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Vidas recicladas

Autor original: Mariana Hansen

Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor






Vidas recicladas
Foto: Emsergipe.com
Em 1999, por meio do Projeto Lixo e Cidadania, que tinha como objetivo tirar crianças do lixão e colocá-las na escola, foi feito o cadastramento das famílias que trabalhavam na lixeira de Terra Dura, no bairro Santa Maria, em Aracaju (SE). Aqui começa a história da Cooperativa dos Agentes Autônomos de Reciclagem de Aracaju (Care), que deu novas perspectiva de vida para 42 famílias que não apenas viviam do lixo, mas também moravam no meio dele.

Em parceria com o Programa das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Universidade Federal de Sergipe, o Programa de Defesa Comunitária do Ministério Público Estadual cadastrou 310 famílias de catadores de lixo e encaminhou as crianças para a escola. A iniciativa, no entanto, mostrou-se insuficiente, pois algumas dessas crianças moravam dentro do lixão e, quando voltavam para casa, continuavam a trabalhar para ajudar no sustento de suas famílias. Assim, era importante retirar essas pessoas de lá e dar a elas condições mais dignas de trabalho.

A alternativa encontrada foi também ter os pais como foco do trabalho. Segundo a presidente do Care, a também cooperada Vaneide Santos, o primeiro passo foi arrumar um lugar mais para trabalhar fora do lixão. Foi sugestão dos próprios cooperados manter o trabalho de reciclagem. “Era isso que a gente sabia fazer”, conta. Além da conscientização, as 42 famílias que residiam no lixão ganharam casas próprias e um galpão equipado para iniciar as atividades.

De acordo com Aragão Brito, agente do Programa do MP e que acompanha até hoje o trabalho do Care, “quando se fala de resgate da cidadania, não é dentro da lixeira. Queríamos mostrar uma sustentabilidade mais digna, que eles poderiam trabalhar com o lixo, mas não dentro da lixeira”.

A criação da cooperativa veio acompanhada de outras iniciativas. Muitos dos cooperados não possuíam nenhuma espécie de documentação, e alguns nem ao menos sabiam qual era sua família de origem. “Quase não se cria a cooperativa, por falta de documentos das pessoas. Ainda nos deparamos com o analfabetismo, que era outro problema entre eles”, lembra Aragão. Ele ainda recorda problemas como alcoolismo e dependência química de alguns cooperados, que acabaram sendo afastados do projeto até se recuperarem. “Eles foram encaminhados para casa, mas sabem que têm a oportunidade de voltar”, explica.

Hoje, são 32 cooperados atuantes, alfabetizados, registrados e com seus filhos na escola. Eles já não freqüentam mais o lixão e fazem um trabalho de coleta seletiva, visitando bairros já conscientizados sobre o assunto. Mas grande parte do seu material ainda vem de doações de empresas parceiras e instituições públicas. “Não pedimos dinheiro, mas lixo”, ressalta Aragão. Atualmente, são recolhidas 350 toneladas de lixo por mês na cidade, mas a Care só arrecada 30 toneladas. “A coleta seletiva doméstica ainda é muito tímida”, lamenta Aragão.

Todo o trabalho da Care é gerido pelos cooperados, e o dinheiro resultante do material reciclado é dividido igualmente entre todos, sem distinção de cargo. O espaço por eles ocupado tem capacidade para abrigar até cem cooperados. O desejo é que se possa integrar as outras famílias cadastradas em 1999 e que ficaram de fora do projeto. “Queremos trabalhar a coleta seletiva, conscientizar, para ajudar e dar trabalho a essas pessoas”, projeta Aragão.

Além da cooperativa

Dentro do projeto da Care, ainda existe o programa Recriarte, voltado para os filhos dos cooperados. As metas da iniciativa incluem melhorar os níveis de freqüência e de rendimento escolar, recuperar a auto-estima dos atendidos e melhorar a interação entre o grupo, as famílias e a comunidade.

Depois de irem ao colégio, crianças e adolescentes passam suas tardes na sede do Recriarte, que ocupa uma das 42 casas doadas. Lá, têm acesso a reforço escolar, assistência médica, odontológica e psicológica, aulas de artesanato, dança e música. Os agentes do programa também acompanham o desempenho escolar, visitando a escola, caso alguma criança apresente dificuldades. Além disso, é desenvolvido um trabalho social com os familiares, para dar mais apoio à criação dos filhos.

“Hoje crio meu filho com dignidade, e ele nem conhece, nem sabe onde é o lixão”, conta Vaneide, que deu à luz seu único filho dois meses após sair do lixão e descreve a experiência como “maravilhosa”. Seu desejo é que todos os catadores que trabalhavam no lixão Terra Dura tenham a mesma oportunidade que teve. “Hoje em dia, temos consciência, sabemos o que queremos da vida e para o futuro dos nossos filhos. Se estivéssemos no lixão, isso não seria possível. Lá dentro éramos desunidos”, ressalta.

Apesar de ter mudado a vida dessas famílias, Aragão sabe que muito ainda deve ser feito. Ele reclama que o apoio das autoridades públicas locais é mínimo. "No nosso estado, uma iniciativa como essa sobrevive por causa dos esforços dos cooperados”, conclui.

Mariana Hansen

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