Você está aqui

Anjos e demônios

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original:






Anjos e demônios
Model Mirror
flickr.com/people/voidit
Nas últimas semanas, a grande mídia tem veiculado várias notícias cujo foco é o mau uso de dinheiro público e repasse sem controle de verbas para organizações não-governamentais (ONGs). Entidades teoricamente sem fim de lucro se mostraram fachada para enriquecimento de seus dirigentes ou para favorecimento de pessoas ligadas a membros da administração pública. A seqüência de reportagens sobre ONGs e sua relação com o Estado reavivou os pedidos de instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e provocou, para a grande maioria da população que desconhece os obejtivos e histórico das ONGs, uma “demonização” do terceiro setor.

Para Taciana Gouveia, diretora executiva da Associação Brasileira de ONGs (Abong), as matérias têm generalizado casos particulares para todas as organizações da sociedade civil, o que prejudica as entidades sérias, que há anos trabalham para a diminuição da desigualdade social e pelo aperfeiçoamento da democracia nacional. “Somos chamados para falar sobre o conjunto das ONGs no Brasil, quando não somos representantes de todas elas”, reclama. “Esse é um universo de 270 mil entidades, mas a Abong tem apenas 270 como associadas. A fala oficial é nossa, mas como distinguir o campo da Abong dos outros, que não são ONGs no sentido histórico e político que temos?”.

Para ela, é preciso construir um marco legal que torne mais clara as nuances desse setor. Juridicamente, o termo ONG não existe e, portanto, todas as entidades sem fim de lucro - de universidades a movimentos sociais, passando por associações desportivas - acabam reunidas na mesma categoria. No entanto, as áreas de atuação são bastante diferentes e sujeitas a regras ainda mais diversas. "O acesso a fundos públicos, por exemplo, se dá de forma diferenciada para cada um", ressalta Gouvêa.

Nesta entrevista, Taciana, que também é dirigente da ONG SOS Corpo, baseada em Recife (PE), fala da cobertura da mídia sobre os recentes casos e aponta caminhos para o debate em relação ao terceiro setor.



Rets - Nas últimas semanas, a mídia tem feito muitas denúncias de casos de mau uso de dinheiro público por ONGs. Como a Abong analisa essa cobertura?

Taciana Gouveia - No plano regional, repercute muito pouco, apesar de há pelo menos seis meses o problema da necessidade de fiscalização das ONGs estar em pauta - com menor ou maior intensidade. Já da mídia nacional, não há como esperar algo diferente do que está acontecendo: uma criminalização.

Rets - Por que não havia como esperar algo diferente?

Taciana Gouveia - A mídia nacional nunca foi a favor de algo questionador da realidade. Os jornalistas nos procuram sempre, é preciso dizer, mas nossa fala sempre acaba tendo menos espaço que as demais. Por isso não é espantoso que haja essa criminalização e demonização das ONGs e movimentos sociais. Um exemplo é a capa de uma recente edição da revista Exame, cujo título [“ONGs, os novos inimigos do capitalismo”] adorei.

Isso tudo vem em um processo longo, mas para a Abong é um complicador. Somos chamados para falar sobre o conjunto das ONGs no Brasil, quando não somos representantes de todas elas. Esse é um universo de 270 mil entidades, mas a Abong tem apenas 270. A fala oficial é nossa, mas como distinguir o campo da Abong dos outros, que não são ONGs no sentido histórico e político que temos?

Rets - E qual é esse sentido?

Taciana Gouveia - A Abong surgiu há 15 anos, sendo que várias de suas associadas já existiam desde bem antes. Há dez anos, porém, as ONGs eram praticamente desconhecidas de todos, mas as ligadas à Abong eram reconhecidas por sua ação política e social. Dos anos 90 para cá, começaram a surgir várias organizações cujo foco não era mais a missão política e de superação da desigualdade. ONG, afinal, é tudo o que você pode imaginar - desde universidades a hospitais, passando pela associação de dominó. Daí falam que o Estado gasta R$ 11 bilhões com ONGs, mas essa conta não deixa claro para onde vai o dinheiro. Afinal o repasse para hospitais, universidades e outras entidades é gigantesco.

Logo, ao mesmo tempo em que abrange tudo, não necessariamente essas organizações fazem parte do campo da Abong.

Rets - Uma mudança na legislação deixaria essas distinções mais nítidas?

Taciana Gouveia - Na verdade, precisamos de uma legislação mais precisa. As ONGs já são controladas, tanto no que se refere aos recursos oriundos da cooperação internacional quanto no uso de recursos públicos. Prestamos contas e somos auditados pelo TCU [Tribunal de Contas da União]. Porém não existe algo mais preciso, algo que explicite o que é cada entidade. Até porque o acesso a fundos públicos é diferenciado.

Lutamos por essa alteração na lei há muito tempo, inclusive pressionando o governo durante todo esse primeiro mandato.

Rets - Como seria essa nova legislação?

Taciana Gouveia - Não queremos nos diferenciar das demais entidades. Mas qualquer alteração no campo jurídico é também uma briga política. É difícil, por exemplo, obter um certificado de entidade filantrópica, que dispensa o pagamento da contribuição patronal. Precisamos de algo que deixe os critérios de concessão mais claros ou os universalize.

Questões como essa fazem com que o processo não ande. É preciso mexer no campo institucional, e ele envolve muitos interesses.

Rets - Que interesses são esses?

Taciana Gouveia - As entidades filantrópicas, que temem perder vantagens, e entidades ligadas a deputados, por exemplo.

Rets - Recentemente, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, afirmou ser preciso "apertar o cerco" às ONGs. Você concorda com essa análise?

Taciana Gouveia - É preciso distinguir sociedade civil de Estado. Não estamos na estrutura do Estado, não sei o que ele chama de apertar o cerco. Não temos interesse corporativo em evitar investigações, mas é preciso admitir que há muitas ONGs criadas sem objetivos claros, assim como em qualquer outro setor. Há diversas empresas que desviam recursos, e a repercussão é bem menor. É preciso apertar os mecanismos já existentes.

Rets - Esses mecanismos são eficientes?

Taciana Gouveia - Não, como em qualquer área. As leis não se cumprem e são fraudadas. Porém pensar que há uma relação que seja naturalmente viciada é um erro. Claro que há mais ou menos interesses, e a relação pode ser correta ou não. Há problemas também na relação entre Estado e empresas, é da estrutura da sociedade patrimonialista e privatista em que vivemos e não um vício de origem das ONGs.

Rets - Há deputados propondo a instalação de uma CPI para investigar as ONGs. Você acha que ela pode sair do papel?

Taciana Gouveia - Ela já tem assinaturas para isso, mas o problema é o fim da atual legislatura. Há questões de quando ela vai ser instalada ou não para sobreviver. Ainda assim, acredito que seja criada, sim, mas no que vem. Até porque a mídia tem falado em “ONGs do PT”, o que não somos. O foco, agora, é a transferência de recursos do Estado, mas antes era a questão ambiental e dos interesses estrangeiros no território nacional. Aliás, isso é curioso: ninguém fala nada quando a Monsanto entra no país, compra terras, planta transgênicos. Mas quando uma ONG recebe dinheiro do exterior, há problemas...

Talvez o governo tenha peso político para evitar a CPI, cujo objetivo é, claramente, desgastar a atual administração, que historicamente sempre teve uma ligação maior com ONGs e movimentos sociais. Agora, isso tudo é muito ruim. Um instrumento importante como a CPI não deveria ser usado para fazer desgaste político.

Rets - A instalação de uma CPI não pode ter um efeito positivo, uma vez que vai gerar discussões? Não pode ser um espaço para esclarecimentos?

Taciana Gouveia - Depende da composição e da intenção da CPI. O que faria bem mesmo é iniciar um processo de construção de um marco legal. Isso seria mais interessante. A CPI supõe um crime de origem, não é o melhor caminho.

Rets - E qual seria o melhor caminho?

Taciana Gouveia - A realização de seminários, grupos de trabalho e o fortalecimento do diálogo com o Executivo. Algo, enfim, que pudesse tornar-se um fato político dentro do processo democrático. E, claro, que todas as irregularidades sejam apuradas e punidas. A Abong vai lutar para que o debate continue logo no começo do próximo mandato.

Rets - Essas denúncias acabam prejudicando as associadas da Abong, que até agora não foram acusadas?

Taciana Gouveia - Sim. Mesmo que nenhuma apareça, acaba resvalando. Novamente, só quem fala em nome das ONGs é a Abong, seja lá quem for o envolvido. Depois das denúncias sobre o desvio de dinheiro de uma entidade ligada à luta contra o câncer, as doações para outras organizações com o mesmo trabalho caíram.

Rets - A realização de balanços, por parte das ONGs, não poderia ser uma forma de evitar acusações e aumentar a transparência?

Taciana Gouveia - Precisamos crescer na prestação de contas, e tentamos estimular isso entre as associadas. Não porque estão pressionando as ONGs, mas porque esse é um ato democrático.

Marcelo Medeiros

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer