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Problema complexo

Autor original: Maria Eduarda Mattar

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Problema complexo
Brasão Bope | Bope em ação

De 11 a 23 de outubro, policiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar do Rio de Janeiro ocupou o Complexo do Alemão, conjunto de mais de 20 favelas na zona norte da cidade. O objetivo era fazer uma operação de “asfixia”, como chama a polícia, para prender os chefes do tráfico de drogas no local. Os resultados, no entanto, foram tudo menos isso. Ninguém foi preso e nenhuma arma foi apreendida.

Nos dias em que o Bope ocupou o local, surgiram denúncias, por parte de moradores e ONGs, de violações de direitos humanos. As acusações eram de maus-tratos e terrorismo contra os moradores, com a atitude violenta de policiais e o uso do já famoso Caveirão, veículo blindado utilizado pela polícia carioca para entrar em favelas. Houve também um corte no fornecimento de luz e água que os moradores creditam à polícia. O Bope, por sua vez, alega que a população, forçada por traficantes, protestava contra a presença da unidade no Alemão.

A retirada do Bope ocorreu na segunda, dia 23, pela manhã, quando já estava anunciada para o dia seguinte uma coletiva de imprensa reunindo representantes de organizações e moradores, a fim de denunciar a situação à opinião pública. Paralelamente, foi encaminhado um abaixo-assinado dos moradores para o Ministério Público e para o núcleo de direitos humanos da Defensoria Pública.

A Rets entrevistou duas das pessoas que participaram do grupo que convocou a coletiva: Jorge Ribeiro – radialista e morador do Complexo do Alemão, onde faz trabalhos comunitários de arrecadação e distribuição de alimentos – e o pesquisador licenciado da ONG Justiça Global Marcelo Freixo, que já foi presidente do Conselho da Comunidade do Rio. Jorge tenta resumir os sentimentos e a visão dos moradores atingidos pela ação e Freixo explica o que pode ser feito, pelas vias oficiais, para prevenir ou punir operações que violem os direitos humanos.

Rets - Após a coletiva, alguma coisa mudou?


Jorge Ribeiro - A única mudança foi que o coronel [Mário Sérgio Duarte, comandante do Bope] que dirigiu a operação admitiu que o que dissemos é verdade. Não sou contra a PM, acho que a criminalidade tem, sim, que ser combatida. Mas é preciso separar as coisas: há o cidadão de bem e o criminoso. A polícia tem de usar seus serviços de inteligência, que não são usados na comunidade. A PM é importante, mas tem de separar bem as coisas.


Enquanto a polícia esteve aqui, as mulheres eram xingadas, as crianças levavam tapa, homens eram maltratados. É bom ressaltar que foram alguns [enfatiza a palavra] que fizeram isso. No Complexo do Alemão, existem mais de 20 favelas e vivem aproximadamente 200 mil pessoas. É uma cidade inteira. Nem 1% anda às margens da lei. Os outros 99% não têm nada a ver.


Rets - Há relatos de que as escolas foram fechadas. E as pessoas conseguiam trabalhar normalmente?


Jorge Ribeiro - Às vezes. Quem saía muitas vezes, dependendo do horário, ficava em casa de parentes fora, pois para voltar para casa estava tudo escuro. A polícia alegava que os traficantes atiravam nos postes de luz. Isso é incongruente, pois se o traficante mora lá também, depende da luz. E mais: muitos traficantes, quando a polícia ocupa, fogem da comunidade.


Rets - Ou seja, a população é que sofre, no lugar dos traficantes?


Jorge Ribeiro - Vou contar uma coisa que eu presenciei, ninguém me contou: uma senhora estava subindo com três crianças, e o policial começou a falar, a perguntar se ela não tinha medo de morrer, essas coisas, e a xingou de prostituta. Ela respondeu: “só se eu fosse sua mãe”. Ele então ameaçou de matar os quatro – ou seja, as crianças também – e deu três tiros para o alto, para assustar. A mulher e as crianças, lógico, correram com medo.


Ou seja, era um terrorismo desnecessário. A polícia é pra proteger, pra cuidar da integridade física. A população não acoberta ou age a mando dos traficantes, como a polícia alega. Não defendo bandido. Mas também não vou defender atitude errada da polícia.


No morro há fábrica de armas? De munição? Tem destilaria de cocaína? Plantação de maconha? E tem dinheiro para financiar o tráfico? A resposta óbvia para todas essas perguntas é “não”. O maior problema não está no morro, que recebe as pedradas. Não tem traficante rico no morro. Os grandes estão fora.


Repito: a polícia tem que usar a inteligência para chegar aos grandes. Ocupar o morro é procurar algo em um lugar em que não vai achar muito.


Rets - Você conseguiria resumir em uma palavra o sentimento durante os dias de ocupação?


Jorge Ribeiro - Em uma palavra: estupro. Fomos estuprados em nossos direitos. Nossas casas foram invadidas. Foi imposto um toque de recolher tácito, com horários impossíveis de se transitar com tranqüilidade e locais cercados. Gosto de ser bem claro: não sou contra o trabalho da polícia, entendo o lado deles. Têm que fazer o trabalho, mas acho que tem que ser feito com inteligência. Durante esse tempo, nada foi apreendido, ninguém foi preso. Então foi para quê? Só para provocar pânico na população?





Rets - Alega-se que a ocupação do Complexo do Alemão pelo Bope está ocasionando uma série de violações de direitos humanos. Pela sua experiência na defesa e na observação desses direitos, quais são os mais gritantes?


Marcelo Freixo - Os relatos dos moradores são assustadores. Casas saqueadas, lojas roubadas, senhoras e idosos levando tapas no rosto, pessoas sendo humilhadas e crianças com medo de sair de casa. Fatos inacreditáveis para os que vivem fora da favela e desconhecem a relação da polícia com as comunidades. Segundo os moradores, a maioria dos conflitos ocorre no horário de entrada ou saída dos alunos nas escolas. A sensação dos moradores é de profunda revolta com tamanho desrespeito.


Rets - Após a coletiva de imprensa do dia 24, houve algum posicionamento da polícia? Fornecem alguma justificativa para a interrupção da eletricidade e da água no local enquanto estiveram por lá?


Marcelo Freixo - A retirada do Bope ocorreu na segunda-feira pela manhã. Exatamente no momento em que a comunidade anunciava a coletiva para o dia seguinte. Outro fato que pesou foi o abaixo-assinado que os moradores encaminharam para o Ministério Público e para o núcleo de direitos humanos da Defensoria Pública. Os defensores públicos enviaram um ofício ao Comando Geral da Polícia Militar, solicitando uma audiência do coronel Hudson Aguiar com os moradores do Complexo do Alemão. Desde o início da operação do Bope, a luz, a água e os telefones foram cortados para a maioria dos moradores. São aproximadamente 200 mil moradores atingidos de forma direta pela ação policial dentro da favela.


Rets - Independentemente da saída – ou do momento da saída – da polícia do Complexo do Alemão, que encaminhamentos legais, no Brasil, o fato justifica? Além disso, seria possível ou indicado levar o caso à Corte da OEA?


Marcelo Freixo - Em 2004 encaminhamos para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos o relatório sobre “Insegurança pública e violência policial”. O que ficou conhecido como relatório Rio, denunciava exatamente a política de segurança do governo do Rio de Janeiro como um instrumento estrutural de criminalização da pobreza. O que precisamos fazer é organizar essas comunidades para a possibilidade de documentação permanente dos casos de violações de direitos ocorridos dentro das favelas. Somente com esses casos sistematizados é que conseguiremos dar corpo a essas denúncias e provocar um debate mais conseqüente sobre os efeitos da política de segurança pública para as comunidades do Rio. Tanto a Maré, no dia 12, como o Complexo do Alemão, neste dia 24, deram mostra de que muita coisa boa pode e deve ser feita pelos moradores em parceria com organizações de direitos humanos.


Rets - Resumidamente, o que ocasionou a ocupação do Bope no Complexo do Alemão?


Marcelo Freixo - Segundo os relatos da imprensa, o governo do Rio estava ocupando o Complexo do Alemão para prender três traficantes que estavam escondidos na favela. Em nome da guerra ao tráfico, operam as maiores violações possíveis aos moradores das favelas. É urgente que o princípio da segurança se baseie no respeito aos moradores dessas comunidades e que o policiamento no local seja feito com o intuito de proteger essas pessoas. Não podemos aceitar como natural que a segurança seja somente para alguns.


Maria Eduarda Mattar

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