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Povos indígenas lutam por reserva no ES

Autor original: Luísa Gockel

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Povos indígenas lutam por reserva no ES
Foto de Cacá Lima

“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. É evocando o artigo 231 da Constituição brasileira que os povos tupiniquim e guarani do Espírito Santo lutam pela demarcação de mais de 18 mil hectares de terra. O trecho do artigo foi usado numa carta aberta divulgada no dia 15 de setembro pelos povos indígenas, contra “informações deturpadas difundidas pela empresa Aracruz Celulose”.

Segundo as lideranças indígenas, a Aracruz ocupa as terras reivindicadas por esses dois povos há quase 30 anos. A Fundação Nacional do Índio (Funai) já elaborou três relatórios ao longo desse tempo, reafirmando a legitimidade do direito dos indígenas a essas terras. De acordo com o cacique Paulo Tupiniquim, da associação indígena Apoimi, o relatório da Funai aponta que, dos 18.070 hectares reivindicados, 11.009 ainda se encontram em posse da Aracruz.

Além de ocupar as terras que seriam de seus ancestrais, o cacique acusa a empresa de ter participado de uma ação violenta em conjunto com a Polícia Federal. Além das 13 pessoas feridas, ele diz ter sido torturado e teve um braço quebrado. Segundo ele, teria ficado ainda 18 horas preso numa casa de hóspedes da empresa. A Aracruz negou as acusações, garantindo que não participou da ação. A Polícia Federal divulgou nota, na época, afirmando que toda a ação policial foi acompanhada por um Oficial de Justiça e representantes da Funai.

A PF afirma ainda que na Aldeia Ouro a desocupação transcorreu de forma pacífica, mas na aldeia Olho D´água, a segunda equipe de policiais foi surpreendida pela vinda de aproximadamente 200 índios provenientes de aldeias próximas. "Esses outros indígenas já chegaram armados de tacapes, flechas e pedras, que foram lançados contra os policiais. Oito viaturas oficiais foram danificadas. Os policiais foram forçados a utilizar armamento não-letal e bombas de efeito moral como último recurso de defesa pessoal", relata o comunicado da PF.


O líder indígena conta que a empresa adquiriu as terras através de um acordo com o governo. “Ela pagaria as terras em parcelas ao longo de 20 anos, e não se falaria mais no assunto de demarcação. Os caciques chegaram a ir a Brasília, mas estavam sem advogados e mal-assessorados e foram forçados a aceitar esse acordo”, diz. A empresa, no entanto, desmente, afirmando que adquiriu as terras na década de 1980, direto com os proprietários. Em fevereiro do ano passado, as lideranças indígenas realizaram uma assembléia geral e decidiram se articular para pressionar o governo e a Funai pela demarcação das terras.

O último relatório foi entregue há duas semanas pela Funai ao Ministério da Justiça, que informou que no prazo de um mês dará o parecer final. Em visitas ao estado no início do ano, o presidente Lula e o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, prometeram a homologação das terras até o fim deste ano e lamentaram os episódios violentos relatados pelos indígenas promovidos pela Polícia Federal e pela Aracruz. “Vamos continuar lutando tanto para conseguir as terras quanto para sermos respeitados. Esperamos que a homologação não seja adiada para depois das eleições. Estamos acreditando que o governo vai cumprir a Constituição”, diz Tupiniquim.

A empresa mantém uma página na internet só com informações sobre o conflito. A Aracruz afirma que, como a disputa não pôde ser resolvida pelo diálogo, deve ser pela Justiça, que é o único caminho para alcançar segurança jurídica. Ainda de acordo com o site da empresa, a Aracruz “já declarou ter documentos e dados que comprovam que ela não ocupa e nunca ocupou terras indígenas, assim como nunca tirou ou expulsou indígenas de suas terras e sempre adquiriu as mesmas de forma legal”. E acusa a Funai de ter elaborado um laudo frágil e controverso.

A empresa usa ainda referências históricas para embasar seus argumentos: “o mapa do livro Mem de Sá - Terceiro Governador Geral (1557-1572), do historiador Herbert Ewaldo, mostra onde estavam os índios do Brasil no século 16. A área pleiteada nunca foi habitada por tupiniquins, que estavam a 140km de distância, ao norte do rio Cricaré, atual Rio São Mateus. Ao sul, ficavam os goitacazes, inimigos históricos dos tupiniquins”. O mapa pode ser acessado em www.aracruz.com.br/questaoindigenanoES/index.html.

Rets – Como começou a luta pela demarcação dessas terras?

Paulo Tupiniquim - Estamos na terceira etapa da luta que começou em 1978 quando foi demarcado o primeiro pedaço de terra. A Funai já fez três estudos que comprovaram que a terra é indígena. Estamos reivindicando 13.579 hectares, mas o processo está desde 1998 nas mãos do Ministério da Justiça, que chegou a diminuir para 2.561 hectares. Muito menor do que realmente temos direito. Mas em 1993 houve um pedido de ampliação do território.

Na época, foi feito um acordo com a Aracruz. Ela pagaria as terras em parcelas ao longo de 20 anos, e não se falaria mais no assunto de demarcação. Os caciques chegaram a ir a Brasília, mas estavam sem advogados e mal-assessorados e foram forçados a aceitar esse acordo.

Rets – E quando vocês decidiram se reorganizar?

Paulo Tupiniquim - Em fevereiro de 2005, realizamos uma assembléia geral, começamos a rearticulação e, desde maio do ano passado, entramos na autodemarcação. A gente conhece o limite do nosso território. Fizemos um picadão [derrubaram os eucaliptos] e reconstruímos, em junho de 2005, as duas aldeias que tinham sido destruídas.

Rets – Houve violência em algum momento?

Paulo Tupiniquim - Cinco famílias ficaram morando no local. A Aracruz entrou com o pedido de reintegração de posse em dezembro do ano passado. Em janeiro de 2006, uma ação conjunta da Polícia Federal e da Aracruz tirou todo mundo de lá, feriu e torturou as pessoas. Deram-me voz de prisão, me torturaram e quebraram meu braço. Fiquei 18 horas preso, e não foi numa delegacia. Foi numa casa de hóspedes da Aracruz. O saldo disso foram 13 pessoas machucadas. No dia seguinte, voltamos para reconstruir as aldeias, mas não fomos morar lá.

Rets – Como está hoje a situação das terras?

Paulo Tupiniquim - Em fevereiro deste ano, o presidente Lula veio aqui no estado e conseguimos uma reunião com ele. Ele lamentou o ocorrido e disse que ia ajudar. O ministro Márcio Thomaz Bastos veio depois e disse que ia fazer a portaria e até dezembro desse ano o Lula iria homologar as terras.

Foi pedida uma complementação dos três relatórios da Funai que já existiam. A Aracruz tinha 120 dias para contestar esse relatório. Ficamos quietos, esperando. Eles fizeram a contestação com afirmações mentirosas. Disseram até que no Espírito Santo não tem índio. A Funai fez um relatório muito bom. Conseguiu resumir os 35 volumes em apenas três itens e entregou com atraso ao ministro, há duas semanas.

Fizemos ações para pressionar a entrega do relatório. Derrubamos os eucaliptos da área e colocamos fogo. Fizemos exatamente o que eles fizeram quando chegaram: expulsaram as pessoas e colocaram fogo. Desde o início do processo, estamos fazendo essa campanha de pressão. Além disso, chegaram cartas do mundo todo para o ministro, de pessoas que se solidarizam com a causa indígena.

Rets – Sabemos que a plantação de eucalipto é muito agressiva para o solo. Qual é o nível de degradação do local?

Paulo Tupiniquim - O eucalipto degrada de tal maneira que é preciso trabalhar muito a terra para produzir alguma coisa. Além disso, os córregos estão mais secos. Existe apenas um rio limpo que abastece não só as aldeias, mas a cidade também. Nós dependemos muito dele.

Rets – E onde estão as famílias que moravam lá?

Paulo Tupiniquim - As famílias estão em duas aldeias próximas. Mas eles não têm espaço para plantar, está tudo apertado. O mais importante para a gente é poder trabalhar a terra e garantir a nossa sustentabilidade. É uma luta de povos que vêm sofrendo pelo preconceito. Estamos lutando pelo nosso direito. Não queremos tirar o direito de nenhum cidadão. Temos, como todo mundo, direito à saúde e à nossa cultura. Esperamos que o povo se sensibilize com a causa e que possamos garantir o que está escrito na Constituição.

Rets – E como é a relação dos indígenas com os moradores da cidade?

Paulo Tupiniquim - Estamos nos sentindo muito humilhados. Brigamos pelos nossos direitos como qualquer cidadão, mas, com tudo isso, os nossos filhos não podem nem ir à escola com a nossa pintura corporal, que a professora manda voltar. O gerente do supermercado também não deixa entrar. Queremos denunciar esse racismo contra a gente.

Na cidade de Aracruz, sempre teve índio, e hoje as pessoas dizem que no Espírito Santo não tem índio, que os índios roubam as terras. Mas não vamos nos calar. Vamos continuar lutando tanto para conseguir as terras quanto para sermos respeitados. Esperamos que a homologação não seja adiada para depois das eleições. Estamos acreditando que o governo vai cumprir a Constituição.

Luísa Gockel

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