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A nova família

Autor original: Luísa Gockel

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets







A notícia da adoção da menina Theodora por parte de um casal de homossexuais masculinos de Catanduva (SP) - os cabeleireiros Júnior de Carvalho e Vasco Pedro da Gama – intensificou as expectativas de que a adoção de crianças por casais homoafetivos ganhe novo fôlego daqui para frente.

De acordo com a psicanalista e mestre em Família e Adoção pela PUC-Rio, Cynthia Ladvocat, já houve dois casos anteriores de adoção por homossexuais mulheres. Um deles envolveu a guarda do filho da cantora Cássia Eller por sua companheira. Ela obteve a guarda do menino com o qual já convivia e teve o direito de continuar uma convivência já estabelecida anteriormente.

Cynthia, que também é diretora do Instituto Mosaico,  que junto com a ONG Terra dos Homens trata do tema da adoção, destaca que a decisão do juiz de Catanduva é inédita. “Até então somente homossexuais declarados obtiveram o direito à adoção, em processos individuais, mesmo que mantendo relações duradouras e estáveis”, explica. O casal que conseguiu a guarda de Theodora mantém uma união de 13 anos.

Ela lembra que a adoção por casais homossexuais vem acontecendo já em alguns países, sendo a Espanha o país que aceitou mais recentemente a união homoafetiva e a adoção de crianças por casais do mesmo sexo. “Agora, no Brasil, temos esses casos recentes, que torna a jurisprudência um fato e abre espaço para outros casos”, acredita Cynthia.

A lei

Dois pontos legais devem ser destacados quando o assunto é adoção: o primeiro deles é princípio do “melhor interesse da criança”, indicado no artigo 3.º da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989). Dessa forma, fica assegurado que o bem-estar da criança deve vir primeiro do que qualquer interesse dos pais.

O segundo ponto é a regulamentação do artigo 227 da Constituição através da Lei nº 8.069/90, o famoso Estatuto da Criança e do Adolescente, que materializou o direito da criança e do adolescente de terem asseguradas a convivência familiar e comunitária.

Cynthia Ladvocat explica que, do ponto de vista legal, não existe nenhum impedimento para que homossexuais adotem crianças, pois a sexualidade de cada postulante à adoção não faz parte dessa avaliação. “Para que pais possam adotar, eles devem ser avaliados pelo serviço social e de psicologia como indivíduos capazes de prover a uma criança um ambiente saudável, afetivo e que supra as necessidades físicas e psicológicas para o seu bom desenvolvimento”, afirma.

Para a presidente da Comissão de Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Tânia da Silva Pereira, tradicionalmente a Constituição reconhece como entidade familiar a união estável entre homem e mulher, mas tem reconhecido também outras formas de convivência, como uma pessoa sozinha com filhos.

Tânia, que também é professora de Direito de Família e Direito da Criança e do Adolescente da PUC-RJ, explica que as “entidades familiares” identificadas no nosso sistema jurídico não foram suficientes para atender às necessidades de proteção. Outras formas de família estão reconhecidas nesta mesma categoria constitucional para obterem a proteção do Estado.

“Os tribunais têm reconhecido outras entidades familiares, como dois irmãos morando na mesma casa. Dessa forma, a casa passa a ser um bem de família e não pode ser penhorado. A Justiça começa a trabalhar com outras composições”, explica.

Segundo ela, é importante lembrar que, apesar de não haver uma lei que diga expressamente que é possível a adoção por casais homoafetivos, esse direito pode ser concedido baseado em princípios constitucionais. “Não existe uma base legal, mas o direito brasileiro se constrói com a jurisprudência”, avalia a advogada.

O presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT), Marcelo Nascimento, acredita que o direito à adoção é "um direito humano imprescindível, um gesto de solidariedade que independe que orientação sexual, além do fato de homossexuais também terem sentimento de paternidade e maternidade. Assim como os heteros, nós também gostaríamos de adotar em conjunto, filhos e filhas”, defende.

Segundo Nascimento, a decisão judicial tomada em Catanduva ajuda a derrubar a concepção tradicional de família. “Um casal gay ou lésbico também constitui uma família. O valor principal para caracterizar uma família é, sobretudo, a afetividade entre duas pessoas. A democracia só será completa quando, na prática e na legalidade, garantir o direito a eqüidade entre heterossexuais e homossexuais, inclusive na adoção”, acredita.

O desenvolvimento emocional

A professora de Direito Tânia da Silva Pereira lembra em artigo que “a falta de identificação com alguma pessoa de forma continuada e afetuosa conduz ao desenvolvimento de um quadro conhecido como “hospitalismo”, manifestado em crianças abrigadas em instituições, sem afastar a possibilidade de desenvolver um “quadro psicotizante” pela falta de uma segura referência materna e familiar.

Segundo ela, a experiência vivida em tais instituições acrescenta problemas na vida dessas crianças e adolescentes, que já estão marcadas pelo sofrimento decorrente da orfandade, do abandono e, muitas vezes, de maus-tratos. “Priorizo sempre a possibilidade de a criança estar num ambiente familiar do que num abrigo. Muitas vezes, uma família de acolhimento é melhor do que a família biológica”, diz.

Para o representante da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Rafael Cifuentes, a adoção da Theodora por um casal homoafetivo é “pertubadora”. Ele acredita que quando a menina alcançar a adolescência, os efeitos negativos da adoção poderão ser sentidos. “Essa é uma opinião minha. Não há posição oficial da CNBB. Esses casais podem ser protegidos pelo direito, mas não no âmbito do direito matrimonial. Também acredito que é prejudicial para a criança ser adotada por uma pessoa solteira”, defende.

Da mesma forma, Dom Rafael acredita que é prejudicial para a criança a convivência com pais separados. “É uma educação unilateral”, diz. No caso da adoção de Theodora, ele acredita que os pais adotivos estão pensando mais neles do que no bem-estar da criança. “Essa adoção pode ser traumatizante para a menina porque ela não sabe quem é o pai e quem é a mãe. Ela precisa das duas figuras”, acredita.

A psicanalista Cynthia Ladvocat não concorda com os argumentos do clérigo. “O que a menina precisa, e tem direito garantido em lei, é da convivência com uma família”, afirma. Ela explica que esse casal homoafetivo foi entrevistado, avaliado, participou de reuniões e foi habilitado para a adoção. “E essa família pode ser constituída por diferentes sistemas, sendo os dois homens um desses sistemas que deverá proporcionar um ambiente saudável para Theodora. Nota-se pelas fotos que essa menina está feliz”, diz.

Segundo Cynthia, não existem pesquisas que comprovem que uma criança que viva com “dois pais” ou com “duas mães” sofra distúrbios diferentes do que outras crianças criadas em lares heterossexuais. “O que se sabe até o momento é que não é isso que garante um bom desenvolvimento psicológico de uma criança. Muitas famílias constituídas por um pai e uma mãe podem ser muito mais danosas do que uma família constituída por pais homossexuais”, afirma.

Ela admite que a ausência de uma das figuras - paterna ou materna - sempre será sentida. Mas acredita que esse tipo de sentimento também acontece em casos de separações, mortes ou afastamentos. “No caso de duas mulheres ou dois homens no cuidado de uma criança, a falta de uma figura feminina ou masculina pode ser suprida pela identificação com outras figuras do convívio familiar e social, como tios, padrinhos, parentes em geral, amigos, professores etc.”, defende a psicanalista.

O presidente da ABGLT cita uma pesquisa realizada numa universidade norte-americana, realizada há dois anos com 100 crianças adotadas por casais homossexuais. Segundo ele, o resultado revelou que 30% mantiveram a mesma orientação sexual dos pais adotivos. “Essas mesmas crianças revelaram um melhor desempenho escolar que as demais. O próprio Conselho Federal de Psicologia, que recomenda que os profissionais abordem a homossexualidade de forma sadia, avalia como perfeitamente possível a adoção por casais homossexuais, sem seqüelas ou comprometimentos para a criança”, diz Nascimento.

A sociedade

A forma como a sociedade vai receber essa criança adotada por casais homossexuais é uma das principais preocupações de pais adotivos e profissionais da área. O medo é que o preconceito em relação ao relacionamento dos pais ou das mães seja estendido à criança. Para Cynthia, muitas outras questões menos complexas encontram resistência não somente da Igreja, mas da sociedade em geral.

Ela defende, no entanto, que a sociedade precisa se preparar para as novas formas de socialização e relacionamento. “A união homossexual e a adoção de crianças não são exatamente um fato novo. Porém, na atualidade, vemos casais gays lutando pelos seus direitos a terem filhos e a assumirem uma vida em família. O preconceito existe e deve fazer parte de debates, entrevistas e matérias na imprensa para a construção de uma nova cultura sobre essas novas configurações familiares”, acredita.

A representante do IBDFAM é otimista em relação à aceitação da sociedade. Ela acredita que esse tipo de situação será incorporada com muito mais facilidade do que se imagina. “Antes a separação era inaceitável. Antes não era possível registrar filhos fora do casamento. A lei vem consolidar aquilo que a sociedade já vem praticando”, afirma Tânia.

Segundo Marcelo Nascimento, é necessário reconhecer que as leis, códigos e Constituição brasileira baseiam-se num modelo de sociedade heteronormativa, onde todas as outras formas de convivência afetivo-sexual são veementemente marginalizadas e socialmente excluídas. “Esse mesmo modelo de sociedade reforça a prática do machismo, do racismo e da homofobia, na medida em que impõe a submissão do ser humano a uma única forma de comportamento”, critica.

Ele lembra que, durante o processo de reforma do Código Civil, houve uma iniciativa parlamentar no sentido de ampliar a concepção de união estável, estendendo-a a casais homossexuais. “Infelizmente essa iniciativa não obteve sucesso na Câmara dos Deputados. Desde então, a ABGLT tem priorizado a articulação com o Congresso, o que resultou na criação, em 2003, da Frente Parlamentar pela Livre Expressão Sexual e na realização de dois seminários nacionais para tratar das leis referentes à cidadania GLBT”.

Para ele, a recente aprovação pela Câmara do projeto de lei nº 5003/01, que criminaliza a homofobia, já é um sinal de que há avanços nesse campo. “Esta semana a Câmara também aprovou outro importante projeto que autoriza a alteração do prenome de pessoas transexuais. Esse é um passo importante que abre espaço para futuras conquistas no Parlamento brasileiro”, acredita.

Nascimento também lembra que o caso da adoção do filho da cantora Cássia Eller pela sua companheira foi um importante instrumento para mostrar a vitória do afeto sobre as concepções morais. “Os meios de comunicação ajudaram a fazer com que imperasse a ética sobre os valores morais. A cultura patriarcal não está rompida, mas está em declínio. A partir do momento em que começarmos a mudar os paradigmas, a herança cultural cristã passa a não influenciar tanto”, diz o presidente da ABGLT.

Luísa Gockel. Colaborou Maria Eduarda Mattar.

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