Autor original: Marcelo Medeiros
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![]() Ilustração: Mazen Kerbaj | ![]() |
Mais uma vez, o Oriente Médio está em guerra. O grupo político-terrorista Hezbolá, baseado no sul do Líbano, seqüestrou soldados israelenses e atacou cidades do norte de Israel. Em troca dos militares, quer a libertação de prisioneiros palestinos. O governo de Israel rapidamente respondeu com bombardeios e mísseis, ambos direcionados a alvos estratégicos, como estradas e aeroportos, além de prédios onde poderiam estar líderes do grupo libanês. Em meio à troca de explosivos estão milhares de civis, de ambos os lados. Dada, porém, a superioridade militar israelense, há mais vítimas libanesas – eram cerca de 300 até quinta-feira 21 de julho. O Líbano reclama que tem sofrido por causa das ações de um grupo que age em seu território, mas não tem relação direta com seu Estado. Israel responde dizendo que o governo libanês protege o Hezbolá, assim como os governos da Síria e do Irã.
Para o professor de Direito Internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Antonio Celso Pereira, ainda não é possível dizer que há uma guerra com Israel, por não haver um conflito entre Estados [a entrevista foi feita um dia antes de Israel declarar guerra ao Líbano, o que ocorreu na tarde da sexta-feira, 21 de julho]. No entanto afirma que isso não está muito longe de acontecer, dados os interesses de diversos países na permanência da tensão. Segundo Pereira, que também é professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a ação do Hezbolá foi cuidadosamente planejada pelo Irã para tirar a atenção mundial de seu programa nuclear. Ao mesmo tempo, os EUA, maiores aliados de Israel, afirmam não apoiar um cessar-fogo na região até que os soldados israelenses sejam resgatados. “Para o Irã, quanto mais civis morrerem em ações israelenses, melhor, pois ganha argumentos para negociar”, diz, para depois ponderar sobre a ação do outro lado: “Israel está começando a usar uma força desproporcional, e assim começa a perder a razão”. Nesta entrevista, Pereira alerta para o risco militar e político da entrada de tropas israelenses no Líbano. Para ele, o problema vai ser sair depois de terminada a missão. Há também críticas à postura norte-americana e à ação dos grupos terroristas do Oriente Médio.
Rets - A troca de ameaças e mísseis já dura algumas semanas. É possível afirmar que há uma guerra de fato na região?
Antônio Celso - Ainda não. Existe uma guerra entre Israel e Hezbolá, que é um grupo político e não um Estado. O Líbano, até agora, não tomou nenhuma atitude concreta contra os ataques israelenses, logo não é possível afirmar que há uma guerra propriamente dita entre dois Estados.
As ações de Israel são derivadas, como já sabemos, dos seqüestros de seus militares pelo Hezbolá e dos ataques que seguiram.
Rets - Mesmo o Hezbolá tendo participação no governo libanês?
Antônio Celso - O Hezbolá hoje possui uma pequena participação política no Parlamento libanês, e ainda assim o governo é seu refém. A história é complicada. Israel entrou no sul do Líbano em 1982 para combater a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em uma operação coordenada pelo então general Ariel Sharon [ex-primeiro ministro israelense, afastado do governo por problemas de saúde] e só deixou o país em 2000. O Hezbolá foi criado nos anos 80, com apoio da Síria e do Irã, justamente para combater a invasão israelense. O grupo se organizou no sul do Líbano não por acaso. Lá a maioria dos habitantes é xiita, como no Irã. Ou seja, o Hezbolá nasceu para combater Israel.
Quando os israelenses saíram do Líbano, a Síria ocupou o país e o Líbano não teve condições de anular ou neutralizar o Hezbolá, que até recentemente só possuía mísseis artesanais. O Líbano teve a chance de reverter essa situação. Possuía um primeiro-ministro moderado [Rafik Hariri] capaz de recuperar a soberania do país perante a Síria, o que aconteceu recentemente, com a Revolução dos Cedros. A Síria retirou suas tropas, mas na prática não deixou o país, pois deixou o Hezbolá como força política e militar.
O Líbano deveria ter feito como o rei Hussein, que nos anos 70 expulsou a OLP da Jordânia e assim evitou problemas. Mas Israel revida na região de onde partiram os ataques. O Hezbolá lança mísseis de áreas com população civil, logo se escuda entre inocentes. E os israelenses não têm como deixar de revidar, e assim dezenas de inocentes são mortos.
O governo libanês pressiona, mas não toma nenhuma atitude hostil a Israel, pois essa é uma ação arriscada.
Rets - Muito se fala da influência do Irã nesses ataques, principalmente em relação ao fornecimento de armamento. Até que ponto o país realmente passa armas ao Hezbolá?
Antônio Celso - O Irã é o principal articulador desses ataques, ainda mais quando o assunto são armamentos. Os mísseis do Hezbolá vêm do Irã, mas ninguém sabe exatamente quais e que quantidade. Até agora, o Hezbolá tem usado armas de curto alcance, mas o Irã possui foguetes que alcançam mais de 150 quilômetros. O território de Israel tem 600 quilômetros por 90. É um território pequeno, fácil de ser atingido.
Rets - E em relação ao planejamento das ações? Qual o papel do Irã?
Antônio Celso - Ele está claro e envolve outras questões. Os analistas têm afirmado que após os seqüestros o Egito pressionou o Hezbolá para que ele devolvesse os soldados a Israel, para evitar um conflito e forçar os israelenses a deixarem a Faixa de Gaza. E estiveram próximo do consenso em relação a isso.
Mas por que a discussão regrediu? Há uma situação grave entre duas importantes forças políticas palestinas, o Hamas e o Fatah. O segundo é o grupo do presidente Mahmoud Habbas e da OLP. Abbas também pressionou pela libertação dos soldados, e alguns presos palestinos em Israel chegaram mesmo a publicar um manifesto no qual pediam que ambas as forças reconhecessem Israel. No entanto não houve acordo, e os palestinos estiveram à beira de uma guerra civil.
Abbas, pouco antes, planejava realizar um plebiscito para saber a opinião dos palestinos em relação ao começo de negociações de paz com o vizinho. As pesquisas, inclusive, apontavam uma vitória, com alta adesão, do sim à paz. Afinal, são pessoas que não agüentam mais bombardeios. Foi quando veio o seqüestro. Quando tudo estava prestes a dar certo, o Hezbolá mata soldados israelenses.
A Síria não quer paz, pois não tem mais a força política de quando ocupava o Líbano. Se for para negociar, os sírios querem ter uma posição de força. Já o Irã tem interesse em provocar Israel. Afinal, isso o ajuda a negociar com os EUA em relação a seu teórico arsenal nuclear. Teerã quer ter trunfos para sentar à mesa, por isso desvia o foco das atenções internacionais para o Líbano quando havia muitas ameaças de embargo caso não interrompesse seu programa nuclear. Para o Irã, quanto mais civis morrerem em ações israelenses, melhor, pois ganha argumentos para negociar.
Rets - Israel está atacando um país por causa da ação de um grupo político. Isso é legítimo?
Antônio Celso - Os acordos internacionais permitem ataques em legítima defesa, que devem ser comunicados à ONU. Os países só podem usar força correspondente à que foram atacados. Se não for assim, quando um der um tiro, outro joga uma bomba atômica.
O problema é que Israel está começando a usar uma força desproporcional, e assim começa a perder a razão. Tel Aviv está fazendo, na verdade, guerra preventiva ao atacar aeroportos e estradas para evitar a fuga de terroristas e a chegada de mais armas. É o mesmo que os EUA fazem no Iraque. Mas guerras preventivas não estão previstas na legislação internacional.
Rets - Tel Aviv já cogita a possibilidade de envio de tropas para resgatar seus soldados seqüestrados. Essa ação pode funcionar?
Antônio Celso - Seria um grave erro, pois quem entra não pode sair. A não ser que faça ações pontuais e rápidas. Ao contrário, estaria contrariando a resolução 425 das Nações Unidas [a resolução, de 1978, determina a retirada das tropas israelenses do sul do Líbano e só foi cumprida integralmente em 2000].
Rets - O primeiro-ministro inglês, Tony Blair, defende o envio de tropas internacionais de paz para a região. Isso poderia surtir efeito?
Antônio Celso - Pode ajudar, mas não imediatamente. As tropas ficariam no sul do Líbano para impedir o prosseguimento de ações do Hezbolá e criariam uma zona de exclusão. Seria mais uma ação de peace keeping [estabelecimento de algum tipo de barreira para evitar ataques entre diferentes lados] do que de peace making [estabelecimento de negociações de paz], como foi no Haiti. Logo, não vai resolver nada de imediato. Até porque os EUA não acreditam num cessar-fogo agora ou ao menos até Israel conseguir resgatar seus soldados.
Rets - Os EUA discordam dos ingleses em relação ao envio de tropas?
Antônio Celso - Sim, dificilmente Bush fará algo até que Israel atinja seus objetivos. O problema é que Israel pode até parar com os bombardeios, mas o Hezbolá, não. Blair acredita que os países árabes podem pressionar grupos terroristas e seus financiadores rumo à paz.
Rets - O comportamento dos EUA influencia em que medida a geopolítica do Oriente Médio?
Antônio Celso - É um claro fator de instabilidade. Não só pela presença militar, mas também pelo componente religioso. Os muçulmanos os vêem como cruzados em uma guerra de civilizações. Um ataque ao Oriente Médio é considerado um ataque ao Islã. Nos anos 80, no embate das tropas soviéticas com os afegãos, os EUA manipularam essa visão explorando a falta de fé dos comunistas para colocá-los contra árabes e persas. Assim criaram gente como Osama bin Laden.
A análise dos conflitos como uma cruzada é fundamentalista de ambos os lados. Afinal, o protestantismo tradicional de George Bush também vê essas ações como cruzadas, o que os discursos presidenciais muitas vezes reforçam.
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