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Reconstruindo a democracia

Autor original: Luísa Gockel

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Reconstruindo a democracia
Foto: www.un.org

O primeiro país africano a tornar-se independente, em 1847, não teve um destino diferente da maioria dos Estados do continente. A decisão de delimitar as fronteiras da Libéria, por parte dos norte-americanos, seguiu a regra dos outros países vizinhos e ignorou qualquer afinidade ou diferença étnica entre as comunidades locais. A partir daí, a história seguiu seu curso tortuoso, que culminou numa sucessão de governos autoritários. Mais recentemente, o país mergulhou numa guerra civil que durou 14 anos e só terminou em 2003, com a prisão do presidente Charles Taylor, acusado de cometer crimes de guerra.

Por trás da história dramática, existe, no entanto, um país que vem lutando desde então para se reerguer e voltar à normalidade. A eleição da presidente Ellen Johnson-Shirleaf, em novembro do ano passado, trouxe esperança à população liberiana. Os esforços de reconstrução têm requerido ajuda internacional constante. O país foi incluído na lista “Dez histórias de que o mundo deveria ouvir falar mais”, divulgada anualmente pelo Departamento de Informação Pública da Organização das Nações Unidas (ONU). O objetivo é atrair a atenção da mídia internacional e, conseqüentemente, de possíveis financiadores e doadores.

De acordo com o coordenador da ONU para as operações humanitárias na Libéria, Jordan Ryan, o momento requer muita atenção. Segundo ele, a comunidade internacional estabeleceu mecanismos de financiamentos bem definidos para intervenções humanitárias em situações de emergência. Para processos de longo e médio prazos, no entanto, os recursos são bem mais escassos. “Nós constantemente experimentamos uma situação de diminuição dos fluxos de ajuda humanitária, antes que as condições para um desenvolvimento de larga escala sejam criadas”, afirma Ryan.

Alguns desafios que o país enfrenta são realmente duros. Restabelecer a infra-estrutura básica para a população, como o fornecimento de água e assistência medica, é uma das tarefas diárias e urgentes que organizações internacionais e o governo do país têm enfrentado. Segundo Ryan, esse é um dos motivos pelos quais a situação do país não pode ser esquecida só porque a democracia foi restabelecida. “É importante que a mídia internacional continue acompanhando, enquanto a Libéria trabalha para consolidar a paz no país. Especialmente porque o sucesso ou o fracasso desse esforço vai afetar não só a Libéria, mas toda a região”, defende o representante da ONU.

Rets - O senhor acredita que consolidar a paz é mais difícil do que lidar com um país em guerra civil, em termos de ajuda financeira internacional?

Jordan Ryan – A ajuda financeira internacional é muito necessária, tanto para emergências humanitárias quanto para o processo de reconstrução da paz e do desenvolvimento. Felizmente, a comunidade internacional estabeleceu mecanismos de financiamento bem definidos para intervenções humanitárias em situações de emergência. Alguns exemplos são o Departamento de Assuntos Humanitários, o Processo de Apelo Consolidado e o Fundo Central de Alívio Emergencial. Em termos de desenvolvimento a longo prazo, algumas fontes bem estabelecidas de assistência são as do Banco Mundial, do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas e a ajuda bilateral de Estados doadores.

O montante de assistência ao desenvolvimento ministrada aos países em crise geralmente é pequeno, até que mostrem um completo retorno à estabilidade e à disciplina fiscal. Dessa forma, nós constantemente experimentamos uma situação de diminuição dos fluxos de ajuda humanitária antes que as condições para um desenvolvimento de larga escala sejam criadas. É aí que as brechas no financiamento aparecem.

Num cenário pós-conflito, isso significa que a difícil tarefa de consolidar a paz aparece no momento em que as fontes disponíveis estão bem limitadas. Uma atenção bem maior é necessária para gerenciarmos essa brecha, e os doadores também precisam entender que a difícil tarefa de alcançar a paz pode ser prejudicada pela falta de ajuda para a sua sustentação.

Rets – Quanto está sendo doado pela comunidade internacional para enfrentar os desafios de reconstrução do país?

Jordan Ryan – O total do financiamento humanitário e de reconstrução prometido para o período que vai de fevereiro de 2004 a março de 2006 tem sido estimado em US$ 1,1 bilhão, dos quais cerca de US$ 946 milhões foram realmente recebidos. Desse montante, mais de US$ 700 milhões foram destinados à revitalização de atividades sociais, incluindo desmobilização e reintegração de guerrilheiros, assistência às populações deslocadas, serviços emergenciais de saúde e reinício da produção agrícola.

