discriminação de qualquer natureza, ela não tipifica as formas de discriminação, nem determina a pena aplicável. “Da mesma forma, o Código Penal dispõe sobre a injúria de cunho discriminatório referente a cor, raça, etnia, religião ou origem, mas é omisso quanto à discriminação por orientação sexual e crimes motivados por homofobia, definida como ódio e medo irracional aos homossexuais”, explica.

Representantes de organizações da sociedade civil de vários estados brasileiros foram ao Congresso no dia 12 de julho para cobrar a aprovação de leis que assegurem os direitos dos homossexuais e combatam a homofobia. O presidente da Câmara, deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), comprometeu-se, junto aos parlamentares da Frente Parlamentar Mista pela Livre Expressão Sexual e às lideranças do movimento de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros (GLBT), a priorizar a inclusão do PL na pauta de votações da Câmara.

De acordo com Beto de Jesus, secretário para América Latina e Caribe da Associação Internacional de Gays e Lésbicas (LLGA), a lei é necessária não só para punir pessoas preconceituosas, mas também por ter um papel mais amplo. “É um projeto de grande envergadura, assim como é a lei contra a discriminação racial. As pessoas argumentam que não tem ninguém preso por causa da lei, mas quando foi a última vez que vimos uma piada racista na televisão? O projeto que criminaliza a homofobia tem um sentido pedagógico também”, argumenta.

Um dos fundadores da Parada do Orgulho Gay de São Paulo, Beto de Jesus defende a necessidade de as pessoas entenderem que as reivindicações do movimento fazem parte de uma luta por direitos. “Não é possível que uma lei me proteja pela metade e proteja o meu irmão por inteiro só porque ele é heterossexual. Não podemos criar categorias de pessoas superiores e inferiores, que não têm direitos, que podem ser violentadas ou mortas. Não podemos ter meio direito”, defende.

Ele cita a postura da Igreja como uma das grandes dificuldades do combate à homofobia. “A moral religiosa é muito resistente à idéia. Mas é preciso entender que existe uma ética da vida, e ninguém pode ser violentado só porque é diferente. Até porque todos somos diferentes”, diz Jesus.

No mês passado, o Grupo Gay da Bahia (GGB) divulgou levantamento que indicava que, entre 1980 e 2005, foram assassinados 2.511 homossexuais no país – em sua maior parte, vítimas de crimes homofóbicos. Dentre as vítimas, 72% eram gays e 25% travestis. Proporcionalmente, travestis e transexuais são a parcela mais agredida, pois representam uma população estimada de 20 mil pessoas, enquanto as lésbicas e os gays somam mais de 18 milhões de brasileiros – 10% da população.

A média geral é que a cada três dias um crime de ódio contra homossexuais é praticado no país. Com mais de 100 assassinatos por ano, o Brasil ocupa o primeiro lugar numa lista de 25 países onde os dados estão disponíveis. O México, que ocupa o segundo lugar, tem em média 35 mortes anuais. A pesquisa do GGB chama a atenção ainda para a precariedade da coleta dos dados, que podem estar subestimados, pois dependem exclusivamente do levantamento de notícias de jornais e da internet.

Yone Lindgren denuncia que, além da população, é preciso também realizar um trabalho de conscientização dos policiais. “A maioria das denúncias que recebemos no Centro é contra policiais e guarda municipal. Muitas vezes, quando os gays vão registrar alguma ocorrência na delegacia, os policiais ignoram a existência do ex-companheiro. Eles se defendem dizendo que a informação é irrelevante”, diz, referindo-se ao Centro de Referência Contra a Violência e Discriminação Homossexual, no Rio de Janeiro, do qual também é coordenadora.

Uma pesquisa da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) chamada "Juventude e Sexualidade" traz dados preocupantes sobre o tema. O estudo é de 2004 e foi realizado com 15 mil adolescentes e 5 mil professores em vários estados brasileiros. O levantamento mostrou que mesmo entre os jovens o índice de preconceito é altíssimo – 25% dos adolescentes afirmaram que não gostariam de ter uma pessoa gay como colega em sala de aula. Além disso, 60% dos professores alegaram não saber como lidar com o preconceito.

O projeto

Apesar do ceticismo dos representantes dos movimentos sociais em relação à aprovação do projeto ainda este ano, a deputada Iara Bernardi está otimista. Segundo ela, hoje existem 22 proposições relativas ao tema tramitando na Câmara e a resistência de parlamentares vem diminuindo. “Há vários outros projetos sobre o tema, como o que trata das intervenções cirúrgicas e da doação de sangue por homossexuais, mas o PL 5003/2001 é o que tem mais chance de ser aprovado, por tratar de questões de direitos humanos. Ninguém pode ser discriminado”, diz.

Segundo a deputada, a vantagem desse projeto é ter unido as forças dos movimentos sociais e dos deputados preocupados com a causa GLBT. “Havia muitas entidades que faziam intervenções no Congresso. Mas conseguimos unificar os esforços através da criação da Frente Parlamentar Mista pela Livre Expressão Sexual, que hoje é composta por 95 parlamentares que defendem os direitos dos homossexuais”, explica. Algumas propostas da Frente são: realizar seminários e debates no Congresso, apoiar a implementação do Programa do governo federal Brasil sem Homofobia e discutir o orçamento.

“Esse PL amplia e altera substancialmente a Lei 7.716, de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Com seu PL, Iara Bernardi amplia o campo da discriminação passível de punição pela lei, incluindo crimes resultantes de discriminação e preconceito de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero”, explica Beto de Jesus, da LLGA. Ou seja, na mesma lei que punia discriminação de raça e cor constarão as descrições das condutas homofóbicas e suas penalidades.

O projeto procura responder às necessidades dos homossexuais e ajudar a evitar situações constrangedoras que podem acontecer no dia-a-dia. Um dos artigos do PL tipifica o ato de “impedir, recusar ou proibir o ingresso ou permanência em qualquer ambiente ou estabelecimento público ou privado aberto ao público”. Segundo Beto de Jesus, são bastante normais as queixas sobre impedimento de acesso a estabelecimentos, principalmente de travestis e transexuais.

“Alega-se para isso, que elas não estão trajadas de forma adequada ao seu gênero, causando muito constrangimento e desrespeito. Com essa lei, reforça-se o direito de ir e vir, já previsto na Constituição, além de impor sanções contra os que insistirem em desrespeitar a identidade de gênero das pessoas trans”, defende. Neste caso, a pena prevista é de reclusão de um a três anos.

Outro artigo central no projeto é o que diz respeito às ações que tentam “impedir ou restringir a expressão e a manifestação de afetividade em locais públicos ou privados abertos ao público” e “proibir a livre expressão e manifestação de afetividade do cidadão homossexual, bissexual ou transgênero, sendo estas expressões e manifestações permitidas ao demais cidadãos ou cidadãos”. A pena prevista no projeto é de dois a três anos de reclusão.

“Muitos GLBTs têm uma história para contar de intolerância quando manifestaram afeto em público. Os heterossexuais se beijam, abraçam, andam de mãos dadas etc., e essas manifestações devem ser respeitadas por todos”, defende Beto de Jesus, que lembra o caso de dois rapazes que foram humilhados num shopping em São Paulo por se beijarem em público. “Baseados na Lei 10.948 /2001 do estado de São Paulo, que dispõe sobre penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em razão da orientação sexual, eles processaram o shopping e ganharam a causa, o que se tornou uma importante vitória para o movimento GLBT nacional”, lembra o secretário da LLGA.

ONGs contra a homofobia

Para o secretário geral da ABGLT, Toni Reis, as organizações da sociedade civil podem ajudar na aprovação do projeto, fazendo contato com os parlamentares federais de seus estados e solicitando que integrem a Frente Parlamentar Mista pela Livre Expressão Sexual. Segundo ele, a ampliação da Frente é uma forma de garantir o voto favorável ao projeto de lei.

Beto de Jesus enfatiza a necessidade se ser criada uma agenda comum para os movimentos sociais. “Existem muitos marcadores de identidades, nós não temos um só. Uma mulher pode ir para o movimento feminista ou de lésbicas, por exemplo. Os movimentos sociais têm de perceber que as pessoas não podem negar todos os seus marcadores e dizerem que são defensores de uma coisa só”, diz.

Segundo ele, para isso o conceito de diversidade é muito importante. “Quando as organizações da sociedade civil trabalham com crianças e adolescentes, por exemplo, é preciso levar em consideração que também existem crianças negras ou gays. Ser negro e gay ainda é difícil dentro do próprio movimento negro. Existem pessoas que ainda têm resistência a isso”, avalia Jesus. E não é só isso. Alguns homossexuais, segundo ele, têm resistência de se aproximar dos movimentos sociais.

A matriz religiosa de muitas organizações de direitos humanos também constitui um obstáculo para o debate do tema mesmo dentro do terceiro setor. A coordenadora do Movimento D´Ellas relata situações de preconceito que já viveu dentro de uma conferência de direitos humanos no Rio de Janeiro. “Uma representante dos movimentos religiosos quis marcar uma reunião e tivemos de ouvir que ela era capaz de curar os homossexuais. Infelizmente, as pessoas não entenderam ainda que, se fosse uma questão de escolha, tenho certeza de que a maioria escolheria uma vida mais fácil e menos sofrida”, diz Yone Lindgren.

Luísa Gockel

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