Autor original: Luísa Gockel
Seção original: Artigos de opinião
Lucidio Bicalho*
Tanto os entendimentos do conceito de democracia quanto da sua arquitetura real são processos permanentes e dinâmicos, cada vez mais agregando novos significados e refletindo a complexidade e diversidade das sociedades. A democracia representativa tem nas eleições de representantes para os poderes Executivo e Legislativo seu eixo principal. Já os mecanismos de democracia participativa e direta devem expressar o compromisso autônomo do cidadão/ã com o interesse público, mais ainda do que se estivesse sujeito à organização dos partidos políticos e à delegação de poder. No Brasil, o referendo e o plebiscito são instrumentos constitucionais complementares de consulta e participação direta.
Adicionalmente, esses mecanismos lembram a gênese da legitimidade do sistema político: o poder do povo, que é o mandato da cidadania. Sob esse princípio fundamental foram erguidas as instituições que organizam a convivência entre as diversidades. E, como expressa a própria Constituição de 1988, esse poder pode ser exercido diretamente ou por meio de representantes. Nesse sentido, é legitimo que tal princípio seja estendido ao ciclo completo do sistema de planejamento e orçamento.
A intervenção direta no ciclo orçamentário, por exemplo, diminuiria o fosso existente entre representantes e representados. A não ser que se queira ainda acreditar, em pleno século XXI, na utopia cega (ou proposital) de que os políticos eleitos e a burocracia exercem a representatividade democrática perfeita. A verdade é que são elites que decidem os rumos das políticas públicas – em geral, enviesados pela ausência de um debate público amplo e popular.
É evidente que a participação social no ciclo de construção das políticas públicas não conduziria à arquitetura democrática perfeita, tão almejada por Rousseau, pois as organizações não-governamentais e os movimentos sociais não podem e não almejam representar toda a sociedade civil, muito menos aqueles que optam pelo distanciamento da esfera pública e se fecham em suas vidas privadas. Contudo esse raciocínio não invalida o fato de que a participação popular e o debate amplo aumentariam o controle social sobre o Estado e ajudaria a prevenir casos de corrupção, como os dos "neo-anões sanguessugas" do orçamento.
O governo federal prepara-se para enviar ao Congresso um anteprojeto de lei com vistas a mudar a defasada lei de finanças públicas (4.320/64). Seria interessante saber do ministro Paulo Bernardo se entre os dispositivos do projeto o governo incluirá mecanismos de democracia participativa e direta no sistema de planejamento-orçamento (elaboração, execução e avaliação). Aliás, essa promessa foi feita pelo próprio ministro, em 28 de junho de 2005, a representantes da sociedade civil que atuam no campo democrático e popular, monitorando o gasto público.
Essa dúvida fundamenta-se na iniciativa inovadora, ainda que de alcance limitado, ocorrida em 2003, de construir um PPA participativo, já que o que foi discutido estava restrito às diretrizes gerais do plano, sem reflexo comprovado nas leis orçamentárias, que de fato alocam recursos. Na lei que instituiu o PPA 2004/2007, houve até à inclusão da previsão de participação da sociedade civil em fases do orçamento. Porém essa determinação virou letra morta.
Outra promessa que ainda não vingou diz respeito aos desdobramentos visando dar continuidade ao próprio “PPA participativo”. O governo assumiu o compromisso político de institucionalizar um “comitê permanente de acompanhamento do ciclo orçamentário”, iniciativa coordenada pela Secretaria Geral da Presidência e negociada com as organizações da sociedade civil, como a Associação Brasileira de ONGs (Abong) e a Inter-Redes. Esse projeto, apesar de tocar no mesmo tema da reforma orçamentária e poder ser desengavetado se houver vontade política, ainda não conseguiu avançar. Os esforços para implementar esse mecanismo de democracia participativa são claramente parcos. No mínimo, está tudo muito lento. De qualquer forma, será um erro grave se essa “arquitetura da participação” não for adicionada à proposta de reforma da 4.320/64.
Enfim, esses instrumentos de controle social deveriam fazer parte da nova lei de finanças públicas, com vistas a melhorar a transparência do orçamento federal. Porém as estratégias do governo não dialogam entre si. Fica a impressão de que o "a escuta forte" de 2003 foi apenas um uso instrumental da sociedade organizada. Já uma ausência de instrumentos de democracia participativa e direta na proposta de reforma da lei de finanças dará a certeza de falta de compromisso com a promessa de democratizar os espaços de decisão do Estado que definem o fim dado ao dinheiro dos cidadãos/ãs.
* Lucidio Bicalho é assistente de Política Fiscal e Orçamentária do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
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