Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original:
![]() Francisco Whitaker. Foto: arquivo pessoal | ![]() |
Em finais de setembro, Francisco Whitaker recebeu a notícia de que foi vencedor neste ano do Right Livelihood Award, prêmio conhecido como Nobel alternativo. A premiação, concedida anualmente pelo Parlamento sueco - reconhece a trajetória de pessoas ou instituições na luta por justiça social. Um dos idealizadores do Fórum Social Mundial e do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, Whitaker começou sua militância ainda como estudante da Universidade de São Paulo, na qual se tornou membro da Juventude Universitária Católica (JUC). Uma influência inicial para incorporar a luta pela inclusão social, conta Whitaker, foi o teólogo Louis Joseph Lebret. Daí em diante, a inspiração foi a crença no outro mundo possível. Nesta entrevista, ele conta um pouco da trajetória de vida que o prêmio pretende homenagear - o que inclui desde exílio político a dois mandatos como vereador de São Paulo. "Não me candidatei a um terceiro mandato, pois achei que meu lugar melhor era na sociedade civil", explica. Ele comenta também a corrupção política e eleitoral - "é claro que tem jeito"-, e fala apaixonadamente - com um idealismo que esconde seus 75 anos, a serem comemorados em novembro - sobre o Fórum Social Mundial, o processo do qual se considera tio e que, assim como Whitaker, inspira-se na possibilidade de um outro mundo.
Rets - Primeiro, como você recebeu a notícia do prêmio? Foi surpresa?
Francisco Whitaker - Eu já sabia que estava concorrendo ao prêmio, porque ele só é concedido a pessoas indicadas e, para isso, é preciso que a pessoa concorde em ser indicada. Fui indicado por membros de organizações que estavam participando da comissão organizadora do FSM 2004, que aconteceu em Mumbai, na Índia. Naquele ano me perguntaram se eu aceitava ser indicado e aceitei. Isso foi em janeiro de 2004. De lá pra cá, nada aconteceu. No ano passado, deram o prêmio para outras pessoas. E, no começo deste ano, telefonaram para me avisar que estavam avaliando minha candidatura e pediram para informar dados mais atualizados.
Então, uma semana antes do anúncio oficial do resultado, a organização entrou em contato, avisando que o prêmio tinha sido concedido a mim e pedindo para guardar segredo até a data do anúncio para o público.
Rets - O prêmio reconhece pessoas ou iniciativas exemplares na luta por justiça social. De forma resumida, você pode dizer como começou a sua militância – seja política, religiosa etc. Ou seja, quando e por que você começou a lutar por justiça social?
Francisco Whitaker - Nossa.... foi há cerca de 50 anos, quando ainda era estudante secundarista, já me interessava pelos temas. Quando entrei na Universidade de São Paulo, participava da JUC, a Juventude Universitária Católica. E já em 1954, o progrma nacional da JUC foi sobre inclusão social. A geração católica daquela época recebeu uma grande influência de um teólogo francês chamado Louis Joseph Lebret, que escreveu um livro chamado "Renovar o exame de consciência", no qual ele fala do "pecado da omissão" diante da desigualdade, da miséria e do subdesenvolvimento, em geral. Isso colocou um vírus na nossa cabeça, na nossa consciência: que esse é um pecado que não pode ser cometido.
Então, terminando a universidade, já fui trabalhar com planejamento, depois no governo do estado [de São Paulo]. Fui diretor de planejamento da reforma agrária do governo João Goulart, o que me levou a, depois do golpe de 64, trabalhar no planejamento pastoral da CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil]. Em seguida, fui para o exílio, no Chile. Quando o golpe contra o Allende aconteceu, em 1973, não podia voltar para o Brasil. Então fui para a França, onde passei três anos. Lá me envolvi com um projeto chamado "Jornadas internacionais - sociedade superando as dominações", que pretendia exatamente interligar grupos que lutavam contra a opressão pelo mundo afora.
De lá, voltei em 1981. Fui trabalhar com Dom Paulo Evaristo Arns, justamente na área política e social, desempenhando atividades em torno do problema do desemprego – naquele momento foi a primeira vez que houve uma grande crise de desemprego aqui em São Paulo. Em seguida me meti no plenário pró-participação popular na Constituinte, uma coisa muito bonita do povo brasileiro, que levou a que nós conseguíssemos 12 milhões de assinaturas, em torno de 120 emendas ao projeto. Uma dessas emendas foi da criação da iniciativa popular de lei [que permite a criação de uma lei a partir da iniciativa popular, mediante a apresentação de 1 milhão de assinaturas a favor da criação da norma], que em 1999 foi utilizada pela primeira vez, com a criação da lei 9.840, sobre combate à corrupção eleitoral.
Depois desse processo da Constituinte, ainda em São Paulo, fui vereador por dois mandatos pelo PT [Partido dos Trabalhadores], de 1989 a 1996. Depois disso, não me candidatei a um terceiro mandato, pois achei que meu lugar melhor era na sociedade civil. Fui para a Comissão Brasileira de Justiça e Paz; lá me envolvi no Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), que resultou na lei de iniciativa popular que já mencionei. A lei, aliás, está sendo executada cada vez mais intensamente. Depois disso, me envolvi com o Fórum Social Mundial.
No prêmio, eles dizem reconhecer a trajetória de vida da pessoa, mas com ênfase na questão do Fórum Social Mundial. O que me leva a crer que eles quiseram dar mais visibilidade ao próprio Fórum. Então fico contente, estamos todos contentes com essas oportunidade de tornar o Fórum mais conhecido e mais compreendido.
Rets - Você é um dos criadores do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral. E, em época de segundo turno e dossiê, é inevitável perguntar: você acha que a corrupção eleitoral tem jeito?
Francisco Whitaker - Tem, é claro que tem. Evidente que a nossa lei – a 9.840 – não toca em financiamento de campanha. Toca especificamente na compra de votos dos eleitores mais miseráveis – e é necessária a miséria para poder comprar votos – e no uso da máquina administrativa para campanha eleitoral.
Neste ano, entraram para o MCCE entidades muito importantes de promotores e juízes. E está se dando uma ênfase grande às vezes em que as pessoas utilizaram a máquina para serem eleitas. E um detalhe: este ano também entrou no movimento a própria Polícia Federal, que tem dado um apoio muito eficaz.
Rets - Após quase dez anos, que conseqüências práticas o movimento já teve, além da criação da lei de iniciativa popular?
Francisco Whitaker - Já foram cassadas neste período mais de 400 pessoas – prefeitos, vereadores, deputados etc. Ou seja, a lei está tendo o efeito que deve ter: evitar que as pessoas continuem impunes. É uma lei contra a impunidade. E eficaz.
A própria fiscalização eleitoral, atualmente, usa o slogan do MCCE: voto não tem preço, tem conseqüências. Pois é óbvio que os efeitos não são para já. Mas, mesmo assim, no ano 2000, já houve Câmaras de Vereadores que se renovaram 100%. Se os novos são melhores que os anteriores, isso a gente vai ver. Ou seja, é um longo processo. A nossa democracia, cheia de distorções, não muda de uma hora para outra. É um cultura nova que temos que adquirir.
Rets - E quanto à corrupção política, aquela executada após as eleições? Passamos por um período de surgimento de quase um escândalo por quinzena, justamente num governo que se acreditava que ia combater a corrupção com veemência. Por isso a sensação em muitos é de que não há mais jeito. O que você pensa disso?
Francisco Whitaker - Os fatos que aconteceram na gestão de Lula aconteceram fundamentalmente devido ao posicionamento do partido, que entrou progressivamente nessa dinâmica, se igualou a um pragmatismo eleitoral e de governabilidade. Um setor do partido – que vinha sendo , infelizmente, majoritário – considerava que tinha que comprar o Legislativo, senão não seria possível governar. Enquanto isso, outros setores diziam: "não devemos comprar votos; há de se respeitar esse princípio básico". Então essa foi uma tragédia provocada pelo partido.
Vai mudar, porque o fato de o Lula não ter vencido no primeiro turno vai levantar a vontade daqueles que continuaram no partido – porque eu saí [Whitaker se desfiliou do PT em janeiro deste ano, em função das sucessivas denúncias de corrupção envolvendo membros do partido] – de refundar o partido em outras bases. É preciso abandonar o pragmatismo eleitoral e de governança – e também abandonar a teoria de que os fins justificam os meios – e tentar ser coerente com os princípios que fundaram o partido, fundamentalmente éticos e de compromisso com o combate à desigualdade.
Rets - Você é também um dos idealizadores do FSM. O caminho trilhado por ele – que já se tornou um processo, e não um evento – é marcado por princípios bem definidos (executados com rigor), que dão margem à amplitude de vozes e práticas. Sendo um dos "pais" do FSM, como você avalia o caminho que ele vem fazendo?
Francisco Whitaker - Eu costumo dizer que não sou pai, sou tio. Porque o pai mesmo é Oded Grajew, que teve essa idéia, apresentou a um grupo que se reuniu em torno dela. Eu sou um dos tios que assumiram essa história.
Vejo muito entusiasticamente, porque o processo está se expandindo. O problema não é fazer grandes Fóruns Sociais Mundiais, eventos cada vez maiores. O problema é multiplicar os fóruns: nacionais, regionais e locais. E isto está acontecendo.
Eu estou tendo uma dificuldade enorme de ir a todos. Vou ter que escolher, por exemplo, entre ir a um fórum na Bolívia muito interessante, sobre sabedorias ancestrais, ou ir a uma reunião do Conselho Internacional do FSM de preparação para Nairóbi [no Quênia, onde será realizado o próximo FSM]. Além do mais, na minha idade, não dá para ficar passeando pelo mundo dessa forma. Isso significa que, objetivamente, a coisa está andando.
Continuam existindo no Fórum tensões permanentes entre o mundo velho e o mundo novo. Nossas práticas são guiadas pela horizontalidade, na perspectiva da não disputa pelo poder, mas de cooperação, de tentar entender o que o outro fala, articular. Porque a união faz a força. E isso em um mundo que tradicionalmente tem uma disputa de hegemonia contínua. A união se faz pela escuta, pela cooperação. E isto eu vejo que está acontecendo. Muita gente não se dá conta.
Costumo dizer que, quando trabalhamos no processo do Fórum, sentados à mesa de debates, é como se embaixo da mesa tivesse um polvo enorme, que é o polvo do mundo velho, tentando puxar para baixo o que a gente está fazendo. E temos que permanentemente estar atentos a isso. No processo do Fórum, temos que nos livrar do polvo nas nossas tentativas de começar algo novo, práticas novas e uma nova maneira de fazer política.
Rets - E como responderia aos pedidos que volta e meia surgem para que o FSM tenha um resultado prático, por exemplo, um documento final de cada encontro?
Francisco Whitaker - Muita gente acha que o Fórum é um movimento, não o vê como um espaço – o que ele fundalmentalmente é. Então acham que ele tem que terminar com um documento final, pois todo movimento tem suas orientações, direções e planos. E o Fórum não pode ter. Ele é um espaço de encontro e de articulação, e não, ele mesmo, um movimento. Então esses pedidos de que o Fórum tenha resultados são um desconhecimento do que ele é.
A maior parte das pessoas que vão ao FSM são representantes de organizações que já estão em algum ponto de luta. Essa pessoas vão, aprendem umas com as outras, se reconhecem mutuamente e voltam para continuar o que normalmente fazem. Se do Fórum nascerem iniciativas novas envolvendo mais gente, maravilha. E têm nascido. Nasceu no Fórum de 2001, por exemplo, a luta contra a Alca. Essa é sua função: tornar possível as pessoas se alimentarem para continuarem seus trabalhos. O resultado dele é esse, criar o espaço.
Rets - Na descrição do prêmio, diz-se que ele pretende homenagear "forças sociais positivas que seus laureados representam" e reconhecer a inspiração que eles proporcionam. No seu caso, quais são as forças sociais positivas que inspiram a, após tantos anos, continuar lutando?
Francisco Whitaker - Acho que a crença de que outro mundo é possóvel. Eu parto profundamente da constatação de que há um número enorme de pessoas – muito maior do que a gente pensa – querendo mudar as coisas. Gente que não está de acordo com injustiça e desigualdade e quer fazer alguma coisa. Só não sabe como. Então o problema é as pessoas se encontrarem e se alimentarem reciprocamente. Eu estou nisso a partir da crença particular da eficácia das ações em rede, uma formação muito melhor do que qualquer outra piramidal. O que tem que se lembrar é que estamos no começo da estrada. E espero ter anos de vida ainda para continuar ao máximo tentando trazer mais gente para esse processo e concordando que é possível um outro mundo.
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer