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Sociedade criminosa

Autor original: Maria Eduarda Mattar

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Conscientizar para o fato de que discriminar – além de ato avesso à cidadania – é crime e tem penas cabíveis. Mais que isso: conscientizar os próprios agentes da lei sobre isso. Este é o grande desafio a que se propõe Claudia Werneck, jornalista que há cinco anos criou a ONG Escola de Gente e hoje pode ser considerada uma das principais ativistas brasileiras da causa da inclusão – ampla, geral e irrestrita – tanto de pessoas com deficiência, alvo mais comum de seu trabalho, como de diversos grupos minoritários.

Em entrevista concedida à Rets durante sua participação na II Reunião Especializada de Ministérios Públicos do Mercosul, Claudia fala sobre as lutas atuais da Escola de Gente e sobre o documento “É criminoso discriminar” – construído por representantes da sociedade civil e dos Ministérios Públicos de nove países da América Latina e assinado por 28 organizações da sociedade civil. E sentencia: “Cada pessoa é, simultaneamente, alguém que discrimina e é discriminado. Esse é o grande jogo que jogamos sem perceber”.



Rets -
Volta e meia, o tema das pessoas com deficiência vem à tona na sociedade, por motivos pontuais. Um dos principais é quando o tema é tratado em novelas, como o que acontece atualmente em Páginas da Vida, no horário nobre da principal emissora brasileira. Esse tipo de acontecimento mais ajuda ou atrapalha o trabalho de vocês?

Claudia Werneck - Depende. Dar visibilidade ao tema não tem qualquer relação com combater processos de discriminação e garantir o exercício de direitos humanos para crianças com deficiência. Eu e, depois, a Escola de Gente temos dado consultoria voluntária para a TV Globo nessa área há 15 anos, justamente por acreditar que uma construção adequada do tema na TV, principalmente nas novelas e nos programas de horário nobre, pode significar décadas de avanço. No caso da novela Páginas da Vida, de cujo autor [Manoel Carlos] também somos consultores, tomamos a decisão e participamos à TV Globo que só faríamos a consultoria da novela se esta não assumisse posições consideradas por nós – e pelo Ministério Público – inconstitucionais. Vimos nas primeiras cenas da novela momentos em que a causa da inclusão e dos direitos humanos foi abordada de forma esplêndida pela dramaturgia.

Por outro lado, temos nos posicionado também, junto à TV Globo, sobre o perigo de algumas cenas da novela terem ido ao ar. Uma delas, recentemente, causou, em nosso modo de ver, um grande mal à sociedade, e temos tido provas diárias disso. A cena foi aquela em que a personagem Helena, interpretada por Regina Duarte, conversa com a mãe de uma criança com Síndrome de Down que está em escola especial. A conversa dá a entender que a escola especial substitui a escola regular, quando, na verdade, a primeira é pura e simplesmente complementar. Uma criança que está estudando apenas na escola especial está, pela Constituição brasileira, fora da escola.

Rets - Seu trabalho – e, por extensão, o da Escola de Gente – já vem há alguns anos tentando conscientizar sobre uma abordagem ampla e abrangente de inclusão: uma visão que demanda mudanças culturais e de atitudes nas pessoas, para encararem as diferenças (de qualquer ordem e tamanho) apenas como diferenças, e não algo que debilita a convivência ou torna o indivíduo menos apto para nada. Ao longo desses últimos anos, você percebe alguma diferença mais significativa no modo de as pessoas encararem as diferenças? Em quais setores?

Claudia Werneck - Os avanços existem, em todas as áreas, mas – como as práticas de discriminação e violação de direitos humanos em função de diferenças e desigualdades são seculares e já estamos habituadas a exercê-las sem mesmo percebermos –, estes avanços têm impacto apenas pontual e raramente ocasionam mudanças de mentalidade e de atitude. Pensar a partir de estigmas – entre eles o de que uma criança com deficiência tem menos valor, inclusive para o futuro da sociedade, do que uma criança sem deficiência – é extremamente confortável e sedutor. Até quando o estigma é bom, ele é mau, como é o caso de um aluno ou aluna que “conquista” o título de o melhor da sala e deve honrar esse título perante seus professores, sua família e seus amigos. A cada nota, a cada prova, exigem sua competência. “Respeitar a diferença”, “viva a diferença” e “ser diferente é normal” são frases extremamente simpáticas e que nos parecem transformadoras e inclusivas. Entretanto, ao contrário, refletem apenas a discriminação com uma “roupinha moderna”.

Rets - Você está participando, como representante da sociedade civil, da primeira etapa da II Reunião Especializada de Ministérios Públicos do Mercosul*. Como o tema da inclusão está sendo abordado e tratado no evento? Há pontos polêmicos?

Claudia Werneck - Sim, há pontos polêmicos, principalmente sobre a responsabilização de quem comete o crime, por isso o inovadorismo do Ministério Público brasileiro ao tratar do tema da inclusão, dos direitos humanos e da não-discriminação na reunião. É a primeira vez que a sociedade civil do Mercosul participa desse evento. A Escola de Gente esteve representada por Marcela Vecchione, cientista política e nossa consultora para América Latina; Juan Torres, jornalista, e eu. O convite para nossa participação foi feito por Eugênio Aragão, subprocurador geral da República, diretor-adjunto da Escola Superior do Ministério Público da União e um dos responsáveis pela Cooperação Jurídica Internacional da Procuradoria Geral da República.

Como a reunião era para discutir cooperação entre os países do Mercosul sobre práticas referentes à punição e à prevenção de crimes na região, alguns representantes do Ministério Público brasileiro entenderam que falar de inclusão e, principalmente, de políticas públicas inclusivas – conceito que a Escola de Gente estuda, defende e dissemina – seria atingir em cheio esses pontos obscuros nas discussões e definições do que é crime na América do Sul.

Nesse sentido, mais importante que combater o crime em conjunto quando ele já existe é sociedade civil e Ministério Público trabalharem em parceria para que as políticas públicas sejam fiscalizadas, a fim de evitar ações criminosas e discriminatórias. Essa chamada para a conscientização é importante, pois para a maior parte dos MPs do Mercosul o termo criminoso ainda está relacionado apenas a lavagem de dinheiro, corrupção e homicídios.

Rets - A questão-chave, então, seria ampliar a visão dos MPs sobre o que é crime?

Claudia Werneck - Em muitos países da América do Sul, a discriminação não é vista como crime, muito embora - embora tenham assinado convenções internacionais que ratifiquem tal classificação. Dessa forma, a dificuldade maior está em associar institucionalmente as formas sutis de discriminação como crime. Mais ainda, como crime praticado no âmbito público. Quando, por exemplo, um indígena não recebe atendimento médico por não possuir um documento de identidade – posto que não é cidadão de país algum da região, como é o caso Guarani –, não se questiona o fato de isso ocorrer por ele não ter sua condição social e política reconhecida. Essa falta de reconhecimento é a causa última de sua discriminação. Contudo apenas o seu não-atendimento pelo serviço de saúde será observado.

Movimentos como esse alimentam um ciclo que torna os indígenas cada vez mais invisíveis. Não há políticas que os contemplem, políticas públicas inclusivas, que levariam a um desenvolvimento inclusivo e, conseqüentemente, a um menor índice de criminalidade.

Rets - A participação neste evento vem depois da elaboração e publicação do documento "É criminoso discriminar", carta produzida pela Escola de Gente e apresentada nessa reunião, como proposta brasileira, a membros do Ministério Público. Você pode explicar os principais motivos dessa estratégia? Ou seja, por que sensibilizar os Ministérios Públicos?

Claudia Werneck - A Escola de Gente tem quase cinco anos de existência e é uma organização de jornalistas e ativistas em inclusão. Nós já nascemos atuando em parceria com o Ministério Público Federal. Todos os nossos projetos e programas partem da premissa de que é preciso construir uma aliança estratégica entre direito e comunicação como estrutura para qualquer processo de transformação social. Daí o nome do projeto-piloto de todo o movimento ser Mídia Legal.

Uma carta tão específica, propositiva e, ao mesmo tempo, profunda em termos conceituais como é o documento "É criminoso discriminar" [mais detalhes no box ao lado] só foi possível porque a Escola de Gente e a Escola Superior do Ministério Público da União desejaram e tiveram a iniciativa de compartilhar o trabalho em conjunto com parceiros de outros estados e países. Exercitamos a parceria, e agora queremos que outros a exercitem também.

Com isso, os motivos para traçar a estratégia de cooperação entre Ministério Público e sociedade civil vêm da crença de que, embora os dois "órgãos" tenham independência de ação, ambos poderiam ser mais eficientes em seus propósitos trabalhando juntos. No Brasil, onde o MP tem a competência de trabalhar com os chamados direitos difusos – entre os quais estão os direitos humanos –, essa sensibilização é importantíssima, na medida em que a sociedade civil poderia acionar diretamente o órgão para as questões relativas à discriminação. Ou contar com ele não apenas para denúncia, mas também para projetos de formação de juventude. Movimentos da sociedade civil poderiam ser observadores e avaliadores das políticas públicas e do nível de discriminação institucional, levando ao MP esses relatos e contribuindo para que essa instância pudesse utilizar mais do poder que lhe imbuído constitucionalmente para fiscalizar políticas e verificar sua legalidade frente à legislação doméstica com o aparato dos tratados internacionais sobre o tema.

Logicamente que, para a dobradinha ser realmente inclusiva em suas ações, todos os MPs deveriam ser sensibilizados sobre o conceito de inclusão, discriminação e, principalmente, de que discriminar é crime.

Rets - Que conseqüências práticas já se podem sentir? Mais que isso, quais vocês esperam?

Claudia Werneck - Creio que a primeira conseqüência prática da aliança foi reunir parceiros em torno da proposta. A articulação para a construção e aclamação do documento já foi outro passo importante. Ver o Ministério Público brasileiro empenhado em incorporar o documento “É criminoso discriminar” na pauta do Mercosul e o convite para participar da reunião técnica com os MPs da região foi mais uma conquista.

Uma outra conseqüência prática importante é ter conseguido cavar e plantar alianças, creio que sólidas, entre sociedade civil e MPs do Mercosul. O fato de as duas esferas terem se conhecido (literalmente, os atores buscaram entender o que cada um faz) e se reconhecido (afirmação em si do valor do outro) é prova de que a proposta vai além do previsto. O documento “É criminoso discriminar" pode se tornar o marco nessa relação em defesa da crença de que discriminar em função de desigualdades e diferenças é forma grave de discriminação e de violação de direitos humanos, situação sujeita a responsabilizações e penalidades diversas. É isso que esperamos e que estamos vendo começar a acontecer.

Rets - O que de mais importante falta para que as pessoas comecem a de fato ter uma visão inclusiva, e não meramente a de integrar ou inserir?

Claudia Werneck - Falta perceberem que cada pessoa é, simultaneamente, alguém que discrimina e é discriminado. Esse é o grande jogo que jogamos sem perceber. Na integração, perdemos muito tempo direcionando as ações de inclusão, de forma fragmentada, a determinados grupos, como pessoas com deficiência, com HIV/aids, com uma religião não-oficial no país. Daí vem o entendimento equivocado de que a visibilidade na mídia e nas campanhas é a grande saída. O mal da exclusão, da segregação e da violação de direitos humanos é sistêmico e a visibilidade de um tema específico, sem reflexão, impede que consigamos ter essa visão infinita dos processos de violação que constituímos e mantemos até hoje. A inclusão, ao contrário, não segmenta. E aí entra outra limitação para que as pessoas entendam uma visão inclusiva: a percepção de que garantir direitos humanos a todos os humanos é oneroso e os recursos são finitos. Reverter esse pensamento é outro dos nossos desafios.

* Esta entrevista foi realizada na terça-feira, dia 5 de dezembro, e o evento foi encerrado na quinta-feira, 7 de dezembro. No encerramento da reunião, o Procurador-Geral da República, Antonio Fernando Souza, leu o documento "É criminoso discriminar", afirmando que ele traduz a posição oficial do Brasil.


Maria Eduarda Mattar

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