Autor original: Mariana Loiola
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
![]() Vicente Canhas | Foto: Railda Herrero | ![]() |
Há 19 anos, o missionário jesuíta Vicente Cañas Costa foi assassinado em Cuiabá, no Mato Grosso. Foi uma vítima, entre tantas, dos conflitos pela posse de terras.
Seis pessoas foram indiciadas pelo assassinato, e uma delas, que teria agenciado o crime, foi a júri popular na semana que passou. Ronaldo Antônio Osmar, ex-delegado da cidade de Juína, teve sua sentença lida somente nos primeiros minutos deste domingo, 29 de outubro: os jurados concluíram que houve assassinato, mas inocentaram o réu. Segundo informações divulgadas pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que acompanhou todo o julgamento, a sentença teve três quesitos. "Por 4 votos a 3, os jurados decidiram que os ferimentos identificados no corpo de Vicente Cañas foram produzidos por terceiros, fazendo uso de pedaço de pau e arma branca. Por 5 votos a 2, decidiram que estas lesões causaram a morte do missionário. E por 6 votos a 1, inocentaram o réu", conforme o comunicado emitido pela entidade.
Paulo Machado Guimarães, assessor jurídico do Cimi que atuou como assistente de acusação, acha, no entanto, que, apesar da absolvição do réu, o resultado pode ser comemorado. "O reconhecimento do crime é uma grande vitória. E o Cimi continuará lutando para o esclarecimento de todos os fatos", afirmou. A acusação ainda deverá recorrer da sentença.
No próximo dia 6 de novembro, outro acusado vai a julgamento: é José Vicente da Silva. Para o Cimi, do qual Cañas era membro, e para outras organizações de defesa dos direitos indígenas, o resultado desses julgamentos pode significar um grande avanço na luta contra a impunidade. Vale observar que os réus estão sendo julgados a menos de um ano do prazo para prescrição do caso, que é de 20 anos.
Inculturação
De origem espanhola, Vicente Cañas chegou ao Brasil na década de 60 para trabalhar com tribos indígenas. A partir de 1974, trabalhou dez anos com os Enawenê-Nawê, grupo que vive em terra próxima ao município de Juína e que ainda hoje tem pouco contato com a sociedade não-indígena. Cañas trabalhava pela saúde, com ênfase na prevenção de doenças infecto-contagiosas, e pelo respeito à cultura tradicional daquele povo. Lutava ainda pela demarcação da terra dos Enawenê-Nawê, cobiçada por latifundiários e grileiros que se instalavam na região – e por isso teria sido assassinado. Seu corpo foi encontrado às margens do rio Juruena, em maio de 1987, por seus companheiros de missão.
Aqueles que conheceram o trabalho de Cañas falam com admiração sobre a forma inovadora de atuação do missionário. Cañas adotava com os indígenas uma prática de convivência chamada de inculturação, que envolve atitudes de escuta, participação nas atividades do dia-a-dia (rituais, pesca, agricultura etc.), solidariedade, respeito à cultura e liberdade religiosa. “Nunca vi alguém ir tão longe na inculturação. Isso foi muito importante para aquele povo, que estava se reduzindo e não tinha conhecimentos para se defender daqueles que ameaçavam os seus direitos”, conta Egon Heck, coordenador do Cimi no Mato Grosso do Sul. “Cañas atuava como ponte entre o povo indígena e a sociedade. É o símbolo de um compromisso com uma nova realidade a ser constituída, neste país e neste continente, de respeito à diversidade dos povos”, acredita.
Outro companheiro da causa indígena foi Dom Tomás Balduíno, bispo emérito de Goiás e ex-presidente do Cimi e da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Dom Tomás conheceu Cañas ao participar de um programa de assistência de saúde em áreas indígenas, inclusive a dos Enawenê-Nawê. Ele lembra o modo de trabalho de Cañas, considerado missionário exemplar, de personalidade forte, segundo o bispo. “Quem nos transportava até a aldeia era o Vicente. Vimos como ele respeitava a autodeterminação dos índios e a sua cultura. Ele morava sozinho num barraco pequeno de madeira à margem do Rio Juruena, a quatro horas de navegação até a aldeia. Sua convivência com os índios era discreta, exatamente na linha como hoje o Cimi procura atuar”, relata.
Nessa linha inovadora, de acordo com Dom Tomás, em vez de ser subordinado, o índio deve ser protagonista de sua própria caminhada, visão que ameaçava os grandes interesses econômicos e políticos nas terras indígenas. “Cañas tinha muita coragem, despojamento e clareza da sua missão. Um elemento da Igreja, missionário e que inspirava tanto respeito representava uma barreira para os fazendeiros ladrões de terra”, diz.
Dom Tomás ressalta que o assassinato de Cañas não é um caso isolado e remete a muitos outros casos de impunidade em conflitos de terra no país. “O martírio de Vicente está relacionado a diversos outros martírios a serviço dos povos indígenas e das águas, índios, negros e lavradores. De acordo com um levantamento do CPT sobre conflitos de terra, em 11 anos, houve 11 mil assassinatos e apenas 70 processos e 21 condenações”, diz.
Morte violenta
Segundo o Cimi, ameaçado de morte por seu comprometimento com a sobrevivência do povo Enawenê-Nawê, Vicente Cañas foi vítima da ambição e da violência dos fazendeiros, que o mataram a facadas, quando se preparava para atender uma aldeia, levando medicamentos. Após ser morto, foi abandonado à porta de seu barraco pelos assassinos. Por causa do isolamento do local do crime, o corpo do missionário só foi encontrado 40 dias depois da morte, com o abdômen perfurado e em avançado estado de decomposição. O inquérito tramitou durante seis anos, e a revelação do envolvimento dos acusados se deu por testemunhos de indígenas habitantes das terras vizinhas à dos Enawenê-Nawê, onde ocorreu o assassinato.
Como Cañas participava oficialmente de um grupo de trabalho da Fundação Nacional do Índio (Funai) para identificação do território indígena, num processo que mais tarde levaria ao reconhecimento e à demarcação definitiva das terras da etnia Enawenê-Nawe, a competência para o julgamento dos acusados foi transferida para a Justiça Federal. Durante todo esse tempo, o Cimi atuou intensamente para que se fizesse justiça no caso. “Desde a morte de Cañas, em 1987, o Cimi vem se empenhando perante as autoridades estaduais pela resolução desse crime”, afirma o advogado do Cimi, Paulo Machado Guimarães.
Dos seis acusados, apenas dois vão a julgamento: Ronaldo Antônio Osmar, que na época do assassinato era delegado de polícia de Juína, localidade do crime, e o pistoleiro José Vicente da Silva. Dois dos três fazendeiros acusados de serem mandantes, Pedro Chiquetti e Camilo Carlos Obici, já faleceram. Outros dois acusados, o fazendeiro Antônio Mascarenhas Junqueira e o pistoleiro Martinez Abadio da Silva, têm mais de 70 anos, portanto a acusação contra eles já prescreveu. Ronaldo Antônio Osmar e José Vicente da Silva estão sendo julgados pelo Tribunal do Júri da Justiça Federal pelos crimes de homicídio duplamente qualificado, mediante pagamento e em emboscada. As penas podem variar de 12 a 30 anos de reclusão. Inicialmente, Osmar e Silva seriam julgados juntos. No entanto, a pedido da defesa, o julgamento dos dois acusados foi desmembrado.
O do ex-delegado começou na tarde de 24 de outubro. Segundo o Ministério Público Federal, responsável pela acusação no processo, Osmar teria sido o intermediário entre os fazendeiros mandantes do crime e os pistoleiros contratados para realizá-lo. Durante o julgamento, Osmar negou qualquer envolvimento com o assassinato de Cañas. Disse que o conhecia apenas pelas histórias que ouvia sobre o “missionário barbudo, de cabelos compridos e que usava colares como os índios”. O réu negou também que, como primeiro delegado responsável na época do crime, tivesse tido qualquer atitude para retardar as investigações, apesar dos questionamentos feitos pela acusação.
A defesa alegou ainda não haver comprovação de morte violenta, já que, nas perícias realizadas no corpo de Cañas, os legistas não conseguiram identificar a causa da morte, por causa de seu avançado estado de decomposição. No entanto, segundo o advogado do Cimi, que atua como assistente da acusação no julgamento, apesar de não poder identificar a causa exata da morte, a perícia reconheceu a violência do ato. Além da perfuração do abdômen, foram encontrados sinais de luta no local, como óculos quebrados e objetos fora do lugar dentro do barraco.
Guimarães ressalta a importância desse julgamento no enfrentamento da impunidade dos crimes contra aqueles que defendem os direitos e a dignidade dos povos indígenas. “A vítima foi um grande aliado dos povos indígenas, e esse julgamento é resultado de um esforço da cidadania contra a impunidade”, afirma.
Mariana Loiola. Colaborou Fausto Rêgo.
Matéria atualizada às 15h30 do dia 29 de outubro de 2006.
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