Você está aqui

A ação afirmativa das leis

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Artigos de opinião






A ação afirmativa das leis
Maurício Santoro*

A controvérsia sobre a implementação de cotas raciais pelo governo brasileiro trouxe as desigualdades étnicas para o centro do debate político. Nesse contexto, é oportuno lembrar que a Constituição Cidadã de 1988 e os acordos internacionais de direitos humanos dos quais o país é signatário implicam o compromisso com políticas de ação afirmativa e combate ao racismo. Tais medidas também são adotadas por países que, à semelhança do Brasil, são democracias multiétnicas com graves problemas de inclusão social, como Estados Unidos, Índia e África do Sul.

Nos anos 50, o senador Afonso Arinos propôs a lei 1390/51, que tornou o racismo contravenção penal, tipificando-o como a recusa de entidades públicas ou privadas atenderem uma pessoa por causa da cor da pele. O político afirmou que a lei teve, porém, eficácia mais sociológica do que jurídica, contribuindo para a conscientização da sociedade brasileira sobre o problema do racismo.

Na década seguinte, entrou em vigor a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (Cerd), ratificada pelo Brasil em 1968. Foram os anos do movimento pelos direitos civis nos EUA, da luta contra o apartheid na África do Sul e da descolonização afro-asiática.

A Cerd tem como referência acordos anteriores, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a convenção contra discriminação no emprego, da Organização Internacional do Trabalho (1956). Além de proibir práticas racistas, o artigo segundo da Cerd estabelece o compromisso dos Estados em implementar medidas especiais e concretas para garantir que grupos discriminados tenham acesso aos direitos humanos.

A ação afirmativa ganhou força em tratados posteriores de direitos humanos, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw, de 1979) e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (1989), que trata do racismo contra os povos indígenas. O Brasil é signatário de ambas.

A Constituição Cidadã de 1988 guia-se pelos mesmos princípios de valorização da dignidade humana, ao estabelecer como objetivos da República a construção de uma sociedade justa e solidária, com o combate às desigualdades, incluindo as que se originam da intolerância racial.

A legislação antidiscriminação foi aprimorada, sobretudo pela leis 7716/89 e 9459/97, que tornaram o racismo crime inafiançável e imprescritível e acrescentaram em sua definição as agressões que podem ocorrer por razões religiosas ou de origem regional. Foi aumentada a pena para o crime de injúria, quando este envolve ataques raciais.

À igualdade formal, a Carta Magna acrescentou a preocupação com a igualdade material. É a consciência de que não basta proibir a discriminação, é preciso promover a inclusão de grupos sociais marginalizados através de políticas de ação afirmativa.

Medidas com esse objetivo foram adotadas visando à proteção das mulheres (por exemplo, permitindo-lhes aposentar-se mais cedo do que os homens, visto que, com freqüência, têm dupla jornada de trabalho por cuidarem da casa e da família) e da população negra e indígena. O tratamento diferenciado também se estende às pessoas portadoras de deficiência física, que contam inclusive com cotas nos concursos públicos.

A discriminação racial está na origem do Brasil. O legado brutal dessa prática levou o país a ser uma das sociedades mais desiguais do planeta. Tais características são incompatíveis com a construção de uma nação moderna, dinâmica e democrática.

A Constituição e os tratados internacionais de direitos humanos apontam o caminho para a superação das injustiças que caracterizam a história brasileira. Para tanto, é preciso que a opinião pública reconheça a importância da ação do Estado para corrigir a herança de desigualdades sociais e raciais. E, deste ponto de partida, passar ao próximo passo: o debate sobre as políticas públicas mais adequadas para atingir o objetivo da criação de um país solidário e integrado.

*Maurício Santoro é pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) Artigo originalmente publicado no jornal Correio Braziliense, em 17/07/2006, e pela Agência Ibase (www.ibase.br).





A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados.

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer