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Paz hoje por um amanhã pacífico

Autor original: Fausto Rêgo

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Ilustração: Peter Kuper
Não é raro a dor de uma perda se transformar em revolta. E, daí, em vontade de vingar, de dar o troco a quem agrediu. Não foi isso, no entanto, o que aconteceu com um grupo de famílias de Nova Iorque, quando indiretamente foram vítimas daquele que é tido como o maior ataque terrorista já realizado. Familiares de pessoas que estavam no World Trade Center naquele fatídico 11 de setembro de 2001 formaram um grupo, primeiro informal, depois oficialmente constituído e batizado de September Eleventh Families for Peaceful Tomorrows (em uma tradução livre, seria algo como "Famílias do Onze de Setembro por um Amanhã Pacífico), ou apenas Peaceful Tomorrows. Trata-se de homens e mulheres que conseguiram sublimar a dor e perceber que não é incitando ataques de ódio que se busca paz.

A então nova ONG começou a defender que, justamente naquele momento de perda, violência só levaria a ainda mais violência. Em seu site, definem-se como uma organização de pessoas que "se uniram para transformar nossa dor em ação pela paz. Ao desenvolver e defender alternativas não-violentas na busca por justiça, esperamos quebrar o ciclo de violência engendrado pela guerra e pelo terrorismo".

A
Rets entrevistou o presidente da ONG, David Potorti, que concordou em conceder uma rápida entrevista por correio eletrônico, em meio aos preparativos para o evento anual que realizam sempre perto do aniversário de 11 de Setembro. Trata-se da Conferência Internacional Peaceful Tomorrows, que este ano traz o tema Baixas Civis, Soluções Civis, que está acontecendo desde o dia 5 e vai até o próximo dia 11. Ativistas de 18 países estão presentes, inclusive membros de organizações afegãs.

David conta como as cerca de 200 famílias que formam a ONG conseguiram ter distância crítica para fundá-la, avalia algumas das mudanças no cotidiano dos norte-americanos ocasionadas pelos acontecimentos de cinco anos atrás e surpreende ao dizer que o maior interesse pelo trabalho da ONG vem de fora do país. "Ainda há familiares de vítimas do 11 de Setembro que nos dizem que acabaram de saber sobre nós. A grande mídia, nos Estados Unidos, de fato reflete os pontos de vista do governo e das grandes corporações. A administração Bush costuma falar de "fascismo" quando se refere aos muçulmanos. Na verdade, é a união entre governo e grandes negócios que define o que é fascismo. A população norte-americana pouco conhece do nosso trabalho e do trabalho de outras organizações pacifistas, porque ele é conscientemente ignorado ou subestimado pela mídia".


Rets - Desde os acontecimentos do 11 de setembro, cada novo ato terrorista cometido conduz a uma compreensível reação emocional da população norte-americana. Aumenta a popularidade do governo Bush e, em conseqüência, cresce o apoio a medidas de controle e restrição de liberdades. De vocês, no entanto, que foram direta e cruelmente atingidos pelos atentados ao WTC, a reação emocional que seria natural não aconteceu. Como foi possível, para vocês, colocar as coisas em perspectiva e ter a percepção de que a lógica do revide e da guerra não seria o melhor caminho?


David Potorti - Nossa resposta às mortes de nossos entes queridos são uma conseqüência natural daquilo que somos. Para alguns, a explicação seriam os valores espirituais. Para outros, valores religiosos. Para outros mais, era senso comum saber que uma resposta violenta levaria a mais violência. Mas o mais importante é que já tínhamos perdido tudo naquele 11 de setembro, o pior que nos podia acontecer já havia acontecido. Costumo sempre dizer que não tenho mais nada a perder desde que meu irmão morreu. É um sentimento libertador, que permite correr riscos no que diz respeito a gritar contra políticas de governo ou pedir ações alternativas. Como eu poderia ser mais atingido do que já havia sido?


Acho que esse mesmo sentimento libertador também pode levar ao terrorismo. Uma criança que vê sua família ser brutalmente assassinada ou agredida no Iraque vai crescer com esse sentimento de que não tem mais nada a perder e poderá dedicar sua vida a uma vingança contra os Estados Unidos. Devemos ter plena consciência disso à medida que continuamos a dar uma resposta militar que resulta na morte de tantos civis inocentes.


