Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Artigos de opinião
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Nota do autor: esta é uma revisão de uma versão anterior, que continha alguns erros de cálculo.
O Brasil não conseguiu ainda estabelecer uma estratégia unificadora de políticas de alavancagem das tecnologias de informação e comunicação (TICs) para o desenvolvimento humano. Em parte é herança de governos anteriores, mas o fato é que governos nos seus três níveis continuam a dedicar-se a projetos pontuais, descoordenados, com motivações diversas, e na maioria das vezes esquecendo dos números do país: quase todas escolas públicas desconectadas, os milhões de famílias em situação de pobreza que estão "fora do mercado" e portanto condenadas à desconexão eterna, tal como estão mais de 2.400 municípios brasileiros onde sequer se pode utilizar um telefone celular.
Nessa situação de ausência de referências, quando não há um plano estratégico, aparecem as propostas mirabolantes, algumas oferecendo maravilhas, como os espelhinhos dos colonizadores mostrados às populações originárias do que veio a ser chamado de América, nas invasões iniciadas há seis séculos, que a cultura dominante prefere chamar de "descobrimento".
Uma dessas propostas é uma variação sofisticada do espelhinho, um brinquedo educativo, inventado em um laboratório interplanetário (tal a distância que o separa da realidade dos povos do Sul) chamado Medialab, do MIT (Massachusetts Institute of Technology), para "salvar as nossas crianças pobres" com uma espécie de máquina de educar. É um laptop básico, sem disco rígido, dotado de um carregador de bateria a manivela. O idealizador do empreendimento, em sua justificativa, mostra os benefícios que os laptops trouxeram para crianças do Maine (Maine, nos EUA!) e como eles podem ser usados como lâmpadas em um vilarejo sem luz do Camboja! Para iluminar as casas de nossas crianças pobres com “lâmpadas” de US$ 100 custeadas pelos contribuintes dos países “em desenvolvimento”, ele até criou uma fundação, a One Laptop per Child (OLPC).
Vamos a alguns números: o INEP, do Ministério da Educação, registrou 56,5 milhões de matrículas na educação básica brasileira em 2005, na qual o ensino fundamental correspondia a 33,5 milhões de crianças, sendo 27,7 milhões em áreas urbanas e 5,8 milhões em áreas rurais.
Supondo que o alvo do projeto OLPC é o ensino fundamental, estamos falando de mais de 30 milhões de laptops – a US$ 100 cada um, seriam mais de US$ 3 bilhões – ao câmbio da data em que escrevo, aproximadamente R$ 6,6 bilhões (para incluir também o ensino médio, seriam mais nove milhões de estudantes). Os defensores da idéia sugerem que se inicie o projeto pela compra de um milhão de laptops (ao custo total de US$ 100 milhões) – um número "mágico" que tem sido o mesmo para Índia, Argentina, Nigéria, Brasil... em mais uma demostração da distância que aquele laboratório interplanetário está das nossas realidades. Se você, leitora, desconfia de todo projeto educacional que comece pela compra de equipamento em grande escala, você não está sozinha.
Seria uma "fase piloto" – já que, no caso do Brasil, o brinquedo chegaria a apenas 3,3% das crianças do ensino fundamental. Vamos supor também, é claro, que essa fase piloto passe em todos os testes – conectividade, manutenção e durabilidade, capacitação dos professores, preparação e distribuição eficaz dos conteúdos via sistemas online cobrindo todas as áreas do experimento, comprovação de efeitos significativamente positivos no aprendizado em comparação com outras alternativas de inclusão digital nas escolas etc etc. Para isso, antes de sequer negociar a compra dos laptops, o projeto já teria que ter sido iniciado no país. Afinal, planejar e garantir a conectividade, criar um sistema de manutenção, organizar o sistema de distribuição e acompanhamento, capacitar os professores para não serem vítimas de mais um brinquedo educativo, montar os conteúdos orientados à nova plataforma etc, etc... Tudo isso leva muito tempo, mesmo com um projeto bem planejado e com recursos já aprovados (o que não é, de nenhum modo, o caso).
No caso da conectividade, Negroponte parece imaginar que países do Sul são como Cambridge (ou o Maine), em que a conectividade à Internet está sempre logo ali, quase que em qualquer luqar, e basta montar uma rede em malha[1] com os laptops que rapidamente essa rede achará um ponto de conexão com a Internet a baixo custo e com velocidade suficiente. Como não estamos no Maine, Lee Felsenstein confronta a fantasia com a dura realidade: “Redes em malha dependem da maioria dos enlaces estarem em operação sempre que houver necessidade de conectividade. Estamos assumindo que todos os laptops estarão em funcionamento, especialmente lembrando do esforço considerável para manter a bateria carregada? É muito mais provável que os laptops terão conectividade somente em bairros de cidades onde há energia elétrica confiável e onde há banda larga disponível via acesso sem fio.”[2]
A pergunta inevitável: que outras iniciativas no mesmo valor, de US$ 3 bilhões, poderiam ser formuladas como estratégia para a inclusão digital do ensino fundamental?
Um exemplo numérico para situar a escala. Admitamos um projeto estratégico para conectar 30% das escolas públicas (ensino fundamental e ensino médio) em áreas de menor IDH, para instalar e manter em cada uma um telecentro educacional conectado permanentemente à Internet, com 10-40 estações de trabalho cada (em função do tamanho de cada escola). Baseado em plataforma de software livre, e estimando um custo anual de operação e manutenção de R$ 20-30 mil por escola (incluindo sistemas de apoio online, capacitação, monitoramento, logística etc.), e estimando o dobro disso para o primeiro ano (custo inicial de implantação), o projeto todo, incluindo custos de manutenção por três anos, custaria, ao câmbio de agora, US$ 3 bilhões.
Os valores da simulação acima consideram que na maioria dos casos os telecentros poderão aproveitar espaços e infra-estrutura já existentes nas escolas. Nosso exemplo, baseado em custos reais com projetos de telecentros em várias regiões do Brasil, mostra que os recursos que seriam gastos no brinquedo educativo de Negroponte para que este chegue a todas as crianças do ensino fundamental dariam para instalar e manter, com qualidade, telecentros bem conectados em mais de 60 mil escolas do ensino fundamental do país por três anos. Ou pelo menos instalar um telecentro conectado à Internet em todas as escolas públicas do país.
Note que não estou sugerindo que se gaste US$ 3 bilhões desta forma – apenas uso o exemplo acima para compreender a magnitude do problema.
Os defensores do brinquedo educativo insistem que a escola pode estar conectada e ter um telecentro, mas sem o laptop elas não terão acesso ao recurso quando forem para casa. Esse é um argumento relevante de qualquer projeto de inclusão digital nas escolas. Mas a solução passa por gastar US$ 3 bilhões em laptops?
Pensemos em uma alternativa para o caso do Brasil, lembrando que temos quase US$ 3 bilhões "encalhados" no Tesouro, de um fundo para universalização de acesso (o triste Fust), que cresce à razão de cerca de pelo menos US$ 250 milhões por ano.
Um computador conectado via rede de malha ou a um ponto de acesso (via uma rede comunitária onde não houver conectividade adequada a preço razoável – parte de um projeto nacional abrangente de inclusão digital) fica em casa e pode servir às crianças e à família dia e noite – mesmo quando a criança está na escola, alguém da família poderá utilizar o recurso. E em casa o equipamento estará menos sujeito a riscos óbvios (quebra, roubo). Vamos supor que cada família possa ter um computador (completo, incluindo funcionalidade para conexão por rádio digital, funcionando com software livre) cujo custo é hoje da ordem de US$ 300 – a maioria das famílias de menos recursos, lembremos, tem mais de um filho, e esse computador servirá às crianças e a outros membros da família para acesso a todos os outros serviços via internet (acesso a serviços de e-governo, consulta a informações, e-mail etc.).
Se pensarmos em um computador por família, lembrando que, de acordo com pesquisas de nosso Comitê Gestor da Internet, mais de 30% das famílias brasileiras não podem comprar um computador qualquer que seja seu preço, e imaginando que estamos falando de aproximadamente oito a dez milhões de famílias correspondentes às 33,5 milhões de crianças no ensino fundamental, o custo total de equipamento em casa seria de pouco mais de US$ 2,5 bilhões, ou cerca de R$ 5,5 bilhões. Imaginando um subsídio progressivo em que 30% receberiam um computador a custo zero para a família, o valor do subsídio para as famílias mais pobres seria da ordem de US$ 720 milhões – algo em torno de R$ 1,5 bilhões para garantir um computador para todas as famílias que não podem gastar um centavo nisso.
Já há programas implantados de financiamento diferenciado de computadores que, se aprofundados, incluindo o subsídio progressivo, permitiriam que todas as famílias tenham o equipamento em casa. Com uma vantagem adicional imensa em relação ao laptop da OLPC: famílias permanentemente conectadas com equipamento em casa.
Por fim, se pensarmos em um programa estratégico que assegure telecentros em todas as escolas, bem conectados à Internet (o que implica em um plano nacional efetivo de conectividade para todos os municípios, sem esperar o “mercado”), combinados com um programa de acesso que garanta um computador conectado para cada família, estamos falando também de um grande programa de alavancagem industrial do setor de informática no país. Inconcebível seria uma política pública que não contemplasse tecnologias abertas e software livre – e isso também significaria uma crucial alavancagem do desenvolvimento de software no país.
Mas, de novo, o que fizemos acima foi apenas um excercício que, bem mais refinado, seria parte de outra visão – a de um plano estratégico de alavancagem das TICs para o desenvolvimento humano, que mencionamos no início deste texto. Sem essa visão sacramentada em uma política pública nacional que envolva a comunidade local (prefeituras, entidades civis e empreendores locais), não podemos aceitar que se decida em bastidores uma intervenção com um custo elevado e que pode muito mais prejudicar do que auxiliar mesmo quem puder receber o laptop.
Nesta situação, pergunto: pelo menos no caso do Brasil, a quem realmente beneficia o brinquedo educativo de Negroponte? Quem sabe, no futuro, cheguemos a um grau de desenvolvimento em que as famílias poderão oferecer a suas crianças os melhores instrumentos de aprendizado, e que cada escola possa efetivamente garantir que cada estudante tenha sua própria estação de trabalho – mas até lá o laptop de Negroponte será apenas história...
1. Computadores em uma rede de malha (mesh network) funcionam como elementos de interconexão, criando vários caminhos de conexão de qualquer dos computadores da rede até um ou mais pontos de acesso a outra rede (por exemplo, a Internet).
2. Lee Felsenstein, Problems with the OLPD laptop, 10-nov-2005, http://fonly.typepad.com/fonlyblog/2005/11/problems_with_t.html.
* Carlos A. Afonso
** Texto atualizado em 8 de novembro de 2006.
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