Você está aqui

A arte da associação

Autor original: Mariana Hansen

Seção original: Novidades do Terceiro Setor

Lançado há um mês, o livro “Economia solidária: de volta à arte da associação” aborda a retomada do associativismo nas relações econômicas a partir da crise do assalariamento. Resultado da tese de doutorado em ciência política do coordenador do Programa de Economia Solidária do Ibase, João Roberto Lopes, a publicação revela a existência de 1,5 milhão de trabalhadores associados, em mais de 15 mil entidades, gerando anualmente cerca de 6 bilhões de reais em todo o país.

De acordo com João Roberto, o sentido da economia solidária já estava presente em diferentes formas de organização populares e comunitárias, voltadas para geração de trabalho e renda, antes mesmo de sua acepção. “A definição de um campo que reivindica a participação sobre os mecanismos de produção e distribuição da riqueza é desenvolvida pela primeira vez na França, só em 1994, e no Brasil, em 1996, pelo professor Paul Singer, em um artigo na Folha de São Paulo”, explica.

Para o autor, a prática da auto-organização dos trabalhadores, que marcou o início do movimento operário, acabou sendo domesticada pela consagração de direitos sociais referidos no emprego assalariado. “A crise do emprego assalariado estável e a flexibilização dos direitos fizeram com que a prática associativa fosse retomada, pondo em questão a própria verticalização característica do movimento sindical de base reivindicatória e que não questiona a divisão entre capital e trabalho”, ressalta.

Outro ponto apontado por João Roberto é que o associativismo, que teve grande efervescência nos anos 1980, como as associações de moradores, é retomado não no campo das lutas por melhorias nos serviços públicos, mas no campo das relações econômicas. Ou seja, ele incide exatamente na economia de mercado e não tanto na economia pública, representada pelo Estado. “Isso não significa que o Estado não tenha importância, mas o fato é que a economia solidária reivindica a participação nos mecanismos de produção e distribuição da riqueza. Não se trata de corrigir as 'externalidades' do mercado, mas de reconfigurar o próprio mercado, o que exige, por sua vez, um outro Estado”, esclarece.

É importante ressaltar que a associação é retomada como forma de organização democrática por excelência, orientada por regras de igualdade baseadas no compartilhamento das decisões e resultados. Segundo João Roberto, “a vida associativa representa a possibilidade de abertura para o ‘outro’, como fonte de aprendizagem e alargamento no campo de possibilidades do indivíduo”. Essa característica da economia solidária teria ocasionado não só uma interdependência entre os trabalhadores e uma complementariedade, mas também propiciado um crescimento coletivo e individual.

Em pesquisa realizada pelo autor, através do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) em parceria com a Associação Nacional dos Trabalhadores e Empresas de Autogestão, constatou-se que 63% dos associados melhoram seu comportamento. Destes, 19% ficaram mais tranqüilos e bem-humorados; 18%, mais responsáveis e 16%, mais cooperativos e solidários no empreendimento. E as novas normas garantiram uma diferença de apenas três vezes entre a maior e a menor remuneração dos associados, o que, para João Roberto, é fundamental para gerar igualdade e reciprocidade entre os trabalhadores.

Mais uma questão observada é que o associativismo de base econômica é retomado em um contexto singular, em que os indivíduos se encontram desenquadrados ao perderem referências tradicionais importantes para a constituição de suas identidades. “Isso leva a um sentimento de insegurança, uma espécie de mal-estar subjetivo, mas também traz possibilidades de abertura para o ‘outro’, para a construção de forma autônoma de novos sentidos e significados para a própria vida”, diz João Roberto.

Sobre as pessoas que atuam no mercado de trabalho informal, o autor explica que as diferentes formas de trabalho não-assalariado representariam um campo possível para a ampliação da economia solidária. E lembra que a questão da “informalidade” diz respeito a uma situação de inadequação da legislação existente à realidade do trabalho não-assalariado. “É importante avançarmos em uma legislação que reconheça as particularidades dos empreendimentos solidários, favorecendo o seu reconhecimento como alternativa de inserção sócio-econômica”, observa.

Para João Roberto, não se pode desconhecer a fragilidade econômica desses empreendimentos quando consideramos o meio adverso de um mercado predominantemente desregulado, em favor do ganho de alguns poucos. Mas, ressalta, esses empreendimentos têm mostrado uma capacidade de organização dos próprios trabalhadores na construção de novos caminhos para geração de renda e trabalho. “Sem dúvida, a grande novidade da economia solidária é o seu conteúdo político, isto é, trabalhadores estão se envolvendo em ações coletivas para construir alternativas de produção e comercialização. Estas cumprem uma função social fundamental, pois os resultados são compartilhados, ou seja, atuam em favor da distribuição da renda”, diz.

Quanto à convivência da economia solidária com o sistema econômico vigente, João Roberto explica que existe um debate: a economia solidária representaria um setor da economia que conviveria com outras formas de economia de forma equilibrada e combinada? Ou as práticas e os valores da economia solidária contestariam e exigiriam uma superação do sistema capitalista? Para o autor, só o tempo resolverá esse dilema, mas as práticas e os valores na cooperação e na autogestão se contrapõem frontalmente à institucionalidade capitalista, baseada na maximização de ganhos e na competição, assim como no individualismo exacerbado, que vê no outro uma ameaça à sua liberdade.

João Roberto espera que o livro possa contribuir para o debate em torno da economia solidária, ajudando o movimento social a definir melhor os sentidos e significados da prática econômica associada e identificando o papel do governo na inserção e no reconhecimento dessas práticas – como ele pode contribuir e o que precisa mudar. “Por isso tenho a expectativa de provocar e me expor ao debate”, conclui.

Mariana Hansen

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer