Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
![]() Ilustração: Peter Kuper | ![]() |
"Peço que não deponham suas armas nem dêem descanso a si mesmos ou ao inimigo até que cada um de vocês mate pelo menos um americano num período de até 15 dias, com balas, explosivos ou carros-bomba, o que a batalha requisitar". A frase foi divulgada nesta quinta, 7 de setembro, pela emissora de televisão árabe Al-Jazeera. É um trecho de um comunicado enviado pelo suposto novo líder da organização terrorista Al-Qaeda no Iraque, Abu Hamza al-Muhajir, conhecido também pelo nome Abu Ayyub al-Masri. A mensagem é dirigida, de maneira geral, aos muçulmanos, mas em particular aos insurgentes iraquianos, que não aceitam a permanência do exército norte-americano no país.
Na manhã seguinte, mais uma manifestação de hostilidade: em Cabul, no Afeganistão, um carro-bomba explodiu próximo à embaixada dos Estados Unidos, matando, segundo as primeiras informações, pelo menos 16 pessoas. Foi a mais letal ação terrorista no país desde o início da ocupação norte-americana, em 2001.
É sintomático que fatos como esses ocorram neste momento, quando o mundo se aproxima de uma data que há cinco anos ganhou uma memória trágica: o 11 de setembro. Os acontecimentos que culminaram com a destruição das torres do World Trade Center, em Nova York, por aviões comerciais seqüestrados deflagraram uma cruzada contra o terrorismo em nome da qual quase tudo é permitido. Desde então, troca-se liberdade individual por medidas de segurança. Terá valido a pena?
A resposta é difícil e certamente não é única para todas as pessoas. Mas o que é certo são as mudanças irrefutáveis por que o mundo - as pessoas, seus hábitos, os procedimentos oficiais, as relações entre países - vem passando. Especialmente a sociedade norte-americana, que viu sua privacidade minguar com a aprovação de sucessivas leis pelo governo daquele país, sob os argumentos da promoção da segurança e da caçada a terroristas. A mais significativa delas foi denominada pela administração Bush de Patriot Act. Aprovada no mês seguinte aos atentados, tornava mais fácil a realização de escutas telefônicas, permitia a vigilância de emails, obrigava livrarias a entregarem informações sobre usuários etc.
Além destas, outras alterações também contribuíram para a diminuição da privacidade de cidadãos, sob a lógica de garantir segurança. Alguns exemplos são os procedimentos em aeroportos, a falta de transparência em determinadas informações governamentais (com o Patriot Act, o governo dos EUA se permitiu não divulgar nada além do que considerar adequado), o cada vez maior controle sobre os indivíduos, com tecnologias desenhadas para vigiar a todo momento e com a formação de bancos de dados que cruzam informações obtidas de variadas fontes.
Em julho do ano passado, o Senado americano aprovou a renovação do Patriot Act, tornando permanentes algumas medidas antes temporárias. Porém dificultava um pouco o uso de investigações secretas e poderes de vigilância por parte do governo norte-americano. Em fevereiro deste ano, no entanto, o Departamento de Justiça dos EUA pediu ao Poder Judiciário a aprovação do monitoramento de emails, mesmo que sem qualquer evidência de comportamento criminal. O juiz responsável pelo caso, Thomas Hogan, concedeu. Além disso, desde o 11 de Setembro, o tratamento dispensado a imigrantes passou a ser mais rigoroso e ter ascendência árabe virou motivo de desconfiança. Outros grupos - mexicanos, cubanos, africanos etc. - também sofrem com o preconceito.
Uma das principais ONGs norte-americanas a se opor ao retrocesso na privacidade é a União Americana pelas Liberdades Civis (Aclu, da sigla em inglês). Para a organização, apoiando-se no medo e na incerteza que se seguiram aos ataques de 11 de Setembro, a administração Bush vem repetidamente se intrometendo nas leis. "O Executivo abusou do seu poder, instituindo políticas e programas ilegais e inconstitucionais", informa o site da instituição, que acrescenta: "O ataque à Constituição continua".
Outra organização dos EUA que questiona as medidas de segurança é a Military Families Speak Out (MFSO). Seus fundadores, Nancy Lessin e Charley Richardson, dizem que um número cada vez maior de norte-americanos acredita que os "alertas de ameaça" foram usados para manter a população dos EUA em um contante estado de medo. "O ex-presidente americano Franklin Delano Roosevelt disse uma vez que 'a única coisa a temer é o próprio medo'. A administração Bush trabalhou arduamente para manter todos em estado de medo. E, dentro disso, o medo de grupos religiosos e étnicos específicos vem sendo incitado e promovido. Isso tem sido péssimo para muitas pessoas dos EUA, ou que viajam para cá, que são - ou parecem ser - de ascedência árabe ou que são muçulmanos. A informação errada ou tendenciosa é a tônica, e certos programas de rádio e televisão contribuem muito para isso", disseram, por email, à Rets.
Dentro, vigilância. Fora, expansão
Além de aumentar a rigidez e a vigilância na tentativa de barrar a entrada e a permanência de potenciais terroristas em seu território, os Estados Unidos decidiram estender a caça além das suas fronteiras. O alvo principal era Osama Bin Laden, guerrilheiro árabe fundador da organização terrorista Al-Qaeda, que estaria escondido no Afeganistão. O grupo que ele comanda é tido como o autor dos atentados do 11 de Setembro.
A entrada no Afeganistão desperta opiniões diversas nos EUA. "Os membros da MFSO são divididos quanto à guerra no Afeganistão. Alguns acham que esta foi uma guerra "certa", seguindo-se aos atentados ao WTC e ao Pentágono. Outros acham que foi muito errado bombardear crianças, mulheres e homens e que a caça a Bin laden deveria ter sido uma ação mais policial, para encontrar e levar à justiça especificamente as pessoas que executaram os ataques", dizem Nancy Lessin e Charley Richardson.
Os EUA invadiram o Afeganistão, mas Bin Laden jamais foi encontrado. As tropas norte-americanas, no entanto, permanecem no país. O motivo, agora, é a reconstrução. Sobre isso conversou com a Rets Esther Hyneman, membro do conselho da Women for Afghan Women, organização que reúne mulheres afegãs e não afegãs. Ela diz que a maioria dos afegãos com quem fala sobre o assunto comemora a queda do regime Talibã [o grupo fundamentalista religioso que controlava o país até a ocupação norte-americana].
Muitos, porém, criticam a atitude dos EUA, por não terem dado apoio internacional para efetuar mudanças mais drásticas que prevenissem a corrupção e que desarmassem os grupos guerrilheiros. "Essas políticas e o lento progresso na reconstrução da infra-estrutura deixam muitos afegãos em dúvida quanto ao compromisso norte-americano com o país", diz Hyneman.
Não encontrando Bin Laden no Afeganistão, os EUA voltaram sua artilharia para o Iraque. A justificativa dada na época era a suposta ligação entre o país liderado pelo então presidente Saddam Hussein e a Al-Qaeda, além da alegada presença de armas de destruição em massa em território iraquiano. Coisas que, hoje em dia, o próprio governo norte-americano admite que não existiam. Primeiro, as armas de destruição em massa não apareceram, mesmo com as tropas dos EUA revirando o país dia após dia, enquanto o mundo acompanhava pela TV, na expectativa. Depois, um grupo de pesquisa formado por 1.400 especialistas concluiu em 2004 que não havia nenhuma chance - ou era próxima de zero - de que o Iraque tivesse armas de destruição em massa. O grupo era o Iraq Survey Group (ISG) - em português, Grupo de Pesquisa no Iraque -, força-tarefa multinacional enviada ao Iraque.
Além disso, um relatório secreto do Senado finalmente liberado nesta sexta, 8 de setembro, afirma, com base numa análise feita pelos serviços de inteligência norte-americanos, que não havia qualquer evidência de que o ditador iraquiano tivesse relações com a Al-Qaeda. O documento afirma ainda que o Iraque teria encerrado seu programa nuclear em 1991, contrariando as informações do governo Bush sobre sua retomada, o que seria a ameaça de construção de um arsenal de guerra.
A divulgação do relatório foi fartamente usada pela oposição ao presidente Bush. Em comunicado oficial, o senador democrata John Rockfeller acusou Bush de “explorar o profundo sentimento de insegurança entre os americanos no período imediatamente posterior aos ataques de 11 de setembro". É o mesmo sentimento sobre o qual falam os membros da MFSO. "A administração Bush usou o medo para nos levar a uma guerra imoral e ilegal no Iraque. Medo de armas de destruição em massa, medo de potenciais 'ameaças nucleares'", dizem Nancy Lessin e Charley Richardson.
Eles recordam que, quando a ocupação aconteceu, pesquisas mostravam um apoio popular de 70% dos americanos. Hoje, destacam, 60% consideram que a invasão foi um erro. Para Lessin e Richardson, a explicação é simples: a guerra foi baseada em mentiras. "Não há maneira correta de se fazer uma coisa errada", arrematam.
Atualmente a MSFO se dedica a uma campanha que procura sensibilizar o governo a chamar de volta os soldados que estão no Iraque. "Mais de 3 mil famílias já aderiram", conta o casal, cujo filho participou da ocupação em 2003, mas já retornou. Também a Global Exchange tenta trazer de volta os soldados e organizou um abaixo-assinado para que os eleitores cobrem diretamente daqueles em quem votaram.
A posição das duas organizações reflete o que vem fazendo a maioria das ONGs de direitos humanos norte-americanas: uma luta para sensibilizar quem concorda com o fim da ocupação e fazer das próximas eleições no país, marcadas para novembro, um momento de mudança de curso.
"Há políticos que dizem: 'a guerra foi errada', 'foi errado invadir o Iraque', 'os soldados não receberam o equipamento necessário', 'a guerra foi mal conduzida'... O que eles não dizem é 'acabem com a guerra'. A MFSO vai continuar a pressionar os políticos e a sociedade. Sabemos que nunca neste país um político acabou com uma guerra, sempre foi um movimento social. Por isso vamos continuar construindo o movimento antiguerra nos EUA", analisam Lessin e Richardson.
Seja qual for o governante a partir de novembro, terá que lidar com uma realidade que inclui uma sociedade civil contrária à guerra, liberdades individuais diminuídas, cidadãos ainda atemorizados, política internacional de reconstrução de áreas ocupadas interpretada como nova face do imperialismo e, de quebra, a marca de 2.868 vítimas militares no Iraque, segundo números oficiais, e de cerca de 45 mil vítimas civis, segundo estimativas. E ainda terá que se defrontar com a pergunta: terá valido a pena?
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