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Portas abertas

Autor original: Mariana Hansen

Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor






Portas abertas
Foto: Amnesty International
Em março, a sociedade brasileira se chocou com o documentário “Falcão - Meninos do Tráfico”, realizado pelo cantor MV Bill e pelo produtor musical Celso Athayde. Por seis anos, eles registraram a vida de meninos e meninas de comunidades pobres de todo o país que caem no mundo do narcotráfico e da violência, vivendo sem perspectivas e com a possibilidade iminente de morte. O problema, que já existe há anos, ganhou visibilidade nacional, mobilizando sociedade civil e governo em busca de uma resposta para o problema.

Uma dessas respostas é o projeto Resgate da Cidadania, parceria entre a ONG Viva Rio e a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) para proporcionar oportunidades de futuro a crianças e adolescentes em situação de risco social. A iniciativa, de caráter experimental, atenderá 100 crianças e jovens do Complexo da Maré – que engloba 17 comunidades pobres na zona norte do Rio de Janeiro (RJ) – e de Niterói (RJ).

De acordo com Márcia Soares, assessora da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SPDCA) - ligada à SEDH -, o problema dos “falcões” também vem aliado à questão do homicídio de jovens, que é marcante no Brasil. “Estamos estabelecendo essa experiência primária para observação e para depois contribuir para a criação de políticas públicas mais definidas nas comunidades, a partir das iniciativas já existentes, além de fomentar novas”, explica.

A coordenadora do projeto, Leila Lino, do Viva Rio, conta que a idéia é oferecer uma série de atividades integradas, como educação (que envolve ainda aspectos de cidadania, mediação de conflitos e direitos humanos), qualificação profissional, esporte e atendimento psicológico para os participantes e seus familiares. O tratamento de dependentes químicos também é um objetivo do projeto, que será desenvolvido junto com o Núcleo de Estudos de Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Nepad/Uerj).

Para o Viva Rio, que já desenvolve trabalhos ligados a esse tema, os jovens em situação de risco são aqueles que não estão na escola, o que torna as oportunidades mais difíceis. Márcia Soares acrescenta que conviver diariamente com violência, narcotráfico e falta de opções também é fator de risco.

Porta de entrada

Márcia e Leila ressaltam que não é só pelo dinheiro que crianças e jovens engrossam a mão-de-obra do narcotráfico. A existência da necessidade financeira é inegável, principalmente quando se trata de adolescentes que já têm filhos. Vários outros fatores, porém, são facilitadores da aproximação e da permanência no tráfico.

A busca de reconhecimento social, por exemplo, é muito importante. Leila destaca o desejo da “garotada” de participar e ser vista, especialmente em um espaço de difícil acesso, baixa escolaridade e pobreza. “O jovem quer pertencer a alguma coisa. E ali, naquele espaço, ele é alguém”, explica. Márcia, por sua vez, aponta a visibilidade obtida, mesmo que seja como um problema, quando o jovem ou a criança ingressam no tráfico ou têm uma arma na mão. “A juventude da periferia busca visibilidade e interação. Armas dão poder, a possibilidade de construção de auto-estima e empoderamento. Para nós [sociedade] a periferia é invisível e, na maioria das vezes, seu transporte para o outro lado é o subemprego”, observa.

Leila Lino alerta que hoje, no senso comum, morador de favela é, muitas vezes, visto como bandido. “Isso é uma fantasia, especialmente na população jovem. Menos de 1% faz parte do tráfico local na maioria das comunidades”, ressalta. Ela ainda acrescenta que, como qualquer mercado de trabalho, o tráfico é limitado e não tem como suportar todo mundo. Outro mito derrubado por Leila é que o dinheiro advindo do tráfico é "fácil". "As pessoas não têm a mínima idéia de como é. Não é um trabalho fácil, não tem horário, nem garantia alguma. Às vezes, eles passam dias sem dormir. Precisamos entender e compreender como funciona para podermos ajudar", diz.

Mas é Márcia Soares quem faz uma observação surpreendente: “Até o comando do tráfico está incomodado com a entrada de crianças no seu esquema, pois chama ainda mais a atenção do poder público e da sociedade”. Ela completa dizendo que há até uma facilidade de negociação e identificação para a retirada desses meninos e meninas do crime.

Uma oportunidade para quem quer

A porta de saída do mundo do tráfico ou a possibilidade de distanciamento desses fatores que podem levar ao crime é o que pretende oferecer o projeto Regaste da Cidadania. E o interesse em mudar os rumos de suas vidas faz com que, mesmo antes do início das atividades ou de uma divulgação em massa, alguns jovens já demonstrem vontade de participar dos trabalhos.

“Os jovens já estão chegando porque as pessoas comentam. Estamos indo aos lugares e explicando a proposta. A divulgação é interna mesmo, com os líderes comunitários ou até no boca-a-boca. Evitamos uma grande exposição dos participantes, especialmente de quem está em situação de maior vulnerabilidade”, explica Leila.

Quem tiver interesse pode procurar o projeto, pois o espaço está aberto. “É uma opção para aqueles que dizem que querem fazer alguma coisa, mas não têm opção. Não é voltado somente para os que já estão envolvidos com o tráfico, mas uma oportunidade para os que querem e não encontram uma porta aberta”, ressalta Leila.

A participação do governo federal na iniciativa vai além do suporte financeiro, destaca Márcia Soares. "Trata-se de potencializar e unificar as ações do Estado com a juventude. É o governo federal construindo um conjunto de políticas públicas para dar uma retaguarda para a comunidade desenvolver seus projetos", esclarece. Para ela, não basta apenas incentivar oficinas culturais. É preciso investir na instalação de Pontos de Cultura e postos de saúde, levar o Bolsa-Família e melhorar as escolas, dentre outras ações.

Em outubro de 2007, será feita a primeira revisão do projeto, em uma conferência internacional, durante a qual serão propostas políticas públicas para enfrentar e superar o problema, no Brasil e no exterior. A expansão do projeto para outros estados depende dos resultados do primeiro ano do Resgate da Cidadania. “Vamos criar uma metodologia a partir dessa experiência e dos dados resultantes do seu monitoramento, e daí reaplicar em outros lugares. Trabalharemos nos estados com os maiores índices de mortalidade infantil decorrente da violência, como São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Pernambuco e Distrito Federal”, esclarece Márcia.

A maior expectativa é contribuir para a construção de um cidadão que conheça outras possibilidades além do tráfico. “Mostrar que há um mundo fora disso e dar acesso a esse mundo, construindo uma perspectiva de futuro”, conclui Márcia.

Mariana Hansen

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