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Base sólida para o direito à moradia

Autor original: Maria Eduarda Mattar

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Base sólida para o direito à moradia
Kim MacDonald | HPH
A Produção Social do Habitat (PSH) é defendida em diversas leis e manifestos relacionados à habitação, inclusive na Carta Mundial do Direito à Cidade. Mas o que de fato significa Produção Social do Habitat? O conceito é pouco conhecido fora dos círculos que debatem o tema. Para esclarecer e detalhar o assunto, a Rets conversou com Ademar de Oliveira Marques, especialista em Políticas Públicas e diretor executivo da Habitat para a Humanidade Brasil, organização que trabalha para disseminar a prática.

Neste sentido, uma das atividades já programadas é o Seminário Internacional sobre Produção Social do Habitat, que a ONG realiza em novembro, em São Paulo [mais informações sobre o evento no box abaixo, à direita]. A idéia é incrementar o debate sobre a prática, além de trocar experiências e estratégias sociais de soluções habitacionais de baixo custo. O evento conta com a parceria da UN-Habitat, do Fórum Nacional de Reforma Urbana, do Centro Cooperativo Sueco, da Habitat International Coalition (HIC) e da Hábitat para la Humanidad Latinoamerica y Caribe (HPH LAC).

Nesta entrevista, Marques conta que a Produção Social do Habitat conjuga participação comunitária e soluções baratas, tendo como principal saldo o fortalecimento da cidadania responsável e das economias locais. "Ela é viabilizada, principalmente, mediante o incentivo aos processos autogerenciados, tanto individuais e familiares quanto coletivamente organizados, como os mutirões, as cooperativas habitacionais, e pelo financiamento de soluções habitacionais", diz ele, que comenta ainda como a prática pode se relacionar com as políticas públicas de habitação.

Rets - Apesar de importante no contexto de direito à moradia, o conceito de Produção Social do Habitat" ainda não é amplamente conhecido. O senhor poderia defini-lo?

Ademar de Oliveira Marques - A Produção Social do Habitat (PSH) se manifesta em processos coletivos de criação de moradias, infra-estrutura e serviços sociais dentro das comunidades. Ela é viabilizada, principalmente, mediante o incentivo aos processos autogerenciados, tanto individuais e familiares quanto coletivamente organizados, como os mutirões e as cooperativas habitacionais, e pelo financiamento de soluções habitacionais. Seu objetivo é satisfazer necessidades individuais e coletivas e fortalecer a cidadania responsável, as economias locais e a transformação.

Na PSH, considera-se não apenas o simples acesso à habitação, mas a infra-estrutura na qual a moradia vai se inserir, as distâncias, os serviços públicos disponíveis, os espaços de educação, lazer e cultura, entre tantos outros aspectos que também são considerados.

Rets - Falar em mutirões pode parecer uma saída simples e local demais para um problema mais complexo, que é a ausência de políticas públicas eficazes para o problema da moradia adequada no Brasil. Como o senhor rebateria esse pensamento?

Ademar de Oliveira Marques - As políticas públicas são insuficientes e inexistem em muitas cidades. Mas a idéia da PSH aponta principalmente para um processo organizativo da comunidade em geral: são as forças vivas se mobilizando para assegurar dignidade aos seus concidadãos. Isto implica também a efetiva participação, ou o efetivo protagonismo, das famílias atendidas. Os projetos autogestionados e os mutirões são exemplos significativos para contribuir para a eliminação da moradia infra-humana, para a construção de um habitat sustentável, através do esforço coletivo dos atores sociais: poder público, sociedade, comunidade, família.

Rets - Como a PSH se relaciona ou pode se relacionar com outras políticas públicas ligadas à habitação?

Ademar de Oliveira Marques - A causa de Habitat para a Humanidade é justamente esta: lutar pela implementação de políticas que garantam direitos básicos, como moradia de qualidade, água e saneamento e transporte acessível e eficiente. A base de todo o trabalho vem a partir do entendimento de que a PSH se baseia no reconhecimento ao direito humano de ter uma moradia digna e viver na cidade e de ter acesso aos serviços básicos e de infra-estrutura de emprego. E hoje não se trata mais de proporcionar o acesso à propriedade, mas produzir uma contexto social e comunitário que transforme a vida das pessoas e de suas comunidades.

Rets - O saneamento básico é questão fundamental para uma moradia digna e, mais que isso, para a saúde das pessoas. Como esta questão é tratada com a PSH? Como os temas se tocam?

Ademar de Oliveira Marques - Quando falamos de PSH, estamos levando em consideração o príncipio da integralidade do ser humano. Neste sentido, a infra-estrutura básica e os serviços de saneamento, bem como as demais áreas, devem estar articulados e integrados. Essa interface entre políticas e serviços se constitui num elemento estratégico fundamental para assegurar um habitat saudável e sustentável.

Rets - O senhor poderia citar experiências que considera exemplares no uso da PSH?

Ademar de Oliveira Marques - O sistema de mutirão é uma das formas pelas quais a PSH pode ser viabilizada. Temos exemplos concretos no trabalho de Habitat para a Humanidade que demonstram que várias realidades locais têm sido transformadas por meio dessa participação, que envolve famílias, comunidade, empresas, voluntários, parceiros, entre outros. Ao longo de 14 anos, foram construídas mais de 3 mil soluções habitacionais em nove estados brasileiros, estimando-se beneficiadas mais de 15 mil pessoas. Falamos em soluções habitacionais, pois elas são um meio para organizar a comunidade e mobilizar a sociedade. Todo o trabalho é feito para que as populações possam assumir a responsabilidade pela condução de seu destino. E nenhuma ação será produtiva se as famílias atendidas não forem "empoderadas" e conseguirem seguir o seu destino.

Em Pernambuco, no distrito de Varjada, perto da cidade de Passira, temos um exemplo de processo de organização da comunidade e de transformação das condições subumanas em que viviam, por meio da ação de Habitat para a Humanidade juntamente com seus parceiros: comunidade, igrejas, poder público, empresas, ONGs e voluntários. O resultado desse trabalho é fantástico.

Rets - E como o programa da Habitat para a Humanidade é realizado?

Ademar de Oliveira Marques - O programa objetiva construir comunidades, fortalecer o processo organizativo local e o protagonismo dos atores. Busca atender prioritariamente famílias com necessidade de moradia, prioritariamente com renda de até três salários mínimos, selecionadas pela sua disponibilidade para o trabalho em mutirão e para a capacitação durante o processo educativo e construtivo promovido pela HPH Brasil. Também levamos em conta o comprometimento em devolver as parcelas investidas por HPH ao fundo para a humanidade. As atividades desenvolvidas incluem diagnóstico da comunidade, assessoramento e construção coletiva do projeto técnico, oficinas de cidadania e capacitação para o processo construtivo, alfabetização financeira das famílias etc. A casa tem perto de 48 metros quadrados e o custo médio de uma casa construída situa-se entre R$ 9 mil e R$ 14 mil, dependendo da localidade e tecnologia utilizada. As prestações mensais pagas pelas famílias não comprometem mais de 20% da renda familiar. O valor da casa é pago em até dez anos e retorna ao Fundo de Crédito Rotativo Solidário, utilizado para a construção de mais casas.

Rets - Com o uso da PSH, ainda há a questão do financiamento das moradias. De onde viria o dinheiro para compra de materiais: das próprias pessoas ou dos órgãos públicos?

Ademar de Oliveira Marques - Esta iniciativa envolve diversos atores sociais. Depois de integrados ao projeto e definidos seu papel e responsabilidades, é formado um comitê gestor do projeto, composto pela comunidade, pelo poder público e por parceiros. Num esforço coletivo, o projeto se torna sustentável, ou seja, a HPH não doa nem vende casa. Ela viabiliza um processo para que famílias tenham acesso à a moradia e apóia o processo de desenvolvimento comunitário integral e sustentável. Por exemplo: se uma casa tem um custo de R$ 14 mil, nossa organização, com o esforço de seus parceiros, propicia R$ 10,5 mil pelo subsídio do poder público, por meio da Caixa Econômica Federal, e R$ 1,5 mil em subsídio cruzado de outro parceiro. A prefeitura e/ou o governo estadual entra com a infra-estrutura. Ainda contamos com R$ 2 mil do Fundo Rotativo de HPH. Esse é o valor que é retornado em até 72 meses pela família, em parcelas de cerca de R$ 35, que variam conforme a renda e a idade. E assim vamos solucionando novos problemas de moradia.

Rets - Normalmente, as moradias populares são projetadas sob a lógica de produção em grande quantidade, sem necessariamente levar em conta a qualidade da infra-estrutura e do ambiente. Esta tem sido a prática das administrações públicas, para tentar oferecer casa ao maior número possível de pessoas. O senhor já observa alguma mudança nos governos para mudar essa lógica?

Ademar de Oliveira Marques - Até a década de 70, o foco central da discussão sobre a questão habitacional estava nos aspectos quantitativos. Prevalecia a política de construção massiva de moradias, pensadas com base nos critérios dos gestores que elaboravam os programas habitacionais, sem avaliar corretamente as necessidades daqueles que seriam os seus potenciais beneficiários. Lentamente, o entendimento sobre a habitação foi sendo ampliado e passou a incorporar o conceito da moradia como necessidade e direito. Os critérios de financiamento e subsídio do governo federal exigem uma infra-estrutura mínima, acesso a luz, água, saneamento, arruamento. Por outro lado, e especialmente por este processo, o Estatuto das Cidades, conquista da cidadania brasileira, responsabiliza as cidades pelo planejamento urbano e pelo acesso à terra e aos mecanismos de financiamento. A implementação dos espaços e instrumentos de participação da população possibilita o exercício do controle das políticas urbanas e sociais.

Maria Eduarda Mattar

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