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Sobre a CPI das ONGs

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Artigos de opinião








Abong*


A Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) vem a público posicionar-se em relação à CPI das ONGs proposta recentemente pelo Senador Hieráclito Fortes (PFL - PI). Motivada a partir de um levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre irregularidades no repasse de recursos públicos a entidades da sociedade, com base em uma amostragem de 28 organizações entre os anos de 1999 e 2005, questionamos alguns motivos que provocam a criação da CPI por, dentre outros, três pontos fundamentais.


O primeiro refere-se ao estranho recorte de tempo abordado pela CPI, a qual propõe investigar convênios do governo federal com ONGs apenas a partir de 2003. O segundo ponto refere-se à abordagem, a priori, de criminalização das entidades, uma vez que se propõe a tratar em uma CPI questões relativas a irregularidades, para as quais o TCU tem instrumentos cabíveis de ajuste e que não necessariamente relacionam-se à má fé no trato do dinheiro público. O terceiro, à falsa problematização de que não há instrumentos de regulação dessas entidades nem de fiscalização do acesso ao dinheiro público. O direito de livre associar-se é constitucionalmente assegurado, assim como também o são diversos mecanismos de controle de acesso a recursos públicos, tais como esferas democráticas como os conselhos setoriais de políticas públicas. Além disso, se não há número suficiente de agentes governamentais para fiscalização dos convênios e se leis estão sendo burladas, são questões que precisam ser enfrentadas democraticamente pela sociedade.


Na realidade, a forma como o debate tem sido tratado nos parece mais motivado por disputas político-partidárias do que pelo intuito real de discutir publicamente sobre a importância da regulação, controle e fiscalização da sociedade sobre o acesso e uso democrático de recursos públicos.


Nunca é tarde lembrar que, em uma cultura marcada pelo autoritarismo e por um Estado patrimonialista, dinheiro público não é dinheiro de governo, mas que seus destinos devem ser decididos em debates democráticos, nos quais estão em disputa concepções sobre Estado, sobre papel da sociedade e, principalmente, sobre projetos de desenvolvimento. 


Nesse sentido, cabem alguns esclarecimentos sobre identidades desse universo. O termo ONG não existe juridicamente. Embora sejam organizações presentes na história brasileira desde a República Velha, é nos anos de 1990, no auge da entrada do neoliberalismo no Brasil e da reforma do Estado, com pressões para diminuição dos gastos públicos, que há o boom dessas organizações. No entanto, muitas outras já existiam há anos e tiveram papel fundamental no processo de redemocratização do país. 


Juridicamente elas aparecem no formato de fundações – que precisam ter patrimônio prévio – ou de associações. Dentre as associações há diferentes regulações, segundo as quais elas podem ser: (i) Organizações Sem Fins Lucrativos (OSFL); (ii) Organizações da Sociedade Civil (OSC) ou (iii) Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips). Essas especificações pouco servem para esclarecer à sociedade diferenças quanto a papéis, identidade e mesmo idoneidade. São apenas regulações e o sentido de suas atuações ocorrerá por meio dos projetos de sociedade que veiculam, dos temas e objetivos que mobilizam suas práticas e dos compromissos éticos que cada entidade possui. 


A forma como a CPI tem impulsionado o debate, claramente criminalizadora e generalista em relação às ONGs, tratando-as pejorativamente como se fossem todas iguais, prejudica não apenas o trabalho de entidades sérias, como contribui para o enfraquecimento da democracia e para confundir a sociedade sobre o que está realmente em jogo.


Como vimos fazendo em outros momentos, estamos abertos(as) a contribuir com o diálogo democrático para a construção clara de critérios, de mecanismos de regulação e de fiscalização sobre recursos públicos, partindo do princípio que é importante um Estado democrático forte e bem equipado com recursos humanos qualificados, para que possa também viabilizar o acompanhamento de convênios e do acesso a fundos públicos, seja em projetos demonstrativos com ONGs, empresas e mesmo órgãos públicos.


Fundada em 1991, esta Associação aglutina mais de 280 das mais importantes e respeitadas organizações não-governamentais do Brasil, as quais historicamente contribuem para a construção da democracia, para a luta contra a violação de direitos humanos e de desigualdades sociais. Mesmo com um pequeno número de associadas em relação ao amplo e complexo universo das organizações sem fins lucrativos – apenas no Brasil esse número ultrapassa 200 mil organizações –, a Abong se constitui efetivamente num sujeito social coletivo de dimensão nacional, que tem sido referência na interlocução e definição de pautas políticas com governos, parlamentos, mídia e segmentos da sociedade desde a sua fundação.



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A nota foi divulgada originalmente no site da Abong,
www.abong.org.br.






A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados.

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