Autor original: Luísa Gockel
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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De acordo com uma das organizadoras do documento, Evanize Sydow, a tentativa foi de preparar não só um balanço do ano, mas uma avaliação dos quatro anos do governo Lula. “Tentamos fazer uma análise mais ampla do que foi feito nessa mudança de governo. Tentamos fazer isso ao longo desses quatro anos, mas neste ano temos isso mais claro. Podemos avaliar melhor o que cada organização ou movimento social viveu dentro do tema que acompanha”.
A conclusão, segundo ela, é que ocorreram avanços pontuais, mas do ponto de vista estrutural ainda há muita coisa a ser feita. “Apontamos esses pequenos avanços, mas também mostramos como os direitos fundamentais continuam a ser violados”, afirma Evanize. Apesar disso, ela acredita que os movimentos sociais puderam ter um diálogo mais amplo com o governo. “Mostramos isso nos últimos dois ou três relatórios, mas, sem dúvida, o diálogo com o governo Lula não foi tudo o que se esperava”, observa.
Este ano, o relatório chega à sua sétima edição trazendo 29 artigos sobre temas centrais para a questão dos direitos humanos, como os direitos à terra, à educação, ao trabalho e à justiça social. A divisão de capítulos mostra a abrangência da publicação: Direitos Humanos no Meio Rural; Direitos Humanos no Meio Urbano; Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais e Políticas Internacionais e Direitos Humanos.
Más notícias que vêm do campo
O secretário da Coordenação Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Antônio Canuto, traz algumas más notícias em seu artigo. No primeiro ano do governo Lula, o número de conflitos ligados à terra, que era de 926 em 2002, passou para 1.690, um aumento de 82,7%. No mesmo ano, o poder judiciário emitiu ordem de despejo contra 35.292 famílias, um aumento de 263% em relação a 2002. O número de assassinatos em 2003 foi 69% maior do que o de 2002.
“Os movimentos sociais achavam que o governo Lula ia fazer a reforma agrária. Os latifundiários e os empresários também achavam, então era preciso barrar isso de alguma forma. E foi através de assassinatos e recorrendo com mais intensidade ao poder judiciário que tem se mostrado o braço direito do latifúndio”, explica Canuto.
Em seu artigo, ele tenta desmistificar a idéia de que onde há ocupações há violência. “Sempre se tenta jogar a culpa da violência no campo nas ações dos movimentos sociais. As vítimas acabam se tornando os responsáveis”, critica. Segundo ele, analisando os dados parciais da violência de janeiro a agosto, que a CPT coletou, essa idéia parece não ter fundamento. A violência aconteceu muito mais em lugares onde a ação dos movimentos sociais foi menor. “Os números mostram que o discurso que diz que a violência é uma reação à ação dos movimentos não tem fundamento. É exatamente o contrário. Onde os movimentos estão mais atuantes e organizados é possível barrar um pouco a violência”, analisa Canuto.
“De janeiro a agosto de 2006, as ocupações feitas pelos sem-terra na região Norte representaram 6,69% do total das ocupações no país, mas nessa região aconteceram 30,9% dos conflitos. Na região Sudeste, onde a ação dos movimentos foi muito maior, 25% das ocupações nacionais, foram registrados apenas 14% dos conflitos”, afirma.
Segundo ele, as ações dos movimentos são sempre tratadas como violentas, mas as ações das empresas, por mais absurdas, acabam sempre diluídas porque as corporações são tratadas como responsáveis pelo desenvolvimento. “A violência faz parte da truculência do latifúndio desde o tempo do Brasil Colônia. Onde existe latifúndio, este se mantém e se estrutura em cima de ações violentas”, diz o secretário da CPT.
Paulo Maldos, assessor político do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), traz outra preocupação relacionada à violência no campo. Em seu artigo, ele destaca a ocorrência, até os dias de hoje, "de atitudes criminosas e violentas por parte da Polícia Militar, assassinando, agredindo e humilhando indígenas”. De acordo com o texto, entre os anos de 2005 e 2006, mais de 80 indígenas foram processados criminalmente em decorrência de conflitos envolvendo a luta pela terra.
A conclusão sobre a atuação do governo Lula na questão indígena também não é boa: “Não resta dúvida de que a raiz principal repousa na absoluta falta de prioridade da questão étnica para o governo Luiz Inácio Lula da Silva, como o foi para todos os governos anteriores”. Segundo Maldos, dois problemas fundamentais agravam a questão: a ausência de recursos para a demarcação de territórios e para as demais políticas referentes aos povos indígenas e o sucateamento da Fundação Nacional do Índio (Funai) e demais instituições governamentais responsáveis pela questão indígena.
“Tudo indica um recrudescimento do preconceito, da criminalização, do ódio étnico e do absoluto desrespeito aos direitos indígenas para que tal cenário descrito tenha se constituído, envolvendo inclusive o sistema judicial e o poder policial”, conclui Maldos em seu artigo.
Ainda no campo, nas usinas e plantações de cana-de-açúcar e nos latifúndios em geral, outro problema persiste em assolar o meio rural brasileiro. Evanize Sydow chama atenção para o que vem sendo uma preocupação permanente nos relatórios de direitos humanos: a questão do trabalho escravo. “No ano passado, mostramos que houve um aumento das denúncias e que mais casos foram investigados. Este ano a Organização Internacional do Trabalho avaliou muito positivamente a atuação do governo Lula”, lembra.
Segundo ela, o artigo de Ricardo Rezende Figueira mostra que existem velhos problema estruturais que não foram resolvidos. “Existem coisas positivas, mas, depois de quatro anos, os problemas estruturais relacionados à questão não foram resolvidos”, afirma.
Vítimas da cidade
Depois dos ataques violentos atribuídos à organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), em São Paulo, a sensação de insegurança, impunidade e completa ineficiência do poder público dominou os brasileiros. O tema é tratado no relatório. Segundo Evanize, os artigos mostraram o quanto os números são variáveis e como não é possível ter a dimensão exata do que aconteceu. “Os dados da Ouvidoria nem sempre batem com os do Conselho Regional de Medicina (CRM) de São Paulo. O CRM fala em 493 vítimas de arma de fogo entre os dias 12 e 20 de maio, o período dos primeiros ataques. A Ouvidoria contou 47 vítimas dos ataques”.
São Paulo também é palco de outra análise na publicação. De acordo com a coordenadora do relatório, a situação dos migrantes bolivianos na cidade merece atenção. “Especialmente os que vivem em São Paulo estão numa situação muito próxima ao regime de escravidão. É difícil ter uma estimativa do número de migrantes, pois eles são clandestinos, mas deve haver cerca de 200 mil bolivianos em situação irregular só na Grande São Paulo”, estima Evanize.
Segundo ela, eles vivem em situação muito precária, trabalhando até 18 horas por dia e recebendo cerca de 30 centavos por peça costurada. “Disso ainda são descontados alimentação e moradia. No fim do mês, não chega a um salário mínimo. E existem alguns lugares em que eles realmente não podem sair”, conta. No caso dos migrantes bolivianos, explica, a situação em seu país de origem era tão pior que eles preferem viver dessa forma no Brasil.
Além da violência do desemprego – ou subemprego – e da produzida pelo crime organizado, outro artigo no relatório chama atenção para quem mais sofre com a violência urbana: a população negra. Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola, reconhece, no entanto, que no campo simbólico da luta pela igualdade racial o governo Lula tem uma avaliação positiva.
“A construção de uma Secretaria da Igualdade Racial, quatro ministros negros, um plano nacional de promoção da igualdade racial e um programa muito forte chamado Brasil Quilombola promoveram mudanças importantes nos últimos anos. Mas na área de segurança não foi feito absolutamente nada”, analisa Lúcia.
Ela acrescenta que é preciso observar que a maioria da população negra morre por causas violentas e que a falta de uma ação no campo da segurança para evitar essas mortes é um ponto importante a ser destacado. “O que eu quis mostrar é que aquele grupo que não se encaixa nos programas assistencialistas do governo ainda estão muito próximos à violência e que não tem nenhuma ação que possa favorecer ou ajudar esse grupo”, critica.
Nesse contexto, a mulher é uma das principais vítimas. “Quando pensamos em violência contra a mulher, temos de pensar em todo um contexto de violência. Ela pode ter um marido preso ou ter filhos adolescentes, sem contar os ambientes extremamente violentos em que vive. É uma situação de desconforto e insegurança permanentes. Todas as suas queixas são relegadas a segundo plano, como se o que elas vivem ou fazem não tivesse nada a ver com o restante da sociedade”, afirma a representante da Criola.
Lúcia conclui que é preciso que o Estado reveja a sua ação, melhore a qualidade das políticas e pense numa nova proposta que absorva a necessidade dessas pessoas. “Quais são as políticas sociais que estão dando conta dos grupos vulneráveis à ação do próprio Estado?”, questiona, referindo-se à grande parcela da população negra vítima da violência policial.
Cultura: enfim, boas novas
Na gestão do ministro Gilberto Gil, o Ministério da Cultura (Minc) teve efetivamente uma política voltada para a produção cultural, sobretudo para os grupos que normalmente não eram contemplados pelas políticas públicas. Quem dá a boa notícia é Antônio Eleilson Leite, da ONG Ação Educativa. Segundo ele, o exemplo maior disso é o programa Cultura Viva – em especial, os Pontos de Cultura, sua principal iniciativa.
Os Pontos de Cultura têm o objetivo de levar a arte para mais perto da população, sobretudo daquelas pessoas que normalmente têm um acesso limitado à produção cultural. “Hoje existem quase 500 Pontos de Cultura espalhados em todo o Brasil, de áreas urbanas a assentamentos da reforma agrária”, afirma Eleilson.
Segundo ele, a gestão do governo Lula deu seqüência a uma estabilidade política no ministério. “O ministério foi criado em março de 1985 e, até a posse de Francisco Weffort, em janeiro de 1995, teve dez ministros", recorda. "Ou seja, dez ministros em dez anos. E durante um tempo o órgão perdeu até o status de ministério e virou uma secretaria da Presidência da República”.
Eleilson destaca ainda que um aspecto interessante da gestão atual é a própria liderança do ministro Gilberto Gil. “Ele começou o mandato com muita desconfiança de diversos setores e com muita resistência dentro do PT. Conseguiu montar uma equipe plural e fez uma gestão muito respeitada. O Gil é hoje uma pessoa que debate a cultura com muita autoridade”, defende. Eleilson acredita que a combinação do carisma, da liderança, da popularidade e da visão política do atual ministro ajudou a fazer da gestão atual uma experiência bastante interessante.
Mesmo com esses aspectos positivos, o representante da Ação Educativa destaca dois problemas fundamentais. “O ponto crítico da gestão é o fato de a Lei Rouanet não ter sido mexida em nada. Quem decide o que será patrocinado são as empresas. Isso poderia ser muito mais democratizado, porque acaba consagrando o já consagrado. Outro aspecto negativo, que não é um problema do Gil, mas do governo Lula, é que o ministério continua na mesma em termos de orçamento”, afirma.
Segundo Eleilson, foi aprovado um aumento de 15% no orçamento para o ano que vem. “De R$ 600 milhões vai pra perto de R$ 700 milhões. Mas só o Sesc [Serviço Social do Comércio] de São Paulo tem um orçamento de R$ 300 milhões”, compara. “O Minc, com todas a s dificuldades orçamentárias, é uma área do governo Lula que deve ser vista pelos seus aspectos positivos. Um dos grandes méritos dessa gestão é ter reinventado o ministério”, afirma.
Diogo Moyses, do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social, concorda: “Muito pela atuação do Minc, a cultura e a comunicação foram trazidas de volta ao debate público e tornaram-se uma pauta política de fato”. Para ele, no entanto, não há o que comemorar em relação à atuação do Ministério das Comunicações.
“Pouco ou quase nada mudou no campo das comunicações em 2006”. É com essa frase que Moyses inicia o artigo que assina com Cristina Charão, também do Intervozes. Em uma série de temas criticados ao longo do texto, o ministério teve péssimo desempenho, como em relação às rádios comunitárias e no debate sobre o padrão da TV digital.
“A marca do governo Lula é a ausência de políticas para o campo da comunicação. Não houve, nesse primeiro mandato, qualquer política estratégica para esse campo. Essa ausência de políticas, vinculada a um pragmatismo eleitoral muito grande, especialmente no caso da televisão digital, levou a um quadro em que a comunicação foi tratada como um instrumento para fazer política e não como um campo de direitos”, critica Moyses.
Ele destaca, no entanto, um avanço: que a comunicação vem, cada vez mais, sendo reconhecida pela sociedade civil como um direito humano. “Por outro lado, temos uma dificuldade muito grande de estreitar o poder estabelecido das grandes empresas comerciais de comunicação. Talvez esse seja o poder político mais consolidado do Brasil, mais até que o das oligarquias regionais”, lamenta.
“Ficou claro que, sem democracia no campo das comunicações, qualquer outra transformação se torna muito difícil”, conclui.
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