Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original:
![]() Ilustração: Carlos Latuff | ![]() |
Fazer desenhos e charges sobre o conflito histórico entre israelenses e palestinos é uma constante no trabalho do cartunista brasileiro Carlos Latuff. "A minha discussão é pontual: pelo fim da ocupação dos territórios ocupados pós-1967 e ali instalar um Estado palestino independente", explica. Ao contrário do que muitos pensam, seu interesse pelo assunto não se deve ao sobrenome de origem libanesa, mas à experiência prática de pouco tempo atrás: em 1999, visitou os territórios palestinos ocupados, a convite de uma ONG. Viu, chocou-se e adotou a causa. Nos seus desenhos passaram a figurar críticas ácidas à política israelense e uma compaixão pela situação em que vive boa parte da população palestina nas áreas sob ocupação.
Em uma das mais recentes conseqüências dessa militância artística, o site do Likudnik – grupo ligado ao partido político Likud, da direita israelense – publicou um texto cheio de ameaças ao artista. "Já deviam ter cuidado desse tal de Carlos há muito tempo, de uma maneira ou de outra", diz o site. O próprio Latuff descobriu a página e fez circular a informação. Apesar de não estarem nosite oficial do partido, as ameaças chamaram atenção e renderam até uma nota oficial da embaixada de Israel no Brasil (veja a íntegra ao lado).
Nesta entrevista, Latuff conta como recebeu a notícia – "não recebi com surpresa, porque sempre houve mensagens ameaçadoras desse tipo" –, conta como começou seu interesse pela questão palestina e diz que não importa se as ameaças se cumprirão ou não: "Meus desenhos têm vida própria", afirma. "Eles não dependem da minha existência física para estarem vivos e circulando pelo mundo".
Rets - Primeiro, sobre as ameaças na página associada ao Likud [partido político de Israel com tendência de centro-direita]. Como vc recebeu a notícia? Já esperava?
Carlos Latuff - Eu não recebi com surpresa porque, ao longo do trabaho que faço em favor dos palestinos desde 1999, sempre houve mensagens ameaçadoras desse tipo, através de blogs, emails ou páginas da internet. Mas o que chama atenção dessa vez é que essa foi feita numa página associada a um partido político em Israel. Apesar de não ser a página oficial do partido Likud, ela está claramente associada a ele. Eu costumo utilizar como exemplo: existe o PFL [Partido da Frente Liberal] e existe a Juventude do PFL. Existe o site de um e de outro. Não quer dizer necessariamente que o site da Juventude do PFL é o site oficial do partido, mas é uma corrente de transmissão. Aqueles que fazem e participam do site estão em concordância com o pensamento do PFL. A mesma coisa seria em relação a essa página chamada Likudnik. Apesar de não ser o site oficial do Likud, está em consonância com seus ideais, sua plataforma etc.
Então não me causa surpresa, porque isso já acontece costumeiramente. Eu descobri fazendo uma pesquisa em um site de busca, o que normalmente faço para descobrir alguma repercussão que haja sobre o meu trabalho. Assim encontrei essa página, que está em hebraico. Pedi a uma amiga que mora em Haifa [Israel] para traduzir, ela passou para o inglês e eu fiz uma nota divulgando esse incidente.
Rets - Houve quem questionasse a legitimidade dessas ameaças, por não estarem na página oficial do Likud. Que tipo de manifestação oficial houve, por parte de qualquer órgão de Israel, que conferisse mais legitimidade sobre o assunto?
Carlos Latuff - O incidente foi abordado em uma matéria do site Comunique-se, que entrou em contato com a embaixada de Israel, perguntando se, diante desse tipo de ameaça, a embaixada poderia garantir a minha segurança. E a nota da embaixada, além de ignorar essa pergunta, endossou a atitude do site do Likudnik. Associaram o artigo em que se diz que "deveriam ter cuidado de mim há muito tempo" à liberdade de expressão, do mesmo jeito que tenho o direito de fazer meus cartuns, que a embaixada de Israel diz que lembram a propaganda nazista [a nota, que pode ser lida na íntegra nesta página, à direita, diz que os cartuns "são cheios de estereótipos comparáveis aos do sistema de propaganda nazista"]. Aliás, é o argumento que todos os que defendem os crimes de Israel têm: dizer que toda crítica aos crimes cometidos pelo Estado de Israel contra os palestinos é anti-semitismo, é ódio aos judeus, é racismo. Então isso também não surpreende.
Mas o interessante é que a embaixada de Israel entende como liberdade de expressão um site que conclama as pessoas a tomarem medidas contra mim e que diz que deveriam ter cuidado de mim há muito tempo, de um jeito ou de outro. Mas aí pergunto o seguinte: se em vez de um site israelense fosse um site árabe ou muçulmano que se referisse dessa maneira a um cartunista judeu, será que a embaixada de Israel teria essa mesma opinião sobre a liberdade de expressão? Essa desculpa da liberdade de expressão também foi aplicada no incidente envolvendo a charge de Maomé, as charges dinamarquesas que esculhambavam com a fé muçulmana, com Maomé e tal [o entrevistado se refere à charge publicada em janeiro no jornal dinamarquês Jyllands-Posten, em que o profeta Maomé vestia um turbante com o formato de uma bomba]. Na verdade, isso é um discurso canalha e hipócrita.
![]() Cartoon "Stop the hunting season" (1999) | ![]() |
Rets - Como e por que começou seu interesse pelas questões do Oriente Médio e, em especial, o conflito entre israelenses e palestinos?
Carlos Latuff - Eu tenho colocado minha arte a favor de várias causas, não apenas dos palestinos. Mas na questão dos palestinos, quando envolve Israel, o estigma é maior e chama mais atenção. Eu tomei conhecimento da questão palestina através de uma visita que fiz em 1999 aos territórios ocupados, a convite da ONG Palestinian Center for Peace and Democracy, durante 15 dias. Eu havia mandado um desenho para eles – o primeiro que fiz sobre a questão palestina – chamado Stop the Hunting Season. Em português, "Encerrem a temporada de caça" [ao lado]. Eles gostaram muito e, a partir disso, entenderam que deveriam me convidar para presenciar aquela realidade. Eles sabiam que, quando eu visse aquilo de perto, iria me compadecer do sofrimento daquele povo e iria me tornar solidário.
Aquela experiência foi determinante para que eu apoiasse a causa palestina. Pois quando se vê a maneira como eles vivem, debaixo de uma opressão, de uma ocupação militar que cerceia os direitos básicos do cidadão... o sujeito não pode ir de uma cidade a outra porque existem bloqueios israelenses. É como se, para ir daqui a Petrópolis [cidade serrana a cerca de 70km do Rio de Janeiro, onde Latuff mora], você tivesse que ter uma autorização por escrito das autoridades argentinas, sem a qual você poderia ser preso.
Ter visto aquilo tudo de perto foi uma experiência muito dolorosa para mim, muito impressionante. E, depois dessa experiência, resolvi colocar meu trabalho em prol da causa palestina, em favor de um Estado palestino legítimo e independente. Porque, da mesma maneira que os israelenses têm direito de viver ali – como apregoam o tempo todo –, da mesma maneira que devem ser reconhecidos como pessoas, esse mesmo direito eles não reconhecem aos palestinos. O direito que eles reivindicam a si mesmos como seres humanos eles não aplicam aos palestinos.
Os palestinos têm esse direito de serem reconhecidos como gente, e não serem abatidos como gado num matadouro. Têm que ter seu Estado independente e conviver ali juntos. O que defendo é exatamente isso: muitos dos que me criticam tentam de má fé arrastar a discussão para a questão do judaísmo, da raça, da religião. E a minha militância não tem absolutamente nada a ver com isso. A minha discussão é pontual: pelo fim da ocupação dos territórios ocupados pós-1967 e ali instalar um Estado palestino independente. Porque os palestinos têm direito também à sua terra. A terra é deles. Eles não estão pedindo nada além do que é justo: a terra deles.
Rets - Essa desconfiança de que sua militância é por causas religiosas pode ter a ver com o seu sobrenome, não?
Carlos Latuff - Isso também é interessante, porque o site do Likudnik comenta que o meu sobrenome é árabe, como se esse fato fosse importante na minha decisão de apoiar os palestinos. Meu sobrenome realmente é libanês, meu avô era do Líbano, mas eu sequer cheguei a conhecê-lo. Ele morreu antes. Não sei árabe, ele não passou essa cultura para os familiares. Ninguém sabe nada disso, não sabemos sequer fazer um tabule [comida tradicional libanesa]. Ou seja, a relação que a minha família tem com a cultura árabe é nenhuma, zero.
Meu compromisso é com os povos oprimidos. Por ter visto aquela realidade de perto é que me tornei um apoiador da causa palestina. E esta é nada mais, nada menos do que uma causa de direitos humanos. Então o fato de meu avô ter sido libanês não faz a menor diferença para o meu entendimento daquela situação.
Rets - Você faz séries inteiras de desenhos sobre a questão palestina. Algum outro tema te desperta esse tipo de interesse, para você dedicar tantos trabalhos?
Carlos Latuff - O meu trabalho tem sido utilizado em diversas causas. Por exemplo, quando houve o levante popular na Bolívia, fiz diversos desenhos. Para a manifestação Grito dos Excluídos [que ocorre anualmente na Semana da Pátria], me pediram um desenho para um panfleto. Fiz também, gratuitamente, como militância. Quando houve a questão dos zapatistas em Chiapas – aliás, foi meu primeiro trabalho de militância artística –, fiz diversas ilustrações. Então me entendo como artista engajado. Para aqueles que me procuram e que acham que meu trabalho pode ser relevante para determinada causa social, vou emprestar meu traço, meu talento, meu trabalho. Já fiz diversos trabalhos contra o McDonald's, contra a WalMart [rede de lojas de departamentos americana]. Fiz recentemente uma série sobre a Coca-Cola, dizendo que ela mata; fiz uma sobre violência policial, entre muitos outros trabalhos. Mas o que chama muita atenção é a questão da Palestina, porque existe um lobby que procura criminalizar, estigmatizar tudo que é crítica ao Estado de Israel.
Rets - Você recebe muitas manifestações ou comentários sobre seus desenhos com o tema Oriente Médio? De que países ou regiões?
Carlos Latuff - Graças a essa mecânica de produzir desenhos copyleft, ou seja, livres de direitos autorais, e espalhá-los através da internet, criou-se o que a gente pode chamar de tráfico de imagem. Alguns exemplos: um sujeito em Cingapura foi a um restaurante árabe de lá e viu, no cardápio, um desenho meu. Outra pessoa, na Bielorrússia, ao comprar um livro sobre zapatismo e anarquismo que estava repleto de desenhos meus. Então recebo muitos comentários, porque os desenhos estão espalhados por todo o mundo, graças a esse princípio de produzir imagens de domínio público, e são divulgados espontaneamente pelas pessoas, reproduzidos em revistas, camisetas, grafites etc.
Rets - O fato de você fazer seus desenhos em inglês, ajudou seus cartuns a terem a visibilidade que têm?
