Autor original: Joana Moscatelli
Seção original: Serviços de interesse para o terceiro setor
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Dados recentes da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Tráfico de Armas revelam que a maioria das armas utilizadas em crimes no Brasil é de fabricação nacional (86%) e tem origem legal (68%). Em dezembro, o Estatuto do Desarmamento, que prevê um maior controle das armas de fogo no país, completa três anos, mas os desafios à sua implementação ainda perduram. Foi com o objetivo de monitorar essa implementação, bem como a aplicação de outras medidas de controle de armas de fogo e munições, que a Rede Desarma Brasil, composta por diversas organizações brasileiras que trabalham com prevenção à violência e promoção da Cultura de Paz, criou o site De Olho no Estatuto do Desarmamento.
Coordenadora do projeto Rede pelo Desarmamento, da ONG Sou da Paz, Beatriz Cruz diz que o site vai funcionar como um “observatório da nova lei de controle de armas”, permitindo que as pessoas compreendam a história da sua aprovação e entendam os principais pontos e mudanças da legislação. “Queremos, com isso, que a população conheça a lei, tenha onde buscar informações sobre o Estatuto e possa visualizar sua importância, divulgá-la e defendê-la. Para isso também temos uma seção Resultados, com uma série de matérias em que mostramos os impactos do Estatuto”.
“Episódio atípico”
O site contém ainda uma seção específica que trata do referendo sobre proibição do comércio de armas e munições, realizado em outubro do ano passado. Na ocasião, apesar da campanha de conscientização e de coleta de armas feita por organizações da sociedade civil em parceria com o governo federal, a maioria da população decidiu pela não-proibição do comércio. Para Beatriz, o referendo, o primeiro a ser realizado no país, foi um “episódio atípico” dentro da história de luta pelo controle de armas no Brasil. Além do curto tempo para tratar de um tema complexo como este, as regras das campanhas, tanto daqueles que defendiam a proibição como daqueles que eram contra, não foram bem definidas.
“Nossa análise, porém, é que, apesar do resultado negativo do referendo, o Estatuto do Desarmamento continuou valendo. E melhor: gerando resultados. Ao mesmo tempo, formou-se uma grande rede da sociedade civil organizada. Parceiros do Brasil todo preocupados com a melhoria da segurança pública passaram a trabalhar em conjunto, trocar idéias e informações. E, na verdade, são estas pessoas, que defenderam o 'sim' [o voto pela proibição do comércio de armas], que estão fazendo projetos e influenciando as políticas de segurança pública, baseados na qualificação da repressão e, principalmente, na prevenção à violência”, comemora.
De Olho no Estatuto do Desarmamento também estimula a participação popular na implementação do Estatuto. A idéia é que as pessoas tenham ali um canal de participação, possam difundir informações sobre a importância do controle de armas, monitorar os parlamentares que receberam dinheiro das indústrias de armas, ajudar a divulgar o Estatuto e fiscalizar se ele está sendo cumprido.
Segundo Beatriz, o resultado da CPI do Tráfico de Armas trouxe informações importantes, subsidiadas por depoimentos e pesquisas, mas é preciso que as medidas indicadas ali sejam colocadas em prática. Nesse contexto, o site servirá como um importante instrumento de controle e monitoramento. “Agora a luta é fazermos com que essas propostas de projetos de lei se tornem de fato projetos de lei e que sejam aprovadas. E isso não é nada fácil, pois na Câmara dos Deputados enfrentamos um lobby poderoso da Bancada da Bala – deputados que tiveram suas campanhas pagas por indústrias de armas e munições”, denuncia.
Desafios para implementação do Estatuto
Ainda existem muitas questões técnicas e burocráticas que dificultam o processo de aplicação do Estatuto do Desarmamento. Para o coronel da Reserva da Brigada Militar do Rio Grande do Sul e integrante do núcleo Violência, Segurança e Direitos Humanos da ONG Guayí, Luiz Antônio Brenner Guimarães, o Estatuto do Desarmamento vem sendo implantado e consolidado aos poucos. Ele ressalta o aumento do número de armas apreendidas durante as intervenções policiais. Porém lamenta a "omissão" da maioria das forças policiais, que permanecem numa postura neutra em relação ao Estatuto. “A convivência durante a campanha do referendo e no transcorrer deste ano, pelo menos aqui no Rio Grande do Sul, trouxe um sentimento de estranheza em relação à contradição demonstrada pela maioria das manifestações dos profissionais das polícias. Pois sendo os responsáveis pela operacionalização das políticas de segurança pública, em especial pelo controle do uso e pela retirada de circulação das armas ilegais, não reconhecem os benefícios dos mecanismos previstos no Estatuto. Pelo contrário, tendem a defender o seu enfraquecimento, tanto nas restrições como no controle de armas – situação que os fatos e a consolidação do Estatuto devem mudar” alerta.
Guimarães acha que o Estatuto oferece melhores condições de trabalho aos órgãos policiais, na medida em que cria um registro centralizado das armas do país, permite o cruzamento de informações e estabelece como crimes várias condutas de uso inadequado e ilegal de armas. Mesmo assim, lamenta que o tema nunca tenha sido tratado da maneira adequada no âmbito das próprias forças policiais. “A irrelevância do tema da arma para as polícias pode ser verificada pelo desinteresse em estudar a rotina das próprias armas que a polícia apreende. A maioria das organizações policiais, que rotineiramente apreende armas, não possui, ou pelo menos não demonstra publicamente possuir, nenhum estudo que revele que armas são apreendidas, sua origem e trajetória”.
Talvez isso se explique, em parte, por um dos resultados apontados na CPI: 18% das armas envolvidas em crimes são originárias das forças de segurança pública e das Forças Armadas. “A aplicação das regras contidas no Estatuto do Desarmamento, especialmente o registro centralizado e o cruzamento de informações, à medida que vai se consolidando, trará maior eficiência na prevenção, no controle e na inibição da transferência de armas para a ilegalidade, inclusive no âmbito das forças policiais e das Forças Armadas”, defende o coronel.
Segundo Guimarães, as crenças existentes no uso da arma e o superficial debate público sobre a insegurança e suas causas estão entre as principais dificuldades para a consolidação do Estatuto. “A combinação de um cenário de insegurança e violência generalizada e a ausência de perspectiva de projetos governamentais na área contribui para uma compreensão confusa em relação às diversas dimensões das causas da violência e suas manifestações. Isto possibilita a predominância de uma tendência conservadora, que fortalece o pensamento individualista, reforçando a ilusão de que a segurança do indivíduo pode ser sustentada somente na defesa própria", alerta.
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