Autor original: Luísa Gockel
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Para ele, muitos foram os erros da campanha da frente do "sim", mas o papel da televisão foi fundamental. “No início da campanha na TV, as pesquisas de opinião davam 70% ao 'sim' e 30% para o 'não'. Em apenas dez dias, esses números já tinham virado. Foi muito rápido”, diz. A justificativa não é simples. Segundo ele, houve uma dissociação da idéia de ser contra as armas e de decidir, através do voto, sobre a proibição da sua comercialização.
A campanha do "não" ao desarmamento foi eficiente ao oferecer ao leitor uma alternativa moralmente eficaz que não livrava o eleitor de se aprofundar na questão. “Era um tema muito complicado e as pessoas não conseguiram saber quem tinha razão. Era uma decisão quase de caráter técnico. O 'não' associou a decisão a um valor moral simples. O ato de votar 'não' significava defender seus direitos”, explica Lissovsky.
Além da importância da televisão e da intensa utilização de estratégias de marketing político pela frente do "não", o professor da UFRJ ressalta a importância que o referendo teve para a democracia brasileira. E advertiu que, caso haja outro referendo, os movimentos sociais deverão encarar o desafio de outra forma. “Não estávamos preparados e fomos ingênuos. Na próxima, vamos ter de nos qualificar melhor para isso”, avalia.
Rets - Qual foi a principal motivação para a elaboração dessa publicação?
Maurício Lissovsky - A realização de um referendo era uma coisa inédita. Era uma ferramenta prevista na Constituição de 1988, mas que nunca tinha sido utilizada. Quando chegamos mais perto foi durante a realização do plebiscito [em 1993, para escolher o sistema de governo que o Brasil adotaria: presidencialismo, parlamentarismo ou monarquia].
O Iser estava muito envolvido na campanha pelo desarmamento. E as circunstâncias da derrota, além da novidade que era o envolvimento de uma organização da sociedade civil num processo eleitoral novo, despertaram o interesse em fazer essa avaliação.
Rets - Qual foi o principal fator que levou à queda da preferência pelo "sim"?
Maurício Lissovsky - É muito difícil responder o que teria causado a derrota. Acredito que algumas coisas foram significativas, ainda que não decisivas. Uma delas foi o papel da internet. Foi uma completa novidade ela ter sido usada com tamanha intensidade no processo eleitoral. Teve um impacto na decisão de alguns setores da opinião pública.
Outro fator foi a inexperiência de ONGs e movimentos sociais que lideraram a campanha do desarmamento. Foi uma luta desigual, porque o outro lado estava preparado há muito tempo.
Rets – Mas houve erro na estratégia?
Maurício Lissovsky – Em termos de erros estratégicos, acredito que foi o fato de a campanha do "sim" não ter percebido que o referendo era uma coisa e a campanha era outra. A pessoa se manifestar a favor do desarmamento e votar contra o comércio de armas são coisas diferentes. Não era uma coisa só. Para os movimento sociais, era só continuar o trabalho que vinham fazendo nos últimos anos. Mas o fato de ter havido uma campanha de entrega de armas bem-sucedida não significava a vitória.
Percebemos que as pesquisas de opinião mostravam que aquela não era uma decisão que a população quisesse tomar. As pessoas se questionavam: “se os políticos nunca pedem pra gente decidir nada, por que eu vou ter que decidir sobre isso?”.
Rets – O senhor acredita que o clima de “já ganhou” pode ter atrapalhado?
Maurício Lissovsky – Não tinha clima de "já ganhou", o que houve foi uma incompreensão por parte das organizações sociais. Uma coisa é perguntar se alguém é um bom presidente, outra é se você votaria nessa pessoa para presidente. Muitas vezes, não. Para a gente, era claro que éramos o bem ou os mocinhos, e achamos que as pessoas perceberiam isso.
Existe uma diferença entre simpatia e eleição. As pesquisas iniciais revelaram a simpatia pela causa. A simpatia estava ganha, mas a decisão não. Quando iniciou a campanha, os dois lados começaram do zero. E acreditamos que era o bastante apenas dar continuidade ao trabalho que vinha sendo feito. E não era isso. Tínhamos de conquistar opiniões.
Rets – Outra questão colocada foi a possibilidade de realizar o referendo junto com as eleições regulares...
Maurício Lissovsky – A campanha do desarmamento preferiu que fosse separado. Isso foi um erro, porque os políticos e os partidos seriam obrigados a se posicionar. Não sei se a maioria optaria pelo sim, mas traria a discussão para um campo a que os eleitores estão mais acostumados.
Era como se imaginássemos que finalmente iríamos poder fazer uma verdadeira campanha democrática livre de políticos. Foi um erro. Não existe democracia livre de políticos.
Rets – Onde a campanha contra o desarmamento acertou?
Maurício Lissovsky – Se virmos retrospectivamente a campanha do "sim", ela foi muito pedagógica, com tudo explicadinho. A campanha do "não" era eleitoral. Eles diziam: “estão querendo tirar seus direitos”. Eles insistiram nesse ponto porque tinham muitas pesquisas. Na época do plebiscito, a estratégia do presidencialismo foi a mesma. O Chico Santa Rita [profissional que foi responsável pelo comando das duas campanhas] usou o mesmo argumento para convencer as pessoas naquela época e agora. Só que eles diziam antes: querem tirar seu direito de votar para presidente”.
Era um tema muito complicado, e as pessoas não conseguiram saber quem tinha razão. Era uma decisão quase de caráter técnico. O “não” associou a decisão a um valor moral simples. O ato de votar “não” significava defender seus direitos. Isso resolvia o problema do eleitor, que se via livre de entrar na discussão. Não precisava pensar mais em taxas de homicídio ou sobre os tipos de armas que mais matam.
Era difícil para o eleitor entender que votar para as lojas de armas continuarem abertas era votar contra a vida. Mas eles viam que votar para fechar as lojas era uma restrição dos seus direitos.
Rets - O escândalo do mensalão, meses antes do referendo, pode ter influenciado parte da população a votar "não" em protesto contra o governo?
Maurício Lissovsky – Muita gente acha que sim, mas eu tenho as minhas dúvidas. Não era evidente que o “sim” era a favor da corrupção ou dos políticos. O “sim” poderia perfeitamente ter vendido uma idéia como essa sobre o “não”.
Rets – Maria Aparecida Rezende Mota citou em seu artigo que, apesar de motivada por argumetos conservadores, a frente do "não" fez uma campanha recheada de elementos de esquerda, mostrando as conquistas democráticas ao longo das décadas. Isso pode ser uma prova de que, apesar do voto conservador, a população tem mais simpatia pelos argumentos de esquerda?
Maurício Lissovsky – Não sei se dá para dividir dessa forma. Essa coisa dos direitos é um argumento liberal clássico, na verdade. O eixo de argumentação era a partir de um modelo de campanha americano. Acho que a novidade está na presença desse tipo de debate no cenário eleitoral. Essa argumentação dos direitos nunca teve muita visibilidade no Brasil.
Rets - De que forma as campanhas na televisão influenciaram o resultado final?
Maurício Lissovsky – Tem umas coisas curiosas. No início da campanha na TV, as pesquisas de opinião davam 70% ao “sim” e 30% para o “não”. Em apenas dez dias, esses números já tinham virado. Foi muito rápido. Uma virada dessas não pode ser explicada como mudança de opinião. A TV foi decisiva para isso.
Na mesma pesquisa, o Ibope perguntou se essas pessoas tinham mudado de opinião. A maioria respondeu que não. O que aconteceu foi que as pessoas mudaram o voto, mas acharam que não estavam mudando de opinião. As pessoas eram contra as armas, mas podiam também decidir pela liberação do comércio de armas. O “não” investiu nisso, ou seja, não falou a favor das armas.
Eles fizeram uma campanha levando em consideração a percepção de que a população não queria decidir sobre isso. Eles tinham pesquisas dizendo que o eleitor não queria definir isso. O “sim” não tinha pesquisas.
Rets – O que a campanha da frente do "sim" na TV fez de errado?
Maurício Lissovsky - A campanha do "sim" estava muito baseada na informação do eleitor, mas era um tema muito complicado. Então tínhamos de ter dado uma saída ao eleitor. A campanha do "sim" exigia 2º grau. O uso de artistas deu errado. A resposta do "não" foi baseada nas classes. Eles diziam que o “sim” representava os ricos e eles, o povo.
Outro erro foi a história do direito à vida. Não é uma palavra de ordem no campo da política. Como alguém pode ser contra a vida? Por outro lado, a defesa dos direitos é familiar ao campo da política. Por uma semana, o “não” veiculou campanha só falando de direitos. O assunto armas não foi mencionado. Também não foi explorado que o “sim” representava a mudança e o “não”, os conservadores.
Rets – E o que a campanha da frente do "não" na TV fez de tão certo?
Maurício Lissovsky – O “não” fez uma campanha clássica. Seguiram o manual de como ganhar uma eleição. E o “sim” tentou convencer as pessoas. Mas se o “sim” fizesse uma campanha para ganhar, provavelmente seus militantes não se reconheceriam nessa campanha.
Rets - Que lições podemos tirar deste referendo?
Maurício Lissovsky – Compreendemos que uma coisa é opinião pública e outra coisa é ganhar uma eleição. Acho que o referendo foi bom para a democracia brasileira, mas pagamos o preço de termos sido os primeiros. Espero que tenhamos outras oportunidades.
Outra lição foi a de que o povo brasileiro não se sente habilitado a participar de processos de decisão que não se limitem a uma simples escolha de representantes. Para a sociedade civil organizada, por sua vez, ficou claro que disputar espaço público é diferente de ganhar uma eleição. Não estávamos preparados e fomos ingênuos. Na próxima, vamos ter de nos qualificar melhor para isso.
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