Você está aqui

Mais controle

Autor original: Luísa Gockel

Seção original:






Mais controle
Divulgação | controlarms.org
A Assembléia Geral da ONU aprovou, no dia 26 de outubro, a resolução internacional que prevê a criação de um Tratado Internacional sobre o Comércio de Armas. O apoio foi maciço: 139 países votaram a favor e só os Estados Unidos votaram contra. Para Denis Mizne, diretor executivo do Instituto Sou da Paz e coordenador da campanha Control Arms no Brasil, foi uma grande vitória da sociedade civil.

Embora o mundo inteiro seja beneficiado com o controle mais rigoroso das armas, será uma vitória ainda maior para os brasileiros. “Temos quase 40 mil assassinatos com arma de fogo por ano, o que é quase 10% do total mundial de vítimas, sendo que temos pouco mais de 3% da população mundial”, afirma Mizne.

As estatísticas mostram urgência na confecção de um tratado como esse. Mizne alerta, no entanto, que é preciso ter paciência, pois a aprovação foi apenas o primeiro passo, sem perder a mobilização. “O trabalho da campanha Control Arms e das ONG envolvidas nisso em mais de cem países também deve continuar, procurando mobilizar as pessoas para esse processo”, diz.

Rets – O tratado foi aprovado quase que por unanimidade. O que isso significa na ordem atual?

Denis Mizne – Primeiro, é uma grande vitória da sociedade civil. A questão do controle sobre armas leves e armas convencionais é um tema que só há pouco tempo começou a fazer parte da história das Nações Unidas. Em 2001, foi a primeira vez que a ONU discutiu isso numa conferência. Essa conferência de 2001, que foi até 2006, teve uma reunião em julho que, por culpa de vários países, mas principalmente dos Estados Unidos, foi um fracasso. Não se conseguiu chegar a um consenso.

Depois disso, as ONGs se mobilizaram com muita força e em três meses e meio conseguiram reverter essa pouca disposição e, ao mesmo tempo, pressão de alguns países para evitar o debate. Conseguiram apoio maciço para a discussão de um documento legalmente vinculante, como é um tratado. Não é mais uma questão só política, de conseguir uma declaração da ONU, mas de botar as Nações Unidas para construir um tratado nessa área. Foi uma vitória muito importante, que mostra também o isolamento crescente dos Estados Unidos – nessa matéria e em outras.

Rets – O que esse tratado muda, na prática?

Denis Mizne – É um longo processo para chegar até o tratado. Nós demos o primeiro passo, que foi a aprovação dessa resolução que vai criar um grupo técnico de especialistas para propor o tratado. Na hora em que o tratado for aprovado, ele vai regular as transferências de armas. Se essa exportação for regulada, menos armas estarão disponíveis para guerras civis no mundo, para grandes violadores dos direitos humanos, para que atrocidades sejam cometidas.

A imensa maioria das armas, 99%, é produzida legalmente. A transferência de um país produtor para um comprador sempre tem algum componente legal. A produção é legal e essa transação é legal. Praticamente não existe país que não controle a sua produção de armas. Mas esse controle não era uniforme, e tinha tantas brechas que acabavam conseguindo fazer coisas que são extremamente danosas.

Controlando melhor esse mercado legal, vamos conseguir reduzir muito o mercado ilegal de armas e, com isso, reduzir o número de abusos cometidos com elas. Na prática, são vidas que vão ser salvas.

Rets – Que influência a campanha Control Arms, que começou três anos antes, teve nesse processo?

Denis Mizne – A campanha foi decisiva. Qual é o histórico de um tratado de baixo para cima nas Nações Unidas que não tenha começado de um país ou grupo de países? O evento maior que existia era o tratado de Ottawa contra as minas terrestres, que teve uma grande mobilização. Esse tratado, quando estava na fase em que estamos agora, contou com o apoio de 106 países. E nós conseguimos ter o apoio, no começo da história, de mais de 130 países.

Havia uma grande publicidade ao redor do tratado de Ottawa. A Princesa Diana apoiava, então os países diziam pra gente que ia ser mais difícil, que não tinha a mesma pressão sobre as armas tanto quanto havia para a questão das minas. E, no fim, todo esse trabalho de convencimento, de campanha e da construção de um grupo de países amigos fez com que pudéssemos superar o número do tratado contra as minas terrestres e ter uma resolução com o apoio maciço, o que dá um impulso inicial muito forte. Não é mais um sonho de meia dúzia de ONGs, mas passa a ser uma coisa concreta, com o apoio de quase todos os países do mundo.

Rets – Qual foi o papel do governo brasileiro nesse processo?

Denis Mizne – O governo brasileiro tem uma posição em relação às armas bastante dúbia. De um lado há setores do governo, como o Ministério da Justiça e o próprio presidente da República, que se manifestaram com muita força no apoio ao tratado e ao desarmamento em geral. Mas o Ministério das Relações Exteriores tem setores que são extremamente conservadores. Muda governo e esses setores continuam com muita força. Esses setores pensam o seguinte: o Brasil é um grande exportador de carne, soja, laranja e arma. E tanto faz se carne não mata ninguém e arma mata 500 mil pessoas por ano. O importante é defender a indústria.