À medida que a Libéria continua a se estabilizar, a atenção está mais focada agora nos projetos de reconstrução a médio e longo prazos, incluindo rodovias, geração de energia e sistemas que provêm serviços sociais básicos. Para isso, será preciso um investimento significativo de capital – estimado em bilhões, mais do que em milhões de dólares. Entretanto as instituições financeiras internacionais e a maioria dos doadores bilaterais que vão finalmente prover essa assistência não o farão até que a Libéria limpe a sua atual dívida de US$ 3,7 bilhões. Nós prevemos, portanto, que num futuro imediato o total da ajuda internacional para a Libéria será uma pequena parcela dos recursos necessários para a reconstrução do país.

Rets – Quais são as medidas mais urgentes que devem ser tomadas no país?

Jordan Ryan – As Nações Unidas publicaram recentemente a avaliação de conjuntura da Libéria, que identifica os maiores desafios que o país enfrenta. A avaliação se baseia na questão dos direitos para identificar esses desafios. A esperança é que se possa avançar na proteção dos direitos sociais, econômicos e culturais de todos os liberianos, ajudando o país a alcançar os Objetivos do Milênio. As demandas mais urgentes incluem a reativação da economia com foco na geração de emprego, na melhoria da segurança alimentar através da melhor produção e utilização dos alimentos, no restabelecimento dos sistemas nacionais de saúde e educação e na reconstrução da infra-estrutura básica, como estradas, fornecimento de água e eletricidade.

Desenvolvendo a análise de conjuntura da Libéria, nós tentamos direcionar o relatório para as causas do conflito no país. Propusemos medidas que promovem a reconstrução nacional por meio de esforços que assegurem que não haverá futuros surtos de violência, como a reconstrução dos laços entre as comunidades locais, o bom uso dos abundantes recursos naturais do país, o estímulo à participação na tomada de decisões, a construção de uma boa governança e o fortalecimento da lei [o relatório está disponível online em www.undg.org].

Rets – Há muitos refugiados liberianos nos países vizinhos? Existe um plano para trazê-los de volta?

Jordan Ryan – Em vários países no oeste da África, existem cerca de 144 mil refugiados liberianos, de acordo com estimativa do Alto Comissariado para Refugiados das Nações Unidas (UNHCR). O UNHCR já ajudou mais de 78 mil a voltarem para a Libéria desde novembro de 2004 e tem um plano para a maioria daqueles que permanecem fora do país, para que retornem até 2008. A presidente Ellen Johnson Sirleaf tem encorajado fortemente todos os refugiados a voltar e ajudar na reconstrução do país.

Rets – Que condições as Nações Unidas estabelece para suspender as sanções econômicas ao país?

Jordan Ryan – No caso dos diamantes e da madeira, o Conselho de Segurança condicionou a suspensão das sanções ao estabelecimento de mecanismos de controle nacional desses recursos, para prevenir que sejam extraídos de forma ilegal e utilizados para financiar atividades criminosas ou que alimentem o conflito. Isso requer a introdução de novas políticas nacionais, leis e a regulamentação que vai assegurar o gerenciamento responsável dos recursos. Também são necessárias assistências técnica e financeira para implementar essas novas medidas.

Em 20 de junho de 2006, o Conselho de Segurança achou que as medidas tomadas até aquele momento no setor madeireiro eram suficientes para permitir uma suspensão provisória das sanções para a exportação de madeira. Mas as sanções para os diamantes ainda não foram suspensas e dependem, em parte, de a Libéria adotar o critério para aderir ao Processo de Certificação Kimberly, que requer que seus países participantes introduzam sistemas que garantam a transparência na produção, na venda, na exportação, na importação e no trânsito de diamantes brutos. Embora o governo da Libéria já tenha aderido ao estatuto KPCS, em outubro de 2004, algum trabalho ainda precisa ser feito para assegurar que essas medidas sejam completamente seguidas.

Rets - Qual a situação atual do povo liberiano?


Jordan Ryan - A fase de emergência humanitária da crise na Libéria acabou, mas a vida continua muito difícil para a maior parte da população. A Libéria é hoje um dos países mais pobres do mundo, em termos de renda per capita e sequer aparece no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, devido à falta de dados. No entanto, em 1999, bem antes dos episódios de violência recentes, já era o penúltimo país da lista. A expectativa média de vida está estimada em 39 anos, a taxa de desemprego é de 85% e quase 50% da população sobrevive com menos de US$ 0,50 [equivalente a pouco mais de R$ 1] por dia, o que as Nações Unidas classificam como “pobreza extrema”.


Rets - E quanto às crianças?


Jordan Ryan - A situação das crianças era particularmente difícil durante o conflito, quando a escassez de alimentos provocou desnutrição e raquitismo e a falta de acesso a serviços de saúde preventiva foi responsável por uma série de mortes. Muitas crianças também foram afetadas diretamente pela violência, vítimas de abusos como tortura e estupros ou recrutadas como soldados, quando acabavam, elas mesmas, tendo de cometer crimes como esses. Nessa época, o sistema escolar foi quase destruído. Atualmente a taxa de alfabetização permanece inferior a 40%.


A situação melhorou significativamente, mas muitos problemas ainda permanecem. A mortalidade infantil ainda é alta, principalmente por conta da desnutrição e da malária, além de outras doenças que preocupam o frágil sistema de saúde do país. Devido à miséria, muitos pais não têm renda suficiente para sustentar suas famílias. O resultado é que muitas crianças acabam tendo de contribuir de alguma forma, seja vendendo pequenos animais ou fazendo tarefas simples como engraxar sapatos. Nessas circunstâncias, as meninas acabam ficando particularmente vulneráveis à exploração sexual e muitas vezes encaram a prostituição como único meio de sobrevivência. E mesmo nas famílias em que os pais têm condições de pagar pela educação dos filhos, poucas são as meninas que freqüentam as escolas, o que provoca um desequilíbrio nas salas de aula.

Estamos fazendo o máximo possível para solucionar esse problema, oferecendo, por exemplo, mantimentos para as meninas matriculadas nas escolas. Dessa forma, elas podem levar o alimento para casa e dividi-lo com suas famílias.


Rets - Como estão os esforços políticos para construir a democracia na Libéria?

Jordan Ryan - Depois de anos de má administração e guerra, as instituições responsáveis pela gestão do país sofrem com falta de capacidade e de recursos básicos, piorada pela corrupção generalizada. A atual Constituição estabelece uma estrutura de governança relativamente centralizada e concede muito poder à Presidência. A legislação nacional precisa ser modificada para deixar clara a relação entre os diferentes níveis de governo (central e regional).

Apesar dessas dificuldades, em outubro do ano passado, a Libéria conseguiu realizar com êxito eleições democráticas, que foram classificadas, por observadores internacionais, como livres e justas. Atualmente, uma Comissão de Reforma de Governança foi criada para fazer avançar o processo de descentralização do poder, tanto por meio de emendas à Constituição quanto através da promoção de maior engajamento político da população. As Nações Unidas estão apoiando esse processo por meio das Equipes de Apoio dos Condados, que integram atividades de várias agências das Nações Unidas para desenvolver, junto às administrações locais, a capacidade de acessar, planejar e mobilizar recursos.

Um desafio-chave é conseguir que grupos tradicionalmente marginalizados – como mulheres e jovens – participem integralmente do processo de tomada de decisões políticas. Diretamente relacionada a isso está a promoção de mais transparência na esfera pública. Cidadãos e cidadãs da Libéria têm de aprender a cobrar transparência e prestação de contas de seus líderes, o que inclui o uso da mídia como um mecanismo de fiscalização ativo e responsável.

Rets - O senhor acredita que a situação da Libéria está sendo negligenciada pela mídia internacional?

Jordan Ryan - A situação na Libéria foi incluída na lista "Dez histórias de que o mundo deveria ouvir falar mais", divulgada pelas Nações Unidas em junho, para garantir que o país fique sempre no radar da mídia internacional. Apesar de alguns eventos importantes – como as eleições de 2005, a posse do novo presidente em 2006 e a prisão do ex-presidente Charles Taylor – terem sido amplamente abordados pela mídia internacional, o assunto Libéria está longe de acabar.

Grandes desafios ainda serão enfrentados, na medida em que o país entra em uma nova fase de reconstrução e desenvolvimento. A reintegração de ex-combatentes, a criação de empregos, a reabilitação e a reconstrução da infra-estrutura que foi destruída durante a guerra, o trabalho da Comissão da Verdade e Reconciliação e o estabelecimento de mecanismos que acabem com as sanções estão entre os muitos desafios que o país enfrenta neste período pós-guerra. É importante que a mídia internacional continue acompanhando esta situação, enquanto a Libéria trabalha para consolidar a paz no país. Especialmente porque o sucesso ou o fracasso deste esforço vai afetar não só a Libéria, mas toda a região.

Luísa Gockel

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