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Terra em transe

Autor original: Luísa Gockel

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Terra em transe


No fim de julho, enquanto a secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, arrancou aplausos por sua atuação ao piano durante um jantar na Associação de Nações do Sudeste Asiático, em Kuala Lumpur, Malásia, o restante do mundo sentiu-se constrangido pela demonstração artística no mesmo momento em que mais um conflito sangrento tomava corpo no Oriente Médio. Os esforços diplomáticos de Rice – questionados pela comunidade internacional, assim como os das Nações Unidas – parecem insuficientes para impedir o banho de sangue que vem sendo promovido por Israel e pelo grupo político e militar Hezbolá, sediado no Líbano, desde o dia 12 de julho.

O saldo parcial desse massacre já é de aproximadamente 1.200 mortos. Libaneses e representantes do Hezbolá se defendem, chamando para si o papel de vítimas, já que pelo menos mil dessas vítimas eram libaneses. Como se a perda de apenas uma vida já não fosse o suficiente para desencorajar investidas como essa. Por outro lado, Israel se sente no direito de se defender, já que o estopim do conflito foi a morte de oito soldados israelenses e o seqüestro de outros dois militares pelo Hezbolá. As leis internacionais, no entanto, são claras: toda nação tem direito de defesa, mas a ação deve ser executada na mesma proporção dos ataques recebidos.

No dia 3 de agosto, a ONG internacional Human Rights Watch, reconhecida pelo seu trabalho de defesa dos direitos humanos, divulgou um relatório denunciando que a campanha militar israelense não podia se basear nas práticas erradas do Hezbolá. Assim como o grande número de civis mortos não pode ser justificado como acidente e muitos dos ataques constituem crimes de guerra. Dois dias depois, a mesma organização divulgou novo relatório exigindo que o grupo Hezbolá parasse imediatamente de lançar foguetes sobre Israel, pois lançá-los cegamente sobre áreas civis também é crime de guerra. “Nada pode justificar esse assalto ao mais fundamental dos pilares da humanidade e espalhar entre civis os horrores da guerra”, disse o diretor executivo da organização, Kenneth Roth.

Apesar das críticas que Israel vem sofrendo por promover a destruição de infra-estrutura civil – como casas, hospitais e escolas – no Líbano, o conflito é um dos mais bem fundamentados entre a população. Uma pesquisa de opinião realizada nos dias 31 de julho e 1º de agosto entre os judeus israelenses pela Universidade de Tel Aviv mostrou que 93% deles acham justificadas as investidas de seu país contra o Líbano. O número mais impressionante são os modestos 16,5% que declararam querer um cessar-fogo imediato e o início do processo de negociação da paz.

Para o historiador Márcio Scalercio, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e especialista em Oriente Médio, é natural que os israelenses apóiem a guerra num primeiro momento. “A população apóia porque todo o norte do país está sob ameaça dos mísseis do Hezbolá. Mas se a pergunta fosse se a população apoiaria uma ocupação do Líbano, acredito que o resultado não seria o mesmo”, observa o professor. Outro fator decisivo no apoio à guerra são os atentados que o Hezbolá – que significa "Partido de Deus" em árabe – vem promovendo em Israel desde a criação do grupo, no início da década de 1980, pelos muçulmanos xiitas do Líbano.

A criação do grupo, que para uns é de resistência a Israel e para outros é terrorista, foi em resposta à invasão israelense ao sul do Líbano no mesmo período. A pobreza e a segregação que a imensa população de refugiados palestinos vive no Líbano conferiu material humano necessário para o fortalecimento do Hezbolá. O mais intrigante da pesquisa da Universidade de Tel Aviv é justamente a pequena parcela da população que acredita que há uma ligação entre a criação do Hezbolá e a questão palestina. Apenas 9,5% acreditam que o objetivo do grupo é apoiar os palestinos na luta contra Israel, ao passo que a maioria diz que a organização serve aos seus próprios interesses e aos dos seus apoiadores: Síria e Irã.

ONU?

As desastradas – e desastrosas – intervenções ocidentais no Oriente Médio levam a sociedade civil internacional a questionar até que ponto há interesse dos países ricos no banho de sangue na região. O professor da PUC explica que, para os EUA, o conflito faz parte de mais uma ação da guerra contra o terror. A teoria de que os EUA teriam o objetivo de usar o conflito para justificar uma possível invasão do Irã, inimigo declarado do governo norte-americano, é descartada por Scalercio. Além dele, o cientista político Arthur Ituassu também discorda. “Acredito que a idéia seja construir um cinturão de contenção em volta do Irã, através do Líbano, da Síria e do Iraque. Para mim, esse é um plano claro da política de segurança dos EUA”, diz.

A falta de habilidade em moderar e impedir conflitos como esse fortalece ainda mais o descrédito da comunidade internacional em relação à Organização das Nações Unidas (ONU). A organização vem passando por um período de enfraquecimento ao longo da década de 1990. As ações militares norte-americanas, que muitas vezes passam por cima das orientações da organização, ajudaram a botar em dúvida a sua eficiência e, sobretudo, a sua independência. A necessidade de reforma da sua estrutura se faz mais evidente em meio à apatia diante de massacres de civis como o que ocorre atualmente no Líbano e em Israel.

“A ONU serve para quê? Se não é para negociar conflitos, não sei para que serve. Na verdade, com os EUA fortemente armados no cenário internacional e com poder de veto na organização, não serve para nada. A militarização dos conflitos é o problema principal. Não há lei existente no mundo atualmente para conter isso”, critica o sociólogo Emir Sader. “Uma sociedade capitalista fundada no automóvel e sem ter petróleo disponível leva à necessidade de subjugar os povos árabes”, dispara Sader.

Enquanto pífios esforços dos governos internacionais procuram o tom ideal para viabilizar o possível fim do conflito, interesses econômicos e políticas externas duvidosas continuam a ter prioridade no front diplomático. EUA e Grã-Bretanha são contra o cessar-fogo imediato, pois querem que Israel continue enfraquecendo o Hezbolá e garantindo uma frágil tranqüilidade a longo prazo. Enquanto isso, a França defende o cessar-fogo para que o conflito possa ser resolvido por outras vias. As intenções do país do primeiro-ministro Jacques Chirac é fortalecer na região a sua imagem de nação ocidental aliada.

Conflito contemporâneo

A falta de informação, a cobertura parcial da imprensa internacional e, sobretudo, a pouca capacidade que o Ocidente tem para compreender diferenças têm levado a equívocos históricos no entendimento da essência dos conflitos no Oriente Médio. A noção geral é de que são questões antigas que dificilmente serão resolvidas. Essa visão limitada dos acontecimentos atrapalha muito o processo de paz. O pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) Anderson Batista explica que a história vem mostrando que a convivência pacífica entre árabes e judeus está mais para regra do que para exceção. “O problema começa só depois da 1ª Guerra Mundial e da presença imperialista na região, que não soube administrar as diferenças entre árabes e judeus. No fim da 2ª Guerra, vem o Estado de Israel e começa a confusão. Esse é, portanto, um conflito bem contemporâneo”, explica.

As intervenções ocidentais na região continuam fazendo estragos irreparáveis até hoje, segundo o pesquisador. Em virtude de uma política externa de eficácia extremamente duvidosa por parte dos EUA, ao tentar impor um processo democrático a esses países, grupos fundamentalistas estão ganhando cada vez mais força, para desespero dos norte-americanos. "A tal necessidade de democratização imposta pelos EUA vem levando a um resultado que os EUA não desejávam. No Egito, por exemplo, o processo de democratização está levando ao fortalecimento de grupos fundamentalistas. Assim como ocorreu no Iraque”, diz Batista.

O resulto inesperado pelos articuladores da Casa Branca e evidente para o restante do mundo é, segundo o pesquisador da UnB, uma resposta da região à imposição dos valores ocidentais. “O que trazia equilíbrio ao Oriente Médio não era o nosso valor de democracia, mas sim esses sheiks e líderes fortes como Saddam Hussein”, defende. A vitória nas urnas do grupo fundamentalista Hamas no mundo palestino reforça a tese. Arthur Ituassu também duvida dessa tentativa de transpor dois modelos tão distintos. “Já existe uma dinâmica própria lá, então não sei se a insistência na democracia de mercado como forma de alcançar a estabilidade funcionará. Acredito que a melhor solução sempre são as instituições”, defende o cientista político.

Para ele, no plano internacional, é preciso investir na ONU, mas nos planos nacionais, admite, a coisa é um pouco mais difícil. Ele usa o exemplo do Hamas para justificar sua tese. “Fazer parte do governo palestino é um caminho sem volta para o grupo. O Hamas vai ter de abrir mão da violência cedo ou tarde. Mas é preciso que essas organizações se adaptem às regras do jogo político”, defende Ituassu. Segundo ele, incorporar o Hezbolá à política, em vez de tentar suprimi-lo militarmente, é, portanto, a melhor saída. O grupo já conta, desde o ano passado, com 14 deputados na Assembléia Nacional do Líbano.

O historiador da UnB Anderson Batista defende, por sua vez, a criação de um Estado laico árabe-judeu com cadeiras rotativas para resolver os conflitos na região. Emir Sader acredita que a criação de dois Estados – um judeu e um palestino – seria a melhor solução. “Hoje Israel é a maior força terrorista da região”, condena. Para Ituassu, certamente há violência excessiva no conflito atual, mas é preciso lembrar que é demanda do Estado de Israel sobreviver naquela região, e o Hezbolá é atualmente o maior problema de segurança para o país.

Enquanto o Ocidente, sobretudo os países ricos, discute a melhor forma de por fim aos conflitos que ajudou a criar com seu imperialismo, a população civil palestina e de países como Líbano e Israel é massacrada pelo terrorismo de Estado ou de grupos independentes e engrossa as estatísticas mórbidas da região. Organizações da sociedade civil e ativistas reclamam a capacidade de indignação que o mundo parece ter perdido. E o pensador uruguaio Eduardo Galeno, em artigo emocionado sobre o massacre reproduzido pela Rets na semana passada, pergunta: o mundo estaria mudo?

Luísa Gockel

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