Carlos Latuff - Existe o fato de ser copyleft, o fato de ser em inglês, o fato de ter uma mensagem. Existe a maneira como essa mensagem é apresentada, ou seja, tem uma questão ideológica colocada, que não é uma questão colocada pela chamada "grande imprensa". É o outro lado que não se vê, porque não é mostrado. Acaba que a distribuição pela internet acaba furando bloqueios. Acho que tudo isso contribui para que o material seja de distribuição fácil. Além disso, o fato de ser assinado também ajuda. Já me disseram que eu não teria tanto problemas se o meu trabalho não fosse assinado. Só que o trabalho apócrifo talvez não tivesse tanta repercussão. A partir do momento em que eu assino, dou minha cara para bater e assumo minhas posições publicamente, isso também confere à arte uma credibilidade maior. Agrega valor, para utilizar uma expressão de mercado. O trabalho acaba tendo força, ainda mais porque a pessoa que está por trás daquilo não é uma figura anônima. É uma figura que se coloca publicamente diante dessas questões, que assume publicamente responsabilidade por elas, e isso dá um valor maior ao trabalho.
Rets - Você não dá entrevistas para a grande mídia. Isso é uma ótima valorização para a imprensa alternativa, mas não seria interessante você falar também para a grande imprensa, para que a sua mensagem chegue a mais gente?
Carlos Latuff - O problema não é a mensagem chegar a mais gente. Certamente, se eu falar à grande imprensa, vou atingir mais gente. Mas a mensagem chega distorcida, com as interferências do editor. Essa filtragem de nada me adianta. Um exemplo: em 1999, produzi uma campanha chamada “A polícia mata”, sobre a corrupção policial no Rio de Janeiro e no Brasil. Para divulgar essa campanha, fiz cartazes que foram afixados pelas ruas. Os coladores de cartazes foram detidos pela PM e eu tive que ir à delegacia para prestar depoimento. Aliás, já fui parar na delegacia duas vezes, por causa de desenhos contra a polícia, o que é uma contradição num país que diz defender a liberdade de expressão. Fui contatado pelo RJTV [jornal local da TV Globo] para falar sobre o caso. Fui até lá, fui bem recebido, a entrevista foi muito boa, não tive nenhum problema com o que falei, as perguntas foram pertinentes.
Saí de lá feliz, pensando justamente que mais pessoas conheceriam meu trabalho e minha ação. Quando cheguei em casa e fui ver o jornal, vi que eles colocaram apenas uma resposta no ar. Não mudaram o que falei, mas o problema foi como a matéria contextualizou a minha fala. Me colocaram como um pichador, alguém que tivesse cometido um crime, um baderneiro. Logo depois veio a declaração de um policial, dizendo que eu estava incorrendo num crime. O repórter, então, diz o que prevê o artigo do crime, algo relacionado a desrespeito a funcionário público. No final, o apresentador do telejornal disse qual era a pena para esse crime. Ou seja, ele pareceu o juiz proferindo a sentença. A mensagem passada para o telespectador foi, então, a seguinte: se você decidir protestar contra a violência policial, olha o que pode acontecer, você pode ser preso. Teve gente que pensou que eu estava preso. Ou seja, a grande imprensa distorceu a minha ação, passou uma imagem de que eu era bandido.
Por isso não dou entrevistas para a grande imprensa. Confio nela tanto quanto num cesto cheio de cascavéis. Ela não precisa da minha opinião, pois vai falar de mim o que quer. Então não vou ajudá-los a falar mal de mim. Quero privilegiar a imprensa alternativa, aquela que não tem rabo preso com grandes corporações. Aliás, quando participei do concurso de charges do Irã, fui procurado por grandes agências, como France Press, AP, New York Post, os grandes jornais brasileiros, e todos receberam a mesma resposta: não dou entrevista para a grande imprensa. E vou continuar assim pelo resto da minha vida, pois não confio na grande imprensa.
Rets - Pretende voltar ao Oriente Médio?
Carlos Latuff - Gostaria muitíssimo. Só que, se colocar os pés em Tel-Aviv agora, eu sou preso.
O importante não é saber se essas ameaças se cumprirão ou não, pois meus desenhos têm vida própria. Eles não dependem da minha existência física para estarem vivos e circulando pelo mundo. Essa parada eles já perderam, pois a arte tem vida própria, independente do artista. O mais importante é saber como essas críticas, a um povo inteiro, são silenciadas e Israel fica impune.
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