Rets - Os acontecimentos de 11 de setembro mostraram que a maior potência do mundo era vulnerável como ninguém imaginava. Hoje, cinco anos depois, ainda se vive sob um estado de ameaça permanente, com alertas de risco etc. A população norte-americana, passado todo esse tempo, hoje convive com isso de forma natural? E qual o impacto desses acontecimentos nas relações do dia-a-dia, com imigrantes e estrangeiros, por exemplo?


David Potorti - É frustrante que os americanos sejam complacentes em relação a aceitar restrições às suas liberdades tanto quanto para tolerar falhas de segurança em instalações químicas e industriais, e assim por diante. Continuamos negando o 11 de Setembro e as nossas responsabilidades de aprender mais sobre o mundo e sobre os efeitos da política externa norte-americana. Acho que ainda existe um racismo disseminado contra imigrantes e contra aqueles que são confundidos com terroristas, seja nas relações pessoais ou na forma de uma lei que pune injustamente os imigrantes. Isso resulta de uma profunda ignorância de parte de muitos americanos a respeito do resto do mundo. E é por isso que estamos trazendo para os Estados Unidos, na próxima semana, 30 pessoas de 18 países, para que falem sobre seu trabalho aos cidadãos comuns do nosso país e para criar uma rede internacional de troca de idéias, ações e iniciativas.


Rets - O Peaceful Tomorrows também atua para ajudar a população afegã. Como é o relcionamento com eles also e com ONGs afegãs? Que ações vocês desenvolvem? O que foi possível aprender com essa experiência?


David Potorti - Em janeiro de 2002, alguns de nós viajaram ao Afeganistão com o grupo Global Exchange [ONG de promoção dos direitos humanos sediada nos EUA], para encontrar cidadãos afegãos que haviam perdido membros de suas famílias durante os ataques das tropas americanas. Também atuamos junto ao Congresso pela criação de um fundo para as vítimas afegãs que auxiliaria as vítimas acidentais dos bombardeios. O Congresso finalmente liberou a verba para a reconstrução das casas atingidas. E nós, individualmente, conseguimos levantar algum dinheiro para o povo afegão. Continuamos em contato com grupos como a Afghan Women's Network [Rede de Mulheres Afegãs], do qual estamos trazendo Afifa Azim para a nossa conferência internacional da próxima semana. Também convidamos Masuda Sultan, da organização Womenf for Afghan Women [Mulheres pelas Mulheres Afegãs], mas seu trabalho exigiu que permanecesse em seu país. Temos um lugar muito especial em nossos corações para o povo do Afeganistão, porque foi o contato com eles, após o 11 de Setembro, que nos abriu os olhos para o sofrimento deles e de tantos outros povos.


Rets - O trabalho de vocês pode ser definido como "promoção de uma cultura de paz". Este conceito é bem compreendido e incorporado pelos norte-americanos?


David Potorti - O maior interesse em nosso grupo vem de fora dos Estados Unidos. Ainda hoje, cinco anos depois de começarmos a Peaceful Tomorrows, ainda há familiares de vítimas do 11 de Setembro que nos dizem que acabaram de saber sobre nós. A grande mídia, nos Estados Unidos, de fato reflete os pontos de vista do governo e das grandes corporações. A administração Bush costuma falar de "fascismo" quando se refere aos muçulmanos. Na verdade, é a união entre governo e grandes negócios que define o que é fascismo. A população norte-americana pouco conhece do nosso trabalho e o trabalho de outras organizações pacifistas porque ele é conscientemente ignorado ou subestimado pela mídia. O povo dos Estados Unidos é solidário e se preocuparia com seus irmãos de outros países. O problema é que ele não tem consciência do que passa ao redor do mundo ou do sofrimento que tem sido provocado pelas nossas políticas, por isso existe esse desinteresse.


Maria Eduarda Mattar e Fausto Rêgo. Tradução: Fausto Rêgo.

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