Rets – Você acredita que essa posição será mais firme daqui para a frente?

Denis Mizne - Essa visão retrógrada dificultou e fez com que o Brasil demorasse a tomar uma posição formal em relação ao tratado. Fomos um dos últimos países latino-americanos a co-assinar a resolução. Mas no final assinamos, e esperamos que isso signifique que a posição não vai mais ser dúbia daqui para a frente. Até porque a sociedade civil brasileira foi uma das que mais participaram da campanha Control Arms.

Tivemos mais de 50 mil focos. Uma pesquisa do Instituto Ipsus mostrou que 93% dos brasileiros queriam um controle mais rigoroso sobre a importação e a exportação de armas. E mesmo no referendo, tanto o lado do "sim" quanto o do "não" defenderam que o problema do contrabando tinha de ser atacado como complemento ao Estatuto do Desarmamento.

Por isso estou otimista e acho que agora essa posição, que já foi dúbia, vai passar a um trabalho em conjunto com a sociedade civil e que seja cada vez mais pró-controle de armas, já que o Brasil é uma das maiores vítimas da proliferação de armas do mundo. Temos quase 40 mil assassinatos com arma de fogo por ano, o que é quase 10% do total mundial de vítimas, sendo que temos pouco mais de 3% da população mundial.

Rets – Você acha que os Estados Unidos continuarão a fazer pressão contra o tratado?

Denis Mizne – Ainda tem muito tempo pela frente. Nessa fase, agora, cada país vai dar a sua opinião para o secretário-geral da ONU e depois terá o grupo de especialistas, em que certamente os Estados Unidos estarão presentes. São 25 experts governamentais que vão definir as linhas do tratado.

A minha sensação é que, mantida essa administração, os Estados Unidos vão fazer de tudo para tentar atrapalhar o andamento do tratado. Eles vão ser não só aqueles que votam contra, mas que também trabalham contra. A vantagem é que agora praticamente não temos mais nenhum espaço em que a votação seja por consenso. Ainda que os Estados Unidos se coloquem contra e façam de tudo para enfraquecer o tratado, eles têm de perceber que ficaram extremamente isolados. Vão tentar atrapalhar, mas não vão ter forças suficientes para parar o processo.

Países produtores importantes, como Reino Unido, França e Alemanha, estão apoiando fortemente o tratado. Isso, de certa maneira, mostra que é possível, sim, ser um grande exportador de armas e estar de acordo com o tratado.

Os Estados Unidos não assinam tratados. Só há dois países no mundo que não assinaram a Convenção dos Direitos da Criança, os Estados Unidos e a Somália. E não é exatamente um assunto subversivo. Mudando a administração americana, espara-se que tenha um impacto nisso, já que os democratas são tradicionalmente menos vinculados aos interesses da indústria armamentista.

Rets – E quando vamos começar a sentir na prática os efeitos do tratado?

Denis Mizne – Não adianta tentar se enganar. Com sorte, em 2008, devemos ter um texto final, que começa a passar pelo procesos de assinatura e ratificação pelos países. Então, até 2010, será um período em que o tratado estará ganhando corpo e força para poder entrar em vigor. Mas ainda vai demorar para a sentirmos os resultados. Quando começamos a participar dos processos da ONU, a gente começa a achar que o Congresso brasileiro é super-rápido.

São 192 países que têm de discutir o tema, pensar o que querem fazer, adaptar suas normas e conseguir apoio interno. Mas quanto mais a sociedade civil acompanhar o processo e conseguir criar e manter a mobilização, mais rápido vai andar o tema.

Rets – Daqui em diante, quais serão as frentes de trabalho de governos e sociedade civil organizada?

Denis Mizne – A prioridade será a definição do conteúdo do tratado. Agora só temos linhas gerais e temos de definir os pontos-chave. O fundamental, neste momento, é não deixar que esse processo perca a força. Precisamos manter um diálogo permanente com os governos, para entender quais são os pontos técnicos que precisam ser respeitados em cada país, mas sem perder a consistência.

Mas não podemos abrir mão de critérios como a proibição da exportação de armas para países em guerra civil, para países sob embargo das Nações Unidas e para grandes violadores dos direitos humanos e países que não controlem as suas armas. Mais para a frente, temos de cuidar da implementação, porque não adianta fazer uma lei e não implementá-la. Temos de seguir todo o processo, e isso leva tempo.

É preciso ter paciência, apesar de os números mostrarem urgência. O trabalho da campanha Control Arms e das ONG envolvidas nisso em mais de cem países também deve seguir, procurando mobilizar as pessoas para esse processo. E, ao mesmo tempo, seguir dialogando com os países que estão dispostos a construir um mundo menos violento. O governo brasileiro vem enfatizando tanto esse novo compromisso com os países mais pobres, e nesse sentido acreditamos que a coerência desse discurso implica que o Brasil tenha papel decisivo nesse processo. E é para isso que vamos trabalhar.

Luísa Gockel

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer