Autor original: Marcelo Medeiros
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Para Taciana Gouveia, diretora executiva da Associação Brasileira de ONGs (Abong), as matérias têm generalizado casos particulares para todas as organizações da sociedade civil, o que prejudica as entidades sérias, que há anos trabalham para a diminuição da desigualdade social e pelo aperfeiçoamento da democracia nacional. “Somos chamados para falar sobre o conjunto das ONGs no Brasil, quando não somos representantes de todas elas”, reclama. “Esse é um universo de 270 mil entidades, mas a Abong tem apenas 270 como associadas. A fala oficial é nossa, mas como distinguir o campo da Abong dos outros, que não são ONGs no sentido histórico e político que temos?”.
Para ela, é preciso construir um marco legal que torne mais clara as nuances desse setor. Juridicamente, o termo ONG não existe e, portanto, todas as entidades sem fim de lucro - de universidades a movimentos sociais, passando por associações desportivas - acabam reunidas na mesma categoria. No entanto, as áreas de atuação são bastante diferentes e sujeitas a regras ainda mais diversas. "O acesso a fundos públicos, por exemplo, se dá de forma diferenciada para cada um", ressalta Gouvêa.
Nesta entrevista, Taciana, que também é dirigente da ONG SOS Corpo, baseada em Recife (PE), fala da cobertura da mídia sobre os recentes casos e aponta caminhos para o debate em relação ao terceiro setor.
Rets - Nas últimas semanas, a mídia tem feito muitas denúncias de casos de mau uso de dinheiro público por ONGs. Como a Abong analisa essa cobertura?
Taciana Gouveia - No plano regional, repercute muito pouco, apesar de há pelo menos seis meses o problema da necessidade de fiscalização das ONGs estar em pauta - com menor ou maior intensidade. Já da mídia nacional, não há como esperar algo diferente do que está acontecendo: uma criminalização.
Rets - Por que não havia como esperar algo diferente?
Taciana Gouveia - A mídia nacional nunca foi a favor de algo questionador da realidade. Os jornalistas nos procuram sempre, é preciso dizer, mas nossa fala sempre acaba tendo menos espaço que as demais. Por isso não é espantoso que haja essa criminalização e demonização das ONGs e movimentos sociais. Um exemplo é a capa de uma recente edição da revista Exame, cujo título [“ONGs, os novos inimigos do capitalismo”] adorei.
Isso tudo vem em um processo longo, mas para a Abong é um complicador. Somos chamados para falar sobre o conjunto das ONGs no Brasil, quando não somos representantes de todas elas. Esse é um universo de 270 mil entidades, mas a Abong tem apenas 270. A fala oficial é nossa, mas como distinguir o campo da Abong dos outros, que não são ONGs no sentido histórico e político que temos?
Rets - E qual é esse sentido?
Taciana Gouveia - A Abong surgiu há 15 anos, sendo que várias de suas associadas já existiam desde bem antes. Há dez anos, porém, as ONGs eram praticamente desconhecidas de todos, mas as ligadas à Abong eram reconhecidas por sua ação política e social. Dos anos 90 para cá, começaram a surgir várias organizações cujo foco não era mais a missão política e de superação da desigualdade. ONG, afinal, é tudo o que você pode imaginar - desde universidades a hospitais, passando pela associação de dominó. Daí falam que o Estado gasta R$ 11 bilhões com ONGs, mas essa conta não deixa claro para onde vai o dinheiro. Afinal o repasse para hospitais, universidades e outras entidades é gigantesco.
Logo, ao mesmo tempo em que abrange tudo, não necessariamente essas organizações fazem parte do campo da Abong.
Rets - Uma mudança na legislação deixaria essas distinções mais nítidas?
Taciana Gouveia - Na verdade, precisamos de uma legislação mais precisa. As ONGs já são controladas, tanto no que se refere aos recursos oriundos da cooperação internacional quanto no uso de recursos públicos. Prestamos contas e somos auditados pelo TCU [Tribunal de Contas da União]. Porém não existe algo mais preciso, algo que explicite o que é cada entidade. Até porque o acesso a fundos públicos é diferenciado.
Lutamos por essa alteração na lei há muito tempo, inclusive pressionando o governo durante todo esse primeiro mandato.
Rets - Como seria essa nova legislação?
Taciana Gouveia - Não queremos nos diferenciar das demais entidades. Mas qualquer alteração no campo jurídico é também uma briga política. É difícil, por exemplo, obter um certificado de entidade filantrópica, que dispensa o pagamento da contribuição patronal. Precisamos de algo que deixe os critérios de concessão mais claros ou os universalize.
Questões como essa fazem com que o processo não ande. É preciso mexer no campo institucional, e ele envolve muitos interesses.
Rets - Que interesses são esses?
Taciana Gouveia - As entidades filantrópicas, que temem perder vantagens, e entidades ligadas a deputados, por exemplo.
Rets - Recentemente, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, afirmou ser preciso "apertar o cerco" às ONGs. Você concorda com essa análise?
Taciana Gouveia - É preciso distinguir sociedade civil de Estado. Não estamos na estrutura do Estado, não sei o que ele chama de apertar o cerco. Não temos interesse corporativo em evitar investigações, mas é preciso admitir que há muitas ONGs criadas sem objetivos claros, assim como em qualquer outro setor. Há diversas empresas que desviam recursos, e a repercussão é bem menor. É preciso apertar os mecanismos já existentes.
Rets - Esses mecanismos são eficientes?
Taciana Gouveia - Não, como em qualquer área. As leis não se cumprem e são fraudadas. Porém pensar que há uma relação que seja naturalmente viciada é um erro. Claro que há mais ou menos interesses, e a relação pode ser correta ou não. Há problemas também na relação entre Estado e empresas, é da estrutura da sociedade patrimonialista e privatista em que vivemos e não um vício de origem das ONGs.
Rets - Há deputados propondo a instalação de uma CPI para investigar as ONGs. Você acha que ela pode sair do papel?
Taciana Gouveia - Ela já tem assinaturas para isso, mas o problema é o fim da atual legislatura. Há questões de quando ela vai ser instalada ou não para sobreviver. Ainda assim, acredito que seja criada, sim, mas no que vem. Até porque a mídia tem falado em “ONGs do PT”, o que não somos. O foco, agora, é a transferência de recursos do Estado, mas antes era a questão ambiental e dos interesses estrangeiros no território nacional. Aliás, isso é curioso: ninguém fala nada quando a Monsanto entra no país, compra terras, planta transgênicos. Mas quando uma ONG recebe dinheiro do exterior, há problemas...
Talvez o governo tenha peso político para evitar a CPI, cujo objetivo é, claramente, desgastar a atual administração, que historicamente sempre teve uma ligação maior com ONGs e movimentos sociais. Agora, isso tudo é muito ruim. Um instrumento importante como a CPI não deveria ser usado para fazer desgaste político.
Rets - A instalação de uma CPI não pode ter um efeito positivo, uma vez que vai gerar discussões? Não pode ser um espaço para esclarecimentos?
Taciana Gouveia - Depende da composição e da intenção da CPI. O que faria bem mesmo é iniciar um processo de construção de um marco legal. Isso seria mais interessante. A CPI supõe um crime de origem, não é o melhor caminho.
Rets - E qual seria o melhor caminho?
Taciana Gouveia - A realização de seminários, grupos de trabalho e o fortalecimento do diálogo com o Executivo. Algo, enfim, que pudesse tornar-se um fato político dentro do processo democrático. E, claro, que todas as irregularidades sejam apuradas e punidas. A Abong vai lutar para que o debate continue logo no começo do próximo mandato.
Rets - Essas denúncias acabam prejudicando as associadas da Abong, que até agora não foram acusadas?
Taciana Gouveia - Sim. Mesmo que nenhuma apareça, acaba resvalando. Novamente, só quem fala em nome das ONGs é a Abong, seja lá quem for o envolvido. Depois das denúncias sobre o desvio de dinheiro de uma entidade ligada à luta contra o câncer, as doações para outras organizações com o mesmo trabalho caíram.
Rets - A realização de balanços, por parte das ONGs, não poderia ser uma forma de evitar acusações e aumentar a transparência?
Taciana Gouveia - Precisamos crescer na prestação de contas, e tentamos estimular isso entre as associadas. Não porque estão pressionando as ONGs, mas porque esse é um ato democrático